EU SOU A SOLIDÃO: O TRISTE IÊ-IÊ-IÊ DE NELSON NED
Eduardo Eugenio Asterito Baptista
Eduardo Eugenio Asterito Baptista é mestrando em História pela UFF, onde desenvolve pesquisa sobre a música cafona durante a ditadura militar a partir da análise da carreira de Nelson Ned. Este trabalho é um desdobramento da sua pesquisa na graduação em História pela UFRJ sobre Agnaldo Timóteo.
O cantor e compositor cafona Nelson Ned (1947-2014) considerava sua carreira marcada por “ironias” (Ned; Costa, 1996, pp. 41; 47; 128-9; 80-4). Devido ao seu nanismo, era visto como feio, o que teria permitido, segundo ele, que os homens se identificassem com suas canções por não o considerarem uma ameaça à heterossexualidade, ao mesmo tempo que o cantor tinha a fama de mulherengo. No início da carreira, suas canções eram populares, mas não conseguia uma gravadora. Mesmo no auge do sucesso, sendo o primeiro artista latino a vender um milhão de discos nos Estados Unidos, com apresentações nas mais renomadas casas de espetáculos do mundo, como o Carnegie Hall, no Brasil, Nelson Ned era visto como um “cantor de zona” que fazia shows em churrascarias.
O álbum “Tudo passará” (1969) é mais uma dessas “ironias”. Após ser demitido por não vender a quantidade esperada pela gravadora Polydor do seu disco de estreia premiado internacionalmente: “Um show de 90 cm” (1964) (Ned; Costa, 1996, p. 47), o cantor conseguiu uma segunda chance. Nelson Ned negociou com o empresário Genival Melo (BARCINSKI, 2023, p. 47) seus serviços em troca de uma composição – “Sozinho na multidão” – para Wanderley Cardoso. Graças aos contatos do seu novo agente, Ned conheceu o empresário Leonardo Schultz, que organizou uma breve excursão para Argentina, onde o cantor compôs a sua canção mais famosa: “Tudo passará”. Porém, Schultz registrou e vendeu a música como se fosse própria, provocando um imbróglio de anos na justiça até o reconhecimento dos direitos autorais de Ned (Ned; Costa, 1996, pp. 63-5). Com o sucesso da música na Argentina, o escândalo do roubo nos jornais e suas apresentações no Programa do Chacrinha, a gravadora Copacabana aproveitou a visibilidade do artista e produziu seu novo LP, que estampou no título o nome da canção roubada de Nelson Ned. (Ned; Costa, 1996, p. 63).
A capa do disco segue o padrão do anterior, focalizando o nanismo como chamariz para vendas. Agora, Ned encontrava-se “medido”, não por uma fita métrica como em 1964, mas por um violoncelo, tática aplicada em suas aparições no Chacrinha. Em depoimentos, o cantor afirmou se opor a essa estratégia, mas a cumpria por vir dos seus contratantes (Ned; Costa, 1996, p. 46). Com o sucesso nacional a partir desse disco, porém, as fotos que estamparam os LPs seguintes passaram a mostrá-lo em close, deslocando a atenção do seu nanismo e reproduzindo o modelo de capa dos demais cantores românticos (Cardoso, 2011, p. 63).
O ROCK TRISTE DE NELSON NED
A sonoridade do disco de 1969 guarda outra ironia: a guinada definitiva do cantor para o iê-iê-iê ocorreria um ano depois do cancelamento do programa Jovem Guarda, símbolo do movimento (Araújo, 2021, p. 591). Definitiva, pois Ned cantava rock desde o início da sua carreira ainda em Minas Gerais, em 1961 (Ned; Costa, p. 38). De acordo com Paulo de Tarso Medeiros (1984, p. 19), “como a herança musical dessa turma tinha quase nada de blues, country ou rhythm & blues, e muito dos nossos boleros e do samba-canção, a incorporação da batida marcada do rock and roll transformou a maioria das canções em rock-balada”, tanto que a maioria dos roqueiros na década de 1970 constituíram uma das vertentes do gênero cafona (Araújo, 2015, p. 19). Essas baladas eram caracterizadas pela simplicidade das letras; um único vocalista masculino; acompanhamento musical lento feito por um conjunto de rock (guitarra, baixo, órgão elétrico e bateria) ou por grandes orquestras; e a presença de instrumentos de cordas para enfatizar a dramaticidade das letras (Ulhôa; Pereira, 2016, p. 49).
O diferencial sonoro deste LP é o destaque dado ao bel-canto de Nelson Ned, que reproduz o canto típico dos cantores da Era do Rádio (1933-64) com seus saltos tonais, silenciando as guitarras para a entrada dos violinos. Essa “instabilidade do jogo musical”, afirma o letrólogo Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira (2008, pp. 106-7), sugere de forma sonora e física o esforço emocional sentido nas letras. As mudanças bruscas na voz, melodia e nos instrumentos são a materialização da angústia, tristeza e dor do eu-lírico. E existia muita dor nas letras desse disco.
