Um garimpo das Geraes: Pena Branca e Xavantinho ecoam saudade na sonoridade rural brasileira
Carlos Gregório dos Santos Gianelli
Carlos Gregório dos Santos Gianelli cursa doutorado em História na Universidade do Estado de Santa Catarina, onde também produziu dissertação de mestrado sobre a performance humorística da dupla Alvarenga e Ranchinho nos programas de rádio entre 1936 e 1947. Atualmente pesquisa a música brasileira na Rádio Nacional durante as décadas de 1930 a 1950.
Dentre as experiências sensoriais que a música consegue suscitar, uma das mais fortes é a saudade. Foi partindo desse sentimento que a dupla Pena Branca e Xavantinho cimentou boa parte de sua obra, desde o primeiro disco até a partida de Xavantinho em 1999. A dupla mineira de Martinésia, distrito do município de Uberlândia, iniciou sua carreira tocando em rádios da região – como a Rádio Educadora de Uberlândia –, onde foram anunciados a contragosto como Peroba e Jatobá. Após passarem por mais uma mudança, agora para Xavante e Xavantinho, chegaram aos nomes que levariam para o resto de suas carreiras artísticas, firmando-se como Pena Branca (José Ramiro Sobrinho) e Xavantinho (Ranulfo Ramiro da Silva). Os irmãos começaram cedo na música acompanhando o pai Francisco, que tocava cavaquinho nas festas de Folias de Reis. Inicialmente acanhados de cantar em público, os irmãos perceberam, aos poucos, que a música seria o seu caminho.
No final da década de 1960, Pena Branca e Xavantinho mudaram-se para São Paulo, epicentro do mercado sertanejo e caipira, buscando alavancar suas carreiras. Em paralelo à carreira artística, que contava com concursos e desafios na capital paulista e em municípios vizinhos como Guarulhos, trabalhavam em uma transportadora. O primeiro grande salto da dupla mineira ocorreria em 1980. Depois de apresentarem-se em Aparecida do Norte, ao lado de nomes consagrados da cena caipira como Cascatinha e Inhana e Tonico e Tinoco, chamaram a atenção do produtor Roberto Oliveira, irmão do compositor Renato Teixeira, que os encaminhou para gravarem o seu primeiro álbum. Cabe ainda destacar o apadrinhamento de Rolando Boldrin, apresentador do Som Brasil, da Rede Globo, que levou a dupla para abrir um dos programas em 1982 com a já conhecida canção Cio da Terra. Depois dessa apresentação, a dupla deslanchou de vez, alcançando números expressivos na vendagem de discos e prêmios de renome nacional, como o reconhecimento da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Prêmio Sharp.
Cio da Terra
O álbum Cio da Terra, terceiro disco da carreira, foi lançado pela gravadora Continental, em 1987. Com direção musical de Tavinho Moura e participações especiais de Milton Nascimento e Marcus Viana, o LP alcançou a expressiva marca de 300 mil cópias vendidas. Com um repertório variando desde a faixa título, já consagrada na voz de Milton, até canções de marujada ou Folias, esse trabalho marca o ecletismo da dupla, que enxergou a possibilidade de uma leitura mais crua (ou rústica, nas palavras de Pena Branca) da Música Popular Brasileira. No entanto, a maioria das músicas carrega as tradições da musicalidade rural, seja na releitura do cancioneiro folclórico ou nas composições próprias. No encarte do LP, abaixo do título de cada canção, consta a qual gênero ela pertence: Folias de Reis; Toada Balanço; Tema Folclórico; Marujada.
O disco abre com a música Encontro de Bandeiras (Xavantinho/Tavinho Moura), que aborda a temática das Folias de Reis. A letra saúda o ouvinte tal qual a Folia chegando às ruas da cidade para as comemorações. Logo no início, ouve-se a viola caipira ponteada por Pena Branca e a rabeca tocada por Marcus Viana, a qual integra o arranjo da canção, costurando os versos e as estrofes. O arranjo ainda conta com Xavantinho no violão e com a percussão de Alfonso Maluf e Tavinho Moura. De caráter religioso, os reis da Folia remetem à figura dos três reis magos, que visitaram Jesus Cristo recém-nascido levando presentes a sua manjedoura. A letra remete a outra música caipira, Calix Bento, recolhida por Tavinho Moura e gravada por Milton Nascimento no álbum Geraes, de 1979: “Aonde Mora o Calix Bento/E a hóstia consagrada”. Cada faixa do álbum possui uma dedicatória e com Encontro de Bandeiras não poderia ser diferente; a dupla dedica-a a família, aos irmãos e aos sobrinhos, remetendo ao início de sua formação musical.
