Anitta e as estratégias de mercado
Igor Lemos Moreira
Igor Lemos Moreira é doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre e Graduado em História pela mesma instituição é integrante do Laboratório de Imagem e Som, associado a ANPUH e a IASPM-AL. Dedica-se ao estudo da música pop latina, tendo pesquisado a trajetória artística da cantora cubana Camila Cabello em seu mestrado. Atualmente pesquisa a trajetória da cantora Gloria Estefan.
Controversa e polêmica, Anitta atualmente é a artista brasileira mais internacionalizada na indústria fonográfica. Do funk ao pop, as produções da cantora transitam entre gêneros, ritmos e línguas sendo difícil inserir sua produção artística em um único segmento musical. Longe de ser uma dificuldade em definir um nicho de mercado específico para sua atuação, a alternância que marca sua carreira é uma estratégia de promoção artística de alguém que compreendeu o funcionamento dos atuais modos de consumo e circulação musical. Além de artista, vale destacar que Anitta é também empresária e produtora musical assinando grande parte de suas composições e agenciando a própria carreira.
Refletir sobre a carreira artística de Anitta e suas produções recentes é pensar as novas formas de consumo e circulação de música, em especial os formatos dessa circulação e as relações entre imagem e sonoridade. Pensar o tempo vivido, entendido como uma cotemporalidade (TURIN, 2019) que é cruzada por vários extratos e experiências do tempo, é sempre uma oportunidade de buscarmos desacelerar nosso imediatismo e pensarmos as canções para além de seu consumo, mas também as estratégias de marketing, seus efeitos narrativos, as representações e os processos da indústria fonográfica. Discussão extensa e inesgotável, esta resenha pretende convidar o/a leitor a pensar uma produção recente, de 2019, a partir de um olhar reflexivo e interpretativo sobre os processos de composição musical no presente.
Do funk ao pop ao funk
Larissa de Macedo Machado nasceu em Honório Gurgel, no Rio de Janeiro, em 1993. Artisticamente conhecida como Anitta, Larissa iniciou sua carreira nos bailes funks cariocas como MC Anitta. Em 2010, assinou contrato com o selo independente Furacão 2000, que deixou aproximadamente dois anos depois, quando assinou contrato com a Warner Music após o sucesso da canção Meiga e abusada (DIAS, 2019). Nesse período, Anitta já havia abandonado o prenome “MC” (Mestre de Cerimônias), para se identificar integralmente como cantora.
Mesmo que já fosse uma artista conhecida em alguns setores da sociedade brasileira, a carreira de Anitta se popularizou efetivamente com o lançamento de Bang (2015). A cantora passou a circular massivamente na rádio e nos meios digitais, espaço que foi fundamental para sua consolidação, tendo transformado o single em hit a partir de processos de negociação e divulgação rápida nos meios de comunicação. No contexto em que Anitta se popularizava no Brasil, ela rapidamente passou a se familiarizar com o mercado latino-americano, aproximando-se de artistas como Maluma e J. Balvin, além de defender uma aproximação entre o funk e o reggaeton, defendendo que estes gêneros eram mais próximos do que se poderia imaginar.
O lançamento da canção Sim ou não (2016), com o cantor Maluma, foi demonstrativo desta defesa, ao mesmo tempo em que a cantora percebeu o crescimento do reggaeton na indústria fonográfica. Essa percepção, que esteve ligada a uma leitura de mercado, foi fundamental – pois quando houve o boom do reggaeton em 2017, com a canção Despacito (Luis Fonsi e Daddy Yankee, 2016), Anitta já estava inserida nesse mercado, aproximando-se de figuras fundamentais para esse segmento cujo apoio e relação a levou a se popularizar no restante da América Latina.
Percepções sobre o tempo vivido
Ao mesmo tempo em que Anitta percebeu a possibilidade de investimento no mercado latino, empreendimento que segue em curso no momento de escrita desta resenha, a artista – que é sua própria empresária no Brasil desde 2014 – percebeu as potencialidades do mercado digital. É preciso, primeiramente, relativizar essa narrativa de “genialidade” no investimento dos meios digitais que foi criada pela própria cantora e pela mídia. O entendimento e esforço da cantora em compreender o funcionamento desse suporte é sem dúvida imprescindível, contudo seguiu em amplos estudos de mercado que já vinham se desenvolvendo e o movimento de outros artistas que seguiam caminhos bastante similares, inclusive os/as próprios/as funkeiros/as e rappers que, na falta de oportunidade de entrarem em grandes gravadoras, usavam dos meios digitais para fazer circular suas produções (TEPERMAN, 2015).