Aprofundando uma temática lateral do rock nacional, as canções de “Tudo passará” focalizam a solidão, o abandono, a conformação com o destino, mais do que o desejo sexual, a liberdade e os imprevistos da conquista amorosa (Medeiros, 1984, p. 11).Das 12 canções, 6 são composições solos de Ned, além das 3 parcerias com os cafonas Agnaldo Timóteo (“Um recado para meu amor”, faixa 10); Cláudio Fontana (“Hoje eu não volto para casa”, faixa 2) e com o músico Hamilton Gouveia Bastos (“Tamanho não é documento”, faixa 8). Há duas adaptações de canções estrangeiras (“Alô aqui sou eu”, faixa 7; “Ao meu amor”, faixa 11), seguindo uma tradição da Era do Rádio (Lenharo, 1995, p. 75), além de uma composição do cafona Antônio Marcos com o empresário Genival Melo (“O riso que eu perdi”, faixa 5).
O disco, seja em suas músicas autorais ou não, apresenta uma abordagem temática do relacionamento amoroso específico do cancioneiro de Nelson Ned. Em suas canções o amor nunca é pleno, o eu-lírico carrega uma tristeza infinda, sendo angustiado pela esperança de um amor que o afaste dessa solidão ontológica. Todas as composições nesse LP reproduzem em certa medida esse padrão: “Eu não devo lamentar/ pois quem sabe amanhã poderei ser feliz/ Compreendo que somente o destino/ é quem faz nossa vida mudar/ Se agora estou só, não me importo/ porque não perdi a esperança” (“Será, Será”, faixa 1); “Eu não posso mais viver assim/ guardando tanto amor dentro de mim” (“Hoje eu não volto para casa”, faixa 2); “Tudo na vida tudo tem seu fim/ você não nasceu pra mim” (“Você não nasceu para mim”, faixa 3); “Não fique a me olhar/ querendo assim chorar/ por descobrir em mim tanta ternura” (“O riso que eu perdi”, faixa 5); “Agora, então, vou chorar/ pois eu não posso gritar/ para o público escutar/ que eu sou a solidão” (“Camarim”, faixa 6); “Só eu, eu posso saber/ o quanto eu já sofri/ quando estava sozinho ninguém veio aqui/ ninguém apareceu para me consolar” (“Vou buscar o meu amor”, faixa 8); “Se alguém por acaso encontrar por aí/ o grande amor da minha vida/ pode dizer que eu mandei um recado/ pedindo pra ela voltar” (“Um recado para meu amor”, faixa 10).
Até mesmo as adaptações brasileiras se adequam à melancolia de Nelson Ned. A italiana Pronto sono io, se assemelha com um dos maiores sucessos de Roberto Carlos, “Eu te amo, te amo, te amo” (1968) ao narrar a última ligação telefônica do eu lírico ao ser amado. Porém, se o “Rei” faz uma exaltação ao amor juvenil, Ned deseja apenas “dizer adeus/ pois precisava ouvir a tua voz” (“Alô aqui sou eu”, faixa 7). Se essa tradução se manteve fiel ao original italiano, não podemos dizer o mesmo da americana To sir with love, música-tema do filme “Ao mestre com carinho” (1967). A composição americana rememora os tempos de escola, mas a adaptação brasileira fez dela uma confissão sentimental: “Mais uma vez eu estarei aqui na solidão/ mais uma vez eu chorarei/ e chorarei em vão” (“Ao meu amor”, faixa 11).
MELANCOLIA DOS ROMÂNTICOS
Quando perguntado por que é difícil encontrar alguma composição sua que não traga a palavra “triste” ou “tristeza”, Ned respondeu que:
Realmente, eu levava uma vida triste. […]. Eu sempre me apaixonei perdidamente, os meus amores sempre foram muito fortes. Mas devido à minha própria constituição física, eu sempre fui um homem muito consciente das minhas limitações. E isso me fazia ver que realmente eu era um cara triste e cultivava essa tristeza, que eu hoje chamo de “melancolia dos românticos”. (Araújo, 2015, p. 256)
Desde muito cedo em sua carreira, Ned teve que lidar com as limitações impostas a ele por causa dos preconceitos contra as pessoas com nanismo. A isto, chamamos de capacitismo para se referir a “uma leitura que se faz a respeito das pessoas com deficiências, assumindo que a condição corporal destas é algo que naturalmente as define como menos capazes […] e até menos humanos” (Vendramin, 2019, pp. 5-6) – fato denunciado por Ned em diversas declarações suas, como a que segue:
Este é o país do preconceito, o Brasil é o único país do mundo que tem leis estigmatizadas tais como o negro para a cozinha, a mulher para a cama, o anão para o circo e o cego para as esmolas. […]. E quando você vence todas essas barreiras, e desestabiliza esse sistema preconceituoso, você passa a ser uma pessoa às vezes até indesejável, um espécime raro, observado com muita peculiaridade. Isso incomoda, não está escrito no contexto do Brasil. E até hoje eu não sou respeitado no meu país, eu me faço respeitar, o que é diferente. (Araújo, 2015, p. 49).