Sonoridade mineira
Após saudar o ouvinte, o disco traz um tema folclórico recolhido por Paulo Vanzolini e adaptado por Milton Nascimento e Wagner Tiso. Cuitelinho conta com um arranjo mais simples, com uma viola caipira extra ponteada por Zéduardo. De resto, apenas a outra viola de Pena Branca e o violão de Xavantinho fazem a base necessária para as vozes da dupla. Esse registro demonstra bem uma das marcas singulares da sonoridade dos mineiros: seus arranjos vocais. Além de lançarem mão dos intervalos musicais de terças, já consagrados por várias duplas caipiras, Pena Branca e Xavantinho cantam a mesma nota em alguns versos. Sem compor uma harmonia nesse momento, ao cantar em uníssono, o que emana como sonoridade é a diferença de timbre de cada um dos vocais. Pena Branca, de registro naturalmente mais alto, ocupa as frequências mais agudas, suavizadas pela voz mais suave e mais grave de Xavantinho, mesmo quando ambos entoam a mesma nota. A alternância desses momentos em uníssono com a harmonização dos dois vocais confere à gravação uma dinâmica que torna a experiência da canção mais intensa para o ouvinte ao destacar determinados versos. A canção é dedicada aos veículos de comunicação que apoiaram a dupla até aquele momento.
A terceira faixa do disco, Perguntas (Xavantinho/J.Carvalho), classificada pela dupla como toada balanço, e a quarta, O Aboiador (Xavantinho), do gênero aboio (música entoada para conduzir o gado), tratam de temas envolvendo o trabalho no campo cantadas por quem já não pertence mais àquele espaço. Perguntas possui em seu arranjo, além da base com violão, viola caipira e percussão, e o baixo tocado por Jiló, o que auxilia bastante na marcação dos graves que dão o pulso da toada. O Aboiador tem um arranjo mais cru, contando somente com violão e viola caipira. Essas músicas são dedicadas respectivamente a Márcio Ferreira, que assina a direção geral do álbum, e a Rolando Boldrin, Lurdinha Pereira e José Amâncio, que auxiliaram na viabilização do disco anterior da dupla.
Marujada e cana-verde
As duas próximas canções compõem um pequeno medley do gênero marujada. Gente que vem de Lisboa (Tavinho Moura/Fernando Brant) e Peixinhos do Mar (canção folclórica adaptada por Tavinho Moura) são dedicadas à gravadora Continental. A gama sonora é ampliada com a viola extra de Zéduardo, a rabeca de Marcus Viana e os vocais de Tavinho Moura. O momento em que essas músicas chegam ao ouvinte no decorrer do álbum acaba dando uma guinada interessante para a dinâmica sonora do LP em seu conjunto.
Se a primeira música do disco convida o ouvinte para a escuta do álbum, a última faixa do lado A inicia despedindo-se. Cantiga Caicó (tema folclórico recolhido por Villa Lobos e adaptado por Milton Nascimento e Teca Calazans) anuncia: “Ô Mana deixa eu ir / Ô Mana eu vou só / Ô Mana deixa eu ir / Para o sertão do Caicó”. Das gravações do primeiro lado do disco, é a que conta com um arranjo mais moderno. Além do violão e da viola caipira da dupla, Marcus Viana permeia o canto com um sintetizador DW 6000, que se distancia bastante da gama de timbres utilizada até então.
Milton Nascimento também participa da faixa harmonizando com a dupla e pincelando no vocal um falsete bem intenso, marca registrada de sua performance.
O lado B inicia-se de um jeito bem mineiro, com a partida de um trem maria fumaça que “tocando o teu sino/orgulhosa passa”. A faixa Maria Louca (Xavantinho), pertencente ao gênero cana-verde, com um pontear de viola bem alegre, e conta ainda com a participação do flautista Jairo Lara, que apresenta uma sonoridade que remete ao canto de pássaros – que estariam no meio da mata por onde passaria o trem. Desse modo, na paleta de timbres da canção, a flauta ajuda na paisagem sonora daquele retrato mineiro. A letra ainda remete ao passado quase que idílico, volta e meia evocado por Xavantinho em várias de suas composições: “Maria fumaça/Eu queria contar/Sua história/Teu passado de luta e glória/Que o tempo consigo levou”. A música é dedicada ao “maquinista Milton Nascimento”, em agradecimento à participação no disco, além do apoio e do carinho direcionados à dupla durante sua carreira.
MPB Caipira
A segunda faixa do lado B, que dá nome ao álbum, é dividida em dois momentos bem distintos. Cio da Terra (Milton Nascimento/Chico Buarque de Hollanda) inicia-se com Milton Nascimento acompanhado apenas de seu violão e com harmonias vocais feitas por ele. Após cantar uma vez a canção inteira, entra a dupla Pena Branca e Xavantinho, que aproxima a toada da sonoridade rural com os vocais e a viola caipira. Milton canta nessa segunda parte, tecendo contracantos que acompanham a dupla mineira até harmonizar nos versos finais. O arranjo mais simples, sem o uso de percussão ou instrumentos de sopro, soa proposital, na intenção de trazer a canção para o universo rústico de onde vieram Pena Branca e Xavantinho. Algo que marcará a carreira da dupla será justamente a utilização desse prisma caipira, pelo qual a MPB passaria. Não é à toa que a faixa é dedicada a Chico Buarque e a Caetano Veloso.
O batuque Canoa do Rio (Renato Teixeira), apesar de ser uma das canções mais curtas do álbum, funciona muito bem na dinâmica do trabalho como um todo. O pandeiro que integra a cozinha faz-se bastante presente, marcando bem o gênero, juntamente da viola adicional de Zéduardo. Desse modo, o batuque faz uma excelente transição entre a toada Cio da Terra e a moda de viola Moda e Viola (Moniz), que vem logo em seguida. Canoa do Rio é dedicada ao irmão do compositor, que, como já dito, foi o responsável por viabilizar a primeira gravação da dupla após sua apresentação em Aparecida do Norte. Moda e Viola é a faixa com o arranjo mais simples de todo o álbum, justamente como pede o gênero ao qual pertence. Dedicada a Tavinho Moura, conta somente com as vozes de Pena Branca e Xavantinho, violão e viola caipira. A canção descreve a vida do caboclo em seu rancho; depois de um dia de trabalho, ele pica seu fumo e se junta aos bichos e filhos “pra escutar moda e viola”.
Nos sertões da saudade
Já chegando ao final do disco, a penúltima canção, O Grande Sertão (Pena Branca/Xavantinho), é um baião de sonoridade que se aproxima mais do universo mineiro e paulista do que da levada da sanfona pernambucana de Luiz Gonzaga ou Dominguinhos. Contando com violão, viola caipira e percussão no arranjo, a letra anuncia o lugar de onde a dupla fala: “Ei! O Sertão é meu lugar/Dos campos e matagais/Aonde cantam os passarinhos/Nas colinas das Gerais”. O sertão que cobre grande parte do Nordeste também abarca parte do território mineiro. É nesse sentido que Pena Branca e Xavantinho lembram que Minas também tem sua aridez sonora.
No entanto, é com uma homenagem ao nordeste que o álbum se encerra. Com um arranjo contando com percussão e mais uma viola, a toada nordestina Vaca Estrela e Boi Fubá (Patativa do Assaré) é dedicada ao seu compositor, além de Fernando Brant, Wagner Tiso, Renato Teixeira, Moniz, J. Carvalho, Paulo Vanzolini, Teca Calazans e todos os autores que foram relidos pela dupla mineira. Semelhante à dinâmica presente no lado A, a toada escolhida por Pena Branca e Xavantinho para encerrar o lado B – e, consequentemente, o disco – tem um tom mais triste, ao passo que a letra remete à seca que teria matado justamente a vaca e o boi que dão título à canção. O nordestino que se mudou para o sul lamenta a perda não somente de seus animais, mas de todo o seu modo de vida. Pena Branca e Xavantinho colocam-se no lugar do retirante, já que tiveram que sair do interior mineiro para conseguir viver de música, aventurando-se na selva de pedra paulistana.
De certa maneira, ao escutar o álbum Cio da Terra, com todas as suas nuances de arranjo e escolhas de repertório, os versos do grande clássico caipira, Tristeza do Jeca, apresentam-se em um tom biográfico para Pena Branca e Xavantinho, pois no final das contas, “cada toada representa uma saudade”.
Como citar este texto
GIANELLI, Carlos Gregório dos Santos. Um garimpo das Geraes: Pena Branca e Xavantinho ecoam saudade na sonoridade rural brasileira. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 1, 2020. Disponível em: <https://amusicade.com/cio-da-terra-1987>. Acesso em: 08 dez 2024.