OS SONS DE UMA CIDADE: O ÁLBUM “DA LAMA AO CAOS” E O RECIFE DA CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI
Esdras Carlos de Lima Oliveira
Esdras Carlos de Lima Oliveira, pernambucano da Zona da Mata, é docente do Instituto Federal da Bahia. Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia, tem como áreas de interesse o Ensino de História e a História Cultural, focando especialmente as relações entre história, música e patrimônio cultural.
“Da lama para a fama. Recife inventa o mangue-beat” (TELES, 2000, p. 288), escreveu o crítico musical pernambucano José Teles em uma matéria para a Revista Bizz na qual apresentava para público mais amplo o grupo musical Chico Science & Nação Zumbi. Este grupo surgiu no começo da década de 1990 e junto a ele outra banda, a Mundo Livre S/A (MLSA), comandada por Fred Zero-Quatro. Com as duas, uma cena cultural que visava ampliar os espaços de divertimento e experimentações musicais ao fazer dialogar os sons regionais com o rock, ska e outras vertentes. “O mangue beat nasceu de uma repulsa de duas bandas […] contra os modelitos anuais pop importados”, sentenciava o jornalista na mesma matéria.
As duas bandas foram criadas a partir de dois grupos de amigos. Esses coletivos refletiam as origens espaciais de cada grupo – o primeiro da periferia de Olinda e o segundo da área de classe média de Jaboatão – e constituíram novas dinâmicas culturais no espaço recifense, reivindicando a revitalização de tradições ao conectar a cidade com o mundo através de sua produção simbólica.
Em relação à sonoridade, vemos diferenças nítidas entre elas. A CSNZ estava ligada a ritmos afro-caribenhos e afro-brasileiros, como maracatu e coco, além do rock, rap e do afrobeat, ritmo criado pelo nigeriano Fela Kuti a partir da fusão de ritmos africanos com o jazz americano, produzindo uma sonoridade onde a percussão domina a partir do uso das alfaias como uma das bases das canções do grupo. De outro lado, a MLSA tem uma sonoridade que dialoga com o samba, ritmo de origem baiana, mas reconfigurado no Rio de Janeiro da Primeira República, com o uso do cavaquinho, servindo como elemento centralizador e base para muitas canções. Além disso, o punk rock aparece nas letras das canções, fora a enorme referência a Jorge Benjor na musicalidade e nos títulos dos álbuns.
Manguebeat para principiantes
A primeira aparição dos mangueboys na imprensa ocorreu durante a promoção de uma das festas da época e foi a primeira vez que o termo “mangue” apareceu ligado a uma forma rítmica: o Jornal do Commércio, periódico que teve um importante papel na propagação e legitimação da cena Mangue, divulgou:
Todos os sons negros vão rolar hoje à noite no Espaço Oasis, na festa Black Planet. Soul, reggae, hip-hop, jazz, samba-reggae, funk, toast, ragamuffin e um novo gênero criado pelo mestre de cerimônia MC Chico Science, vocalista da banda Loustal […] O ritmo chama-se mangue. É a mistura de samba-reggae e embolada. O nome é dado em homenagem ao Daruê Malungo. (JC, 1991, p. 2)
A partir daí, com o aumento da popularidade das festas, do surgimento das duas bandas e do aumento da visibilidade que passaram a ter no Recife e em outros espaços de divulgação que surgiram, como o Festival Abril ProRock, a cena passou a ser objeto da atenção da imprensa cultural do Sudeste. O caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, e a Revista Bizz foram dois dos muitos veículos de comunicação que deram ampla divulgação às movimentações do Manguebeat a partir de 1993.
Na edição de março de 1994 da Bizz, o jornalista Otávio Rodrigues analisa o então recém-lançado primeiro álbum da banda recifense, carro-chefe da cena Mangue – fato importante para o seu processo de legitimação. Com uma narrativa rápida, característica do jornalismo feito para um público mais jovem, o jornalista rapidamente discorre sobre as músicas do álbum e sobre a importância da banda:
Da Lama Ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi, protocélula do mangue beat, já chega como disco básico. Para muita gente, o legal está na estreia de mais uma grande síntese-que não-dá-pra-classificar, mas tenta-se: maracatu eletrificado. Indo mais longe e soando mais moderno, mangue beat é uma cena. Não tem, decerto, a pompa flanelária de Seattle, nem é tão universal quanto os agora longínquos primeiros espasmos do reggae e do rap que já nasceram falando inglês. (BIZZ, 1994, p. 62)
Percebe-se o nítido papel do jornalismo cultural anunciando o sucesso dos mangueboys, endossando a postura da cena e proporcionando visibilidade e importância no meio artístico nacional, fazendo com que a cena saísse de mero fenômeno regional e passasse a ser vista como uma fértil produtora de sons nacionais.
Como se sugere na própria cena, Recife é uma cidade construída numa constante luta, sobre o bioma mangue. Esse ambiente, que é resultado do encontro da água doce dos rios que banham a área com a salinidade do mar, possibilita o aparecimento de uma fauna e flora ricos, bem característicos. Além disso, serviu de moradia e fonte de alimentação para muita gente ao longo da história, especialmente as populações mais pobres. E é exatamente nessa “mocambópolis”, cidade de palafitas, espremida entre os rios e mar, onde os problemas sociais e ambientais se complementam e se retroalimentam, que o caos criador emerge. Mangue é um símbolo da diversidade apropriado pelos mangueboys em discurso cultural, sem deixar de lado as contradições da ocupação do espaço da cidade.
O caos sonoro
Da Lama ao Caos foi o primeiro álbum de estúdio da cena e da Nação Zumbi, sob o comando de Chico Science; tendo sido gravado em contrato com o selo Chaos, parceiro da Sony. Contém 14 faixas, que deixam ver o ideário Mangue de modo cru e vibrante. Vamos nos deter em algumas questões por considerá-las fundamentais na construção do discurso do álbum e na repercussão posterior dos símbolos da cena Manguebeat.
A capa trouxe exatamente uma das imagens símbolos do Manguebeat, o caranguejo, citado nas canções e na mise en scéne de Chico Science, que imitava as patolas de animal com os dedos nos shows. Os manguezais são cenários para a alegoria proposta pelos mangueboys, algo já posto pelo texto de Fred Zero-Quatro, que pode ser encontrado no encarte: “Os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza” (ZERO-QUATRO, 1994).
O disco se inicia com a faixa dupla Monólogo ao pé do ouvido/ Banditismo por uma questão de classe. Nessa canção, de batidas e guitarras aceleradas, a voz de Chico vai contando histórias do subúrbio recifense. Faz uma quebra entre passado e presente, unindo histórias da favela com histórias do sertão do começo do século passado. Tece uma comparação entre o banditismo de Lampião e seu bando, com tipos urbanos. “Banditismo por pura maldade” (Lampião e seus cangaceiros) e “Banditismo por necessidade” (crianças que roubam para comer, por exemplo) são trechos que aparecem nas canções, demonstrando a visão acerca da pobreza recifense nas favelas. Além disso, cita nominalmente dois famosos bandidos, Galeguinho do Coque, originário de um pobre e violento bairro de Recife, e Biu do Olho Verde, assaltante que usava práticas de torturas em suas vítimas. Esses homens ficaram no imaginário popular, principalmente através dos jornais e dos programas policiais, e acabaram sendo utilizados pela banda para tentar mostrar sua visão do cotidiano das periferias recifenses.
Na canção A cidade, aparece o refluxo da modernidade e sua distopia. As urbes eram antes pontos de atração de indivíduos, suas dinâmicas fascinavam e alimentavam sonhos de uma vida melhor. Como no seguinte trecho “E a cidade se apresenta/ centro das ambições/ para mendigos ou ricos/ e outras armações”. No caso de Recife, milhares de famílias chegavam sem parar a cidade, indo morar em seus subúrbios, muitas conseguiam subempregos, enquanto outras se equilibravam nas palafitas do mangue, catando caranguejo para viver. Os arranha-céus construídos pelas mãos dos pedreiros moradores dos subúrbios são um dos símbolos da modernidade e pontilham a paisagem da cidade: “O Sol nasce e ilumina/ As pedras evoluídas/ que cresceram com a força de pedreiros suicidas”. Metrópoles são centros do capitalismo e, com isso, as contradições da dinâmica excludente do sistema se expõem mais nitidamente nelas: “A cidade não para/ A cidade só cresce/ O de cima sobe/ E o de baixo desce”. Essa face decadente é resultado de seu percurso histórico de concentração de renda e de exclusão, tanto espacial, quanto social; ela seduziu e depois excluiu aqueles que não serviam mais ao seu fluxo: “A cidade se encontra/ Prostituída/ Por aqueles que a usaram/ Em busca de saída/ Ilusora de pessoas/ De outros lugares / A cidade e sua fama vai além dos mares”.
Em outra das canções, exemplo da já citada Rios, Pontes e Overdrives, vemos uma espécie de caminhada pelos periféricos bairros recifenses:
É Macaxeira, Imbiribeira, Bom pastor/ É o Ibura, Ipsep, Torreão, Casa Amarela/ Boa Viagem, Jenipapo, Bonifácio/ Santo Amaro, Madalena, Boa Vista/ Dois Irmãos, é o Cais do porto, é Caxangá/ É Brasilit, Beberibe, CDU/ Capibaribe, é o Sertão eu falei.
Essa “andada” pelos subúrbios é reforçada com a descrição do cotidiano desses espaços da cidade, de suas dinâmicas, do dia-a-dia de violência nesses bairros e a partir da referência a criminosos famosos.
A cidade do Recife é, podemos assim dizer, a personagem principal deste álbum. Numa andança aleatória que passa por favelas, pontes com vista para o mangue, da praia até a mais distante favela, temos em Da Lama ao Caos, uma caminhada pela cidade do Recife, pela cidade-estuário, cidade-palafita. Não é um passeio pelas belezas naturais da cidade. Há um apego à parte suja, fétida da cidade. O mangue é parte da natureza, mas uma natureza suja, tortuosa como suas árvores, suja da lama e do lixo jogado pelos habitantes, paisagem pontilhada de barracos e de pessoas que sofrem com a desigualdade social. Mas, no discurso da cena Mangue, é justamente da parte menos favorecida da cidade que viria sua salvação. O mangue como terreno fértil, berço da nova identidade da cidade. A periferia, agora, seria um agente histórico, de transformação, reavivando a cidade-crise.
Já foram produzidas muitas análises sobre esse álbum, todas unânimes colocando-o como um dos mais relevantes da música brasileira contemporânea. A extinta MTV Brasil exibiu um programa sobre álbuns considerados basilares do rock nacional. Na primeira temporada, Da Lama ao Caos ganhou um episódio com entrevistas com os músicos, críticos e jornalistas apontando a relevância daquela produção. Nessa produção, o álbum da CSNZ foi posto ao lado de discos como Revoluções por Minuto, da RPM, Cabeça Dinossauro, dos Titãs e Tempos Modernos, de Lulu Santos. O álbum foi considerado pela revista Rolling Stones como um dos 100 álbuns mais importantes da música brasileira. Há um volume da coleção “O livro do disco” sobre este álbum da CSNZ, de autoria de Lorena Calábria, dentre outras publicações que atestam a versatilidade, o ar de novidade e a perenidade daquela produção.
De fato, sem sombra de dúvidas, o álbum merece estar no rol dos mais importantes da música brasileira contemporânea. Conseguiu romper com a aura de “regional”, com os estereótipos que normalmente são conectados à imagem de Recife e do Nordeste como um todo, demonstrando a singularidade da música produzida na região e as experimentações inovadoras para a sonoridade brasileira. Além disso, como analisamos em tese de doutorado (OLIVEIRA, 2020), a cena Manguebeat se tornou parte importante do imaginário da cidade do Recife, influenciando a construção de políticas públicas ao balizar parte do discurso oficial sobre cultura nas administrações do Partido dos Trabalhadores na cidade (2001 – 2012). Trata-se de álbum basilar na construção dessa representação do Recife que precisa ser olhado como um documento musical fundamental, não apenas da música regional, mas como artefato simbólico da cidade.
Referências
OLIVEIRA, Esdras Carlos de Lima Oliveira. “Impressionantes esculturas de lama”: a patrimonialização do Manguebeat (1997 – 2012). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia/MG, 2020.
PEREIRA, Marcelo. Sons negros no espaço Oasis. In: Jornal do Commércio. Caderno C. Recife, 1 de junho de 1991.
RODRIGUES, Otávio. Chico Science & Nação Zumbi – Sony – Da Lama Ao Caos. Revista Bizz. São Paulo, Ed. Azul, n. 104, 1994, p. 62
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. SP: Ed. 34, 2000.
ZERO-QUATRO, Fred. Caranguejos com cérebro. (1994) Governo de Recife-PE. Disponível em: em: http://www.recife.pe.gov.br/chicoscience/textos_manifesto1.html. Acesso em: 12 nov. 2021.
Como citar este texto
OLIVEIRA, Esdras Carlos de Lima. Os sons de uma cidade: O álbum Da lama ao caos e o Recife da Chico Science & Nação Zumbi. A música de: História pública da música do Brasil, v. 4, n. 1, 2022. Disponível em: https://amusicade.com/da-lama-ao-caos-1994-chico-science-nacao-zumbi/. Acesso em: 11th setembro 2024.