O meio digital alterou significativamente os formatos de consumo e circulação de música. Se por um lado os recursos materiais passaram a ser cada vez menos mobilizados para fazer circular os álbuns (como a diminuição na fabricação de discos), a efemeridade e urgência de atualização constante do mercado e de artistas aumentou. É possível perceber que se até poucos anos atrás o principal produto do artista era seu disco, do qual se seguiam três ou quatro singles trabalhados no decorrer de dois ou mais anos, atualmente é o próprio single que tem destaque – o que tem levado uma série de cantores, grupos e bandas a não terem mais interesse por produzir álbuns completos (MOREIRA, 2019). Se por um lado esse processo aumentou a velocidade de consumo e circulação (afinal, produzir uma faixa é mais barato e mais rápido que um disco com dez ou mais fonogramas), por outro levou a ideia de disco ou álbum a ser vista como um projeto de ainda maior fôlego e investimento.
Essa percepção foi o que levou Anitta a investir massivamente apenas no lançamento de singles entre 2015 e 2019. Visando difundir-se no mercado nacional e também global, a cantora passou a lançar músicas isoladas nas plataformas digitais, o que possibilitava uma produção acelerada e constituição de um grande repertorio para performances e videoclipes. Essa estratégia ainda foi articulada a uma série de projetos de colaborações e feats com artistas renomados da indústria fonográfica, promovendo seu nome e criando novos portfolios para outros projetos e sua consolidação internacional. Mesmo quando se aproximava de algo como a produção de um álbum, Anitta visava se inserir nesse cenário, como no projeto Check-Mate (2017).
``Kisses``
Kisses (2019) é o primeiro álbum lançado por Anitta desde 2015. Entre Bang (2015) e o lançamento dele, a cantora vinha trabalhando apenas com a promoção de singles que circularam em plataformas digitais, serviços de streaming e rádios. Além de ser o primeiro álbum “fechado” da artista, Kisses possui duas outras características fundamentais: (1) Trata-se de um álbum-visual, ou seja, para cada faixa integrante do disco foi lançado um videoclipe; (2) Existe uma fluidez/hibridismo constante nas línguas utilizadas na composição que se alternam entre português, inglês e espanhol.
Gravado pela Warner Music, o álbum foi produzido por mais de 18 pessoas, com destaque a Alesso, Sky e Pedro Dash. Além disso, assinam as composições figuras como Ludmilla, Swae Lee e a própria Anitta. São dez faixas que alternam gêneros musicais como funk, pop, reaggeton e bossa nova, em que colaboram artistas referenciais na indústria musical brasileira e global a exemplo de Caetano Veloso, Prince Royce, Chris Marsh, Becky G, Snoop Dogg, Papatinho, e os já citados Swae Lee e Ludmilla. A temática principal do disco Kisses seria uma autorepresentação das diferentes facetas de Anitta, intenção essa que foi explicada e constantemente reforçada pela artista desde os anúncios do álbum.
É possível pensarmos em um agrupamento temático e sonoro na organização das faixas, apesar de não existir uma identificação explicita sobre esse agrupamento. Um primeiro bloco reuniria as canções Atencíon, Banana (ft. Becky G.), Onda Diferente (ft. Ludmilla, Snoop Doog e Papatinho) e Sin Miedo (ft. DJ Luian, Mambo Kingz) demonstrariam diferentes representações “ousadas” da cantora que tematiza temas considerados como “tabus” ou politicamente polêmicos como feminismo, sexo, drogas e a fluidez sexual. Nestas quatro faixas percebe-se a utilizam do reaggeton e do funk como base sonora junto ao hip-hop além da colaboração de artistas que possuem discursos aproximados ao da artista.
A cantora de ascendência mexicana Becky G., por exemplo, conhecida na indústria fonográfica por suas canções de temática sexual e pela sensualização nas performances, divide os vocais em Banana (ft. Becky G.) com Anitta. Essa faixa foi certamente um dos aspectos mais polêmicos do álbum, em especial pelo videoclipe, que usa de frutas e de uma estética colorida e “infantil” para falar sobre sexo e o desejo sexual. O próprio uso do termo “banana” teria essa conotação, usando a fruta para se referir ao órgão sexual masculino. O mesmo ocorreu com a canção Onda Diferente, da qual participam Ludmilla, Papatinh e Snoop Dogg. Essa faixa é tematizada pelo consumo de drogas, em especial pelo uso da maconha, dos quais não apenas Anitta, mas os demais participantes da faixa são apoiadores da legalização. O videoclipe procurou reforçar essa narrativa ao usar a própria cannabis em algumas cenas, demonstrando a articulação entre sons e imagens no reforço da intriga que gerou a composição.
As duas faixas demonstram que o interesse pelos feats, marcantes em toda a trajetória de Anitta desde sua popularização com o Show das Poderosas em 2013, esteve associado a variados aspectos, para além da expansão dos públicos que já seguiam artistas de carreira próxima a de Anitta, mas ainda desconheciam a cantora (SÁ, 2019). Ao convidar outros artistas para dividir os vocais, foi preciso também mobilizar quais figuras possuíam construções de carreira que reforçariam e/ou apoiariam as narrativas das canções.
As canções Poquito (Ft. Swae Lee) e Tu y Yo (Ft. Chris Marshall) podem ser agrupadas em um segundo bloco temático, marcado por um perfil mais romântico e sensível. Ambas as canções são tematizadas pelas relações amorosas e o apoio mútuo existentes entre os casais nos relacionamentos. Chama a atenção, em especial, que nestas canções são utilizados preponderantemente pianos e teclados eletrônicos para criar uma sonoridade mais próxima das baladas românticas, além dos tons suaves de voz da cantora e dos artistas com os quais divide os vocais. Destaca-se também que apesar da bissexualidade da cantora, ambos os convidados para as faixas são homens, sendo um deles um artista jamaicano o que aproximaria Anitta dos públicos caribenhos.
Um terceiro bloco, que reuniria as faixas Get To Know Me (Ft. Alesso), Rosa (Ft. Prince Royce) e Juego pode ser definido como o bloco de faixas mais comerciais e “pop” dentre todas as canções. São músicas rápidas, com estruturas mais repetitivas que as demais e de temática e comunicações diretas tematizadas pelo amor e a personalidade da artista, marcas de canções associadas ao gênero pop (TATIT, 2002; MOREIRA, 2019). A canção Get To Know Me é a única canção totalmente em inglês do disco e foi, provavelmente, pensada como uma faixa de divulgação na indústria estadunidense.
Neste sentido, muito mais que uma faixa integrante do disco, essa composição teve um objetivo além dos demais: servir como parte do portfólio da artista para o mercado estadunidense. Essa intencionalidade impactou sua própria composição que relembra bastante outras canções de música pop de artistas como Katy Perry e Christina Aguilera, sendo essas referenciais presentes também no videoclipe.
O último bloco no qual é possível agrupar as canções seria constituído apenas pela última faixa. Intitulada Você Mentiu, a canção identificada pelos produtores como uma bossa nova é um dueto de Anitta e Caetano Veloso. Se a primeira faixa do disco (Atencíon) inicia com uma faixa em espanhol, com batidas fortes mostrando um hibridismo entre pop, funk e reggaeton, á última faixa do álbum é a única integralmente em português, composta em um gênero popular brasileiro e em parceria com um dos grandes cânones da MPB. Nesse sentido existe um esforço em amarrar a narrativa do álbum, ou as múltiplas faces de Anitta como foi a proposta de Kisses aos seus laços ao Brasil, demonstrando o retorno as “raízes” e a identificação nacional apesar do álbum em si alternar gêneros e linguagens de diferentes regiões das Américas.
Referências
“‘A Anitta que mais me representa hoje é a Anitta cansada’, brinca a cantora no lançamento do seu primeiro álbum audiovisual, Kisses“. Revista Vogue, 2019.
DIAS, Leo. Furacão Anitta: biografia não autorizada. Rio de Janeiro: Agir, 2019.
MOREIRA, Igor Lemos. Half of my heart is in havana: Uma análise da trajetória da cantora cubana Camila Cabello (2012-2018). Dissertação (mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Programa de Pós-graduação em História, Florianópolis, 2019.
SÁ, Simone Pereira de. “Os feats de videoclipes como estratégia de consolidação da rede de música pop periférica“. Porto Alegre, 2019, p. 1-22. In: Anais do XXVIII Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós.
TATIT, Luiz. “Analysing popular songs”. In: HESMONDHALGH, David; NEGUS, Keith (Org.). Popular Music Studies. London: Arnold, 2002, pp. 33-50.
TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Dansk: Zazie Edições, 2019.
Como citar este texto
MOREIRA, Igor Lemos. Anitta e as estratégias de mercado. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 1, 2020. Disponível em: <https://amusicade.com/kisses-2019-anitta>. Acesso em: 10 out 2024.