Apesar da sua popularidade regional no eixo Rio-São Paulo e de suas apresentações no Chacrinha cantando e compondo sucessos do iê-iê-iê, o cantor nunca se apresentou no programa Jovem Guarda, pois, segundo ele, o produtor Carlos Manga fazia uma “conspiração do silêncio onde não falam nada sobre o indivíduo, e fingem até que ele nem existe”, pois lá “só tinha vez cantor galã, o cantor bonitinho” (Ned; Costa, 1996, 54).
Assim, como resposta a essas violências, Ned compôs, com a parceria musical de Hamilton Gouveia (BARCINSKI, 2023, 57), “Tamanho não é documento” (faixa 4), na qual afirma que “Tamanho não é documento/ pelo menos tenho sentimento/ mas isso, isso é coisa que você não tem”. A letra versa sobre a necessidade de autoestima das pessoas com deficiência, recorrendo ao argumento religioso comum na época: “Sou pequeno, mas sei que meu Deus é grande\ E para ele eu também sou\ Igualzinho a você\ Tamanho não é documento”.
Por fim, vale mencionar uma das composições mais famosas na carreira do cantor: “Domingo à tarde” (faixa 9), a qual, para comunicóloga Sílvia Cardoso (2011, p. 45), demonstra um dos motivos para o sucesso dos cafonas terem ocorrido justamente na década entre 1968 e 1978 (Araújo, 2015, p. 15), período de intenso êxodo rural, autoritarismo, crescimento econômico e arrocho salarial na América Latina. Segundo Cardoso, os versos que narram a solidão urbana ecoariam nos corações dos migrantes a saudade da terra natal e “dos seus” e os ensinaria a sobreviver às humilhações e à exploração da selva de pedra (Araújo, 2015, p. 237).
Em “Domingo à tarde”, o eu-lírico encontra-se angustiado “pois domingo é um dia tão triste para quem vive sozinho.” O que deveria ser um momento de descanso e lazer se transforma em fonte de profunda tristeza compartilhada entre o personagem e o ouvinte. Por meio da cumplicidade dos solitários, se suplica companhia e reconhecimento: “Se você também vive tão só/ sei que vai me entender/ sem amor é muito mais difícil/ a gente viver”. Essa dimensão afetivo-sonora da música é reconhecida pela musicóloga Tia Denora (2013, p. 1) como a capacidade de criar “asilos”, ou seja, espaços de acolhimento que duram os exatos minutos de uma canção. Ora, as letras de Nelson Ned, a partir desse álbum de 1969, dedicaram-se à construção desses espaços sonoros onde as vítimas das desventuras do amor e do capital encontram “uma pausa na angústia” e um estímulo para “desfrutar de uma sensação de validação ou conexão com os outros, de sentir prazer, talvez de observar a ausência ou redução temporária da dor” (Denora, 2013, p. 1).
SINTO QUE ESTOU SÓ E VIVO SÓ
Apesar do sucesso de Nelson Ned, das mais de 40 regravações em 10 idiomas de “Tudo passará” (Araújo, 2015, p. 47), o cantor atualmente é desconhecido pelas novas gerações. O ano de 2023 se encerra sob os auspícios do lançamento de uma biografia do artista escrita pelo jornalista André Barcinski e a promessa de uma série baseada no livro para 2024. A ironia póstuma de Nelson Ned parece ser essa: nos lembrar que a memória e o esquecimento são transitórios, pois tudo passa, tudo passará.
Referências
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não: a música cafona e a ditadura militar. 9° edição. Rio de Janeiro: Record, 2015.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos outra vez: 1941-1970. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
BARCINSKI, André. Tudo passará: a vida de Nelson Ned. O pequeno gigante da canção. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
CARDOSO, Sílvia. “Eu não sou lixo: música “brega”, indústria fonográfica e crítica musical no Brasil nos anos 1970”. Dissertação em Comunicação. UFF, Niterói, 2017.
DENORA, Tia. Music asylums: wellbeing through music in everday live. Farnham: Asghate, 2013.
LENHARO, Alcir. Cantores do rádio: a trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo. Campinas: UNICAMP, 1995.
MEDEIROS, Paulo de Tarso. A aventura da Jovem Guarda. Tudo é História, vol. 92. São Paulo: Brasiliense, 1984.
NED, Nelson; COSTA, Jefferson Magno. O pequeno gigante da canção: a vida de Nelson Ned. São Paulo: Vida, 1996.
OLIVEIRA, Paulo da Costa e Silva Franco. “Contra os excessos: contenção, equilíbrio e amor na Bossa Nova.” Dissertação em Comunicação Social. PUC-RIO, 2008.
ULHÔA, Martha; PEREIRA, Simone (orgs.) Canção romântica: intimidade, mediação e identidade na América Latina. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016.
VENDRAMIN, Carla. Repensando mitos contemporâneos: o capacitismo. Sofia. Portal PubliOnline, UNICAMP, 2019.
Como citar este texto
BAPTISTA, Eduardo Eugenio Asterito. Eu sou a solidão: o triste iê-iê-iê de Nelson Ned. A música de: História pública da música do Brasil, v. 5, n. 2, 2023. Disponível em: https://amusicade.com/tudo-passara-1969-nelson-ned/ . Acesso em: