Arrigo Barnabé e o pop rock dos anos 1980
José Adriano Fenerick
José Adriano Fenerick é professor do Departamento de História da UNESP-Franca. Autor do livro Façanhas às próprias custas: A produção musical da Vanguarda Paulista e organizador de Música popular: História, memória e identidades, entre outros trabalhos.
Arrigo Barnabé, além de fortemente ligado à Vanguarda Paulista, é também um nome de referência quando o assunto é a vanguarda na música popular brasileira. O próprio compositor, no curso de sua já longa carreira, nunca questionou esse seu vínculo com a música ocidental de vanguarda – um interesse, por vezes, maior do que aquele pela música popular brasileira. Soma-se a isso a recorrente associação feita pela imprensa e pela crítica especializada entre Arrigo Barnabé e o dodecafonismo: Arrigo é frequentemente lembrado por seu trabalho inaugural, o LP Clara Crocodilo (1980), no qual se utiliza da técnica dodecafônica em várias canções, e do atonalismo livre em outras faixas deste mesmo LP. Ao longo da carreira de Arrigo, Clara Crocodilo foi tornando-se uma espécie de “marca registrada” de seu trabalho. O próprio compositor contribui para tanto, uma vez que regravou toda a Saga de Clara Crocodilo diversas vezes e com vários arranjos e se apresentou tocando as músicas deste seu primeiro LP em diversos teatros e shows. Embora Clara Crocodilo não seja um trabalho musical de fácil assimilação pelo público, tornou-se sinônimo de Arrigo Barnabé. Clara Crocodilo, dodecafonismo na música popular, vanguardismo e Arrigo Barnabé criaram um vínculo tão forte que, de certo modo, obscureceu seus outros trabalhos, não menos experimentais, mas voltados para outros campos musicais que não a vanguarda. É este o caso de seu segundo LP, o não menos importante Tubarões Voadores (1984).
Clara Crocodilo e Tubarões Voadores estabelecem entre si uma dialética que, de certo modo, traduz o trabalho de Arrigo Barnabé: a dialética entre a vanguarda e o pop. Não se trata de dizer que Clara Crocodilo é apenas vanguarda e Tubarões Voadores seja apenas pop, pois os canais se entrecruzam. Em Clara Crocodilo, por exemplo, ainda que as canções tenham sido compostas, até certo ponto, baseadas na técnica dodecafônica, a instrumentação utilizada na gravação do LP é basicamente a mesma de uma banda de rock (baixo, bateria, guitarra) com apoio de sopros. Já Tubarões Voadores se utiliza largamente de colagens sonoras e de música eletrônica (oriundas das vanguardas musicais), além de séries dodecafônicas (como na Canção do Astronauta), entre outras técnicas. Ou seja, nem o primeiro LP se coloca como uma vanguarda strictu sensu e nem o segundo como um disco pop convencional. Mas, tomados em conjunto, ajudam a explicar o projeto musical de Arrigo, no qual o elemento pop é tão importante quanto o de vanguarda. Não se trata de fusão entre erudito e popular, mas de tensão entre vanguarda e cultura pop. Uma tensão dialética que não procura se resolver – ou se fundir -, ela permanece em tensão. E Tubarões Voadores, tanto quanto Clara Crocodilo, explicita essa tensão.
O LP Tubarões Voadores foi gravado entre 1983 e 1984 (lançado em 1984) nos Estúdios Transamérica e Nosso Estúdio, em São Paulo. No álbum constam 10 canções: Tubarões Voadores, Crotalus Terríficus, Mística, Neide Manicure Pedicure, Canção do Astronauta, no lado A; e Kid Supérfluo – consumidor implacável, Papai não gostou, Lenda, A Europa Curvou-se ante o Brasil, e Mirante, no lado B. Tal como em Clara Crocodilo, a temática poética principal do LP Tubarões Voadores é a desumanização do indivíduo nas metrópoles. Os personagens monstruosos de Arrigo (Clara Crocodilo, Tubarões Voadores, Crotalus Terríficus etc.), expressam esse caráter desumanizador do ser ao mesmo tempo em que reafirmam a violência social presente na metrópole moderna. Das 10 canções do álbum Tubarões Voadores, destacaremos aqui a faixa título do LP e Kid Supérfluo para discutir a tensão entre pop e vanguarda no trabalho de Arrigo Barnabé.
Cultura de massa e música pop
Tubarões Voadores é uma canção construída totalmente a partir das HQs (um elemento da cultura pop por excelência). Trata-se de uma canção construída por módulos musicais (uma técnica também utilizada no LP Clara Crocodilo). Assim, não há linearidade na canção, tampouco o convencional “refrão”, geralmente o aspecto mais apropriável da música popular pelo ouvinte. Além disso, a canção está entremeada por ruídos, por efeitos sonoros, por intervenções rápidas de clusters sonoros que fragmentam o discurso sonoro e dificultam a linearidade da escuta. A canção se comporta como um HQ, quadro a quadro, posto que Tubarões Voadores foi musicada por Arrigo a partir de uma história em quadrinhos (HQ) de Luiz Gê.
Em Tubarões Voadores há inúmeros elementos oriundos da cultura de massa, que, utilizados de modo a quebrar a linearidade e a repetição da própria cultura de massa, reorganizam o sentido de música pop no Brasil da época, dos anos 1980. Trata-se de uma música pop que se utiliza da cultura de massa não apenas como meio de divulgação, mas como matéria prima para a canção. Elementos extraídos do rádio, em especial de programas supostamente jornalísticos que cobriam, com uma dramaticidade piegas, os boletins policiais (como os programas de Gil Gomes e Afanásio Jazadji, que fizeram muito sucesso nas rádios AM de São Paulo, durante a década de 1980) estão presentes na dicção “dramática” de Arrigo ao longo de toda a canção. Os módulos musicais, compostos a partir de cada estrofe da letra, criam uma sensação visual da canção (baseada em HQs), reforçada pela introdução de efeitos sonoros, que dão a sensação de “profundidade” e de simultaneidade de acontecimentos sonoros.
A canção é interpretada por Arrigo e Vânia Bastos. O primeiro tem a incumbência da narrativa, e a segunda de pontuar – cantando efetivamente – alguns trechos, fazendo assim um contraste entre fala e canto (se assemelhando à expressividade vocal do Sprechgesang desenvolvido por Schoenberg). Arrigo propõe um canto-falado na música (Sprechgesang), fazendo, ele mesmo, em alguns momentos, inflexões dramáticas kitsch – próximas às utilizadas pelos locutores dos programas de rádio citados, como, por exemplo, quando expressa um grito de dor, pela perda da filha, devorada pelos Tubarões Voadores: “Não! A minha filha, não!”
O recurso da “trilha sonora dentro da canção” (efeitos sonoros) reforça o caráter narrativo bem como os aspectos kitsch e da simultaneidade de camadas de sons (profundidade). No trecho: “Gritar não é recomendável/ A minha filh…”, a frase não é completada, pois se ouve um ruído de uma cabeça sendo decepada, ou devorada, por um dos Tubarões. Além disso, quando “Joãozinho” está “brincando”, há uma citação de “Ciranda, Cirandinha”, o que denota o aspecto infantil do personagem. Por fim, “a superposição de vozes e instrumentos em tonalidades diferentes criam para a percepção do desenho uma profundidade que dá a ilusão de movimento” (OLIVEIRA, 1990, p. 121).
Nessa canção, há a nítida impressão de uma ação cinematográfica (de desenho animado) ocorrendo a cada instante. Arrigo, assim, traz para a canção, juntamente com a utilização de técnicas da vanguarda musical europeia do século XX (como o Sprechgesang, a simultaneidade, a profundidade, a quebra da linearidade), elementos da cultura pop. Mas não se trata aqui da simples utilização de instrumentos oriundos do pop-rock (como a guitarra elétrica, ou algo assim), e sim de procedimentos que refazem o ritmo da escuta da canção, envolvida, agora, num clima de suspense de uma história em quadrinhos e com uma dramaticidade própria, como a encontrada em alguns filmes de desenho animado e/ou em certos programas de rádio de aspecto piegas.
Rock e consumo
Se Tubarões Voadores foi composta a partir da cultura pop, Kid Supérfluo, além de se apresentar como uma música pop dançante, muito similar ao rock new wave (ou pós punk), é também um comentário crítico á própria música pop, ao pop-rock da época. O rock, sua dicção, sempre esteve presente nas canções da Vanguarda Paulista. Arrigo Barnabé, Premê, Língua de Trapo e o grupo Rumo se utilizaram de uma “roupagem roqueira”, de uma instrumentação oriunda do universo do rock. Mesmo Itamar Assumpção por vezes também se aventurou por esse caminho. A pseudo-ópera de Arrigo, Gigante Negão (1998), por exemplo, foi composta para uma banda de rock pesado. Mas essa utilização de elementos do rock por parte da Vanguarda Paulista, muito mais uma utilização criativa que propriamente padronizadora, não impediu que alguns grupos, como o Língua de Trapo, por exemplo, o criticassem abertamente, desde Os Metaleiros Também Amam até Como é bom ser punk, entre outras.
Há uma crítica “velada”, em Kid Supérfluo, ao aspecto altamente mercadológico do rock – uma música, segundo essa canção, feita sobretudo para se ganhar dinheiro – que nos parece ser mais contundente e explicativa do que as realizadas pelo Língua de Trapo. Ela foi gravada no LP Tubarões Voadores, em ritmo dançante, repetitivo, e com uma instrumentação muito similar ao pop-rock dos anos 1980 do Brasil (baixo, guitarra, bateria e teclado eletrônico).
Kid Supérfluo e Dolores Descartável, como seus nomes completos sugerem, são dois personagens cujo traço principal é a futilidade, travestida em um consumismo desenfreado. É nesse sentido que precisamos compreender a crítica efetuada ao rock, por meio da carga simbólica de seus intérpretes. Arrigo Barnabé convidou Rita Lee para participar da gravação, que junto com o compositor cantou (e falou) a canção, num dueto alternado. O convite feito a Rita Lee não teve intenção de angariar prestígio, por parte de Arrigo Barnabé, ou facilitar a venda de seu LP, pegando uma carona, por assim dizer, na fama e na popularidade de Rita Lee. Ao contrário, ele foi feito exatamente no sentido de criticar esse aspecto do show business. Segundo Arrigo, Rita Lee aceitou o convite por se tratar de uma “pessoa muito inteligente” (FENERICK, 2007, p.139). Assim, ele pôde utilizar a carga simbólica que a ex-cantora dos Mutantes carrega consigo – a de ser o maior nome feminino do rock brasileiro – para criticar o próprio rock.
Rita Lee, na canção, é “Dolores Descartável”, mas também é simbolicamente o rock, e é este que está “em qualquer canal, em qualquer horário”. Esse aspecto fica mais claro quando ocorre um canto-falado entre “Dolores” (Rita Lee) e “Kid” (Arrigo Barnabé), que não fazia parte da letra original, mas foi incluído no final da canção, como um improviso:
A crítica ao rock efetuada por Arrigo Barnabé, é importante ressaltar, não se dá por seu aspecto alienígena em relação à música popular brasileira. O que nutre Arrigo em sua crítica não é a ideia do nacional-popular, muito vigente entre as esquerdas do país nos anos de 1960. A crítica também não é exatamente contra o rock em si, mas ao fato deste ter sido tão facilmente cooptado pela indústria cultural, anulando-se quase que totalmente enquanto uma força contestatória e criativa, perdendo qualquer sentido ou interesse. O rock, segundo a crítica de Arrigo, serviria apenas para a indústria fonográfica vender discos, incrementar seus lucros e transformar os “rebeldes rockeiros” em pop-stars, ricos homens de negócio. A crítica, portanto, se deve ao fato de esse gênero ter sido tão facilmente assimilado pelo mercado a ponto de até mesmo sua propalada “rebeldia” transformar-se corriqueiramente