AS ESTREIAS DE JOVELINA PÉROLA NEGRA
Cleonice Elias da Silva
Cleonice Elias da Silva é professora colaboradora na Universidade Estadual do Norte do Paraná. Doutora em História Social pela PUC-SP (2020) e mestra (2015) na mesma área e pela mesma instituição. Autora dos livros Cineastas Mulheres: um panorama histórico (2018) e Rio, 40 Graus: sua censura e os patamares de uma conscientização cinematográfica ( 2019).
A primeira participação em um LP de Jovelina Pérola Negra foi no Raça Brasileira, gravado pela RGE em 1985. Com Zeca Pagodinho, Elaine Machado, Pedrinho da Flor e Mauro Diniz, Jovelina estreou no mercado fonográfico com esse disco coletivo integrado por representantes do movimento do pagode cuja origem está associada ao bloco carnavalesco Cacique de Ramos.
O Cacique, fundado no começo dos anos 1960, reunia, nos finais da década seguinte, compositores e amigos, todas as quartas-feiras à noite para tocarem e cantarem os seus pagodes. Ubirajara Félix do Nascimento, o Bira Presidente, e Ubirany recebiam na casa de seus pais um grupo que gostava de tocar sambas: Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto, Beto Sem Braço, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Neoci e Jovelina Pérola Negra (DINIZ, 2012, p. 210).
Antes, os instrumentos do samba eram reco-reco, tamborim, entre outros. Considerando os aspectos musicais, uma das novidades do pagode foi a emergência de inovações melódicas e, sobretudo, rítmicas. Ocorreu uma reinvenção do banjo por Almir Guineto, que passa a participar da percussão e da harmonia. Um uso renovado do tantã, ou tamboril, que é um pequeno atabaque que marca o tempo forte da música. O sambista e escritor Nei Lopes afirma que o repique foi uma novidade do pagode com seu timbre agudo; a importância da batida está no resultado dos movimentos dos dedos da mão esquerda “percutindo às vezes até com anéis, o corpo metálico do instrumento” (DINIZ, 2012, p. 210).
O banjo possuía um som mais alto e o cavaquinho exigia menos esforço para ser tocado, em contrapartida, o agogô, o tamborim e o reco-reco, instrumentos clássicos do samba, deixaram de ser tocados. Tais transformações por esses músicos ligados ao grupo do Cacique de Ramos fizeram surgir uma indagação: seria o pagode um novo gênero musical? A polêmica foi colocada e o pagode deixou os subúrbios e despertou o interesse das gravadoras e dos meios midiáticos. A partir da metade dos anos 1980, esses artistas foram considerados representantes do movimento do pagode.
JOVELINA CANTA O SUBÚRBIO CARIOCA
No disco Raça Brasileira, Jovelina gravou e compôs a música “Feirinha da Pavuna (Confusão dos Legumes)”, e também escreveu a letra de “Bagaço da Laranja” em parceria com Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho.
A Pavuna é um bairro carioca ocupado majoritariamente por uma população negra e apresenta um baixo Índice de Desenvolvimento Social. A Feirinha da Pavuna corresponde a uma imagem clássica do subúrbio carioca, onde quase tudo se vende por lá. A origem da palavra Pavuna é Tupi e significa “lugar de trevas” ou “lagoa escura”. Ela tornou-se patrimônio cultural imaterial da cidade do Rio de Janeiro em 2014, a partir do decreto nº 39231. E é um orgulho de muitos(as) trabalhadores(as) locais, que sustentam suas famílias com o trabalho cotidiano de suas vendas. O reconhecimento histórico da feira deu-se devido à campanha nas redes sociais, que foi mobilizada pela Arena Carioca Jovelina Pérola Negra, um aparelho cultural e público mantido pela Prefeitura, em homenagem à cantora e compositora, localizado na Pavuna. O samba composto por Jovelina teve como inspiração uma briga que ela presenciou na feira na década de 1980 (MACIEL, 2021).
O primeiro disco solo de Jovelina, Pérola Negra, foi gravado também pela RGE no ano de 1985 e contou com as parcerias de Serginho Menti e Zeca Sereno. Ela hesitou em gravá-lo, pois não se sentia segura em seguir uma carreira artística, mesmo cantando nas noites cariocas há um tempo. Tal insegurança pode ser justificada pelo fato de ser uma mulher preta e responsável pela criação e sustento de uma filha e dois filhos.
O DISCO PÉROLA NEGRA
Pérola Negra é composto por 12 faixas. Em “O dia se zangou” narra um temporal que alagou a cidade e afetou o cotidiano dos cariocas. Na faixa seguinte, “Pagode no Serrado”, homenageia as damas do samba Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Dona Zica e Dona Neuma, e também faz menção a alguns sambistas homens. A música apresenta uma referência à cultura das rodas de samba e sua relação com a comida. “Bugui-Ugui Favela” apresenta um questionamento de um perfil de homem, que destoa do da malandragem carioca, um sujeito vacilão que nega a tradição do samba.
Na música “Preparado da vovó”, fala de uma avó chamada Maria, que veio do Gericinó, um bairro proletário da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, faz menção às histórias da população negra, às relações de sociabilidade e às tradições dessas pessoas atravessadas pelo passado da escravidão. “Menina você bebeu” apresenta um conselho de Jovelina a uma jovem de 20 anos de idade para parar de beber, assim deixará de se envolver em situações constrangedoras. Na sequência, em “Água do Poço” é cantada uma saudade dos tempos de Nova Aurora, quando a água de poço era esquentada num fogão de lenha, nostalgia de uma vida simples e rural, na qual a mãe colhia batata doce e aipim e o pai carregava um fecho de lenha.
Jovelina fala de amor na música “Laços e Pedaços”, de um erro que não pode ser perdoado por Deus e a busca por uma solução diante da dor: o rasgar do coração em dois grandes pedaços. Afirma que a morte por amor é mais amena. Outro tipo de masculinidade é questionado por Jovelina em “Rabo de saia”, desta vez a de um “nego aproveitador” que se depara com a postura de uma vovó que não atura o comportamento dele em seu terreiro em relação às mulheres. A vovó veio do cativeiro da Bahia e é uma feiticeira respeitada nas mesas de umbanda.
No seu samba “Maria Tristeza” canta a vida solitária de Maria da Silva Tristeza em seu humilde barracão. O seu sorriso brota quando a escola de samba começa, ela canta, sorri e chora. Em três dias de Carnaval, viveu sua alegria e com o fim voltou a se chamar Maria da Silva Tristeza. O custo caro do camarão é mencionado na letra da música “Camarão com chuchu”. O desejo de fazer um ensopado de camarão com chuchu não pode ser satisfeito diante do pouco dinheiro para a sobrevivência com dignidade. A viola da Banda do Rodado é mencionada em “Chora viola”, penúltima faixa do disco; ela é feita de madeira e pinho e está sempre bem acompanhada por um bom cavaquinho. Ela faz parte do arranjo da música cantada por Jovelina; nessa espécie de metalinguagem, a cantora fala do ato de pegar a viola e falar mais alto, conduta recorrente a uma versadora nas rodas de samba e pagode. O amor está presente na última música “É isso que eu mereço”. Ela pergunta ao seu bem se é isso que merece, menciona promessas que não foram cumpridas, lamenta um amor não feliz, no qual um dia é tratada bem e no outro não. Diante dessa situação, avisa que qualquer dia pode pegar sua viola e ir tocar em outro local.
REPRESENTAÇÕES DE JOVELINA PÉROLA NEGRA
Jurema Pinto Werneck em sua tese de doutorado, “O samba segundo as Ialodês: mulheres negras e a cultura midiática”, defendida em 2007 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa a trajetória e produção musical de Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão e Alcione. Em sua abordagem, destaca os mecanismos que invisibilizam socialmente as mulheres pretas em vários âmbitos, dentre eles, no cenário da música popular. A pesquisa citada foi publicada pela editora Hucitec no ano de 2020. Werneck, ao analisar a capa do disco apresentado aqui, na qual há uma foto de Jovelina Pérola Negra com um lenço branco na cabeça, afirma que é possível notar uma representação estereotipada da mulher negra relacionada ao trabalho doméstico (WERNECK, 2017, p. 196-197). Jovelina, assim como Clementina de Jesus, trabalhou como empregada doméstica.
Em linhas gerais, nos sambas de Jovelina o cotidiano e a cultura da população carioca negra se fazem presentes, não apenas na obra aqui comentada, ela ironiza e desconstrói aspectos das figuras masculinas, entre eles a figura do malandro. Apesar de falar sobre sentimentos como o amor, eles não marcam o caráter de suas composições. Werneck (2007, p. 250) nos lembra que as mulheres que têm suas histórias associadas ao ambiente público estão presentes na maior parte das canções.
O historiador Tiago André, em um episódio de seu podcast História Preta sobre Jovelina Pérola Negra ressalta como foi difícil o processo de pesquisa para a escrita do roteiro, como praticamente não existem fontes que apresentam entrevistas com ela. Eu também noto essa dificuldade, resgatar a sua trajetória é deparar-se com um mosaico de informações fragmentadas. Apesar disso, os seus discos estão disponíveis nos streamings de músicas e no YouTube.
O meu contato com a obra de Jovelina é recente e a cada dia surpreendo-me pela qualidade de suas músicas. Estou convencida que ela corresponde a um momento importante da História do samba de nosso país. O esforço a ser empregado é contribuir para que ela seja mais conhecida e tenha o reconhecimento merecido.
Referências
Diniz, André. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
Maciel, Ingra. Feirinha da Pavuna, patrimônio da população negra do Rio de Janeiro. Combate Racismo, 2 de abril de 2021. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2021/04/02/feirinha-da-pavuna-patrimonio-da-populacao-negra-do-rio-de-janeiro/#:~:text=Marca%20maior%20%C3%A9%20uma%20composi%C3%A7%C3%A3o,e%20por%20sua%20voz%20marcante. Acesso em: 17 de julho de 2023.
Werneck, Jurema Pinto. O samba segundo as Ialodês: mulheres negras e a cultura midática. 2007. 318f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Como citar este texto
SILVA, Cleonice Elias da. As esteias de Jovelina Perola Negra.A música de: História pública da música do Brasil, v. 5, n. 2, 2023. Disponível em: https://amusicade.com/perola-negra-1986-jovelina-perola-negra/ . Acesso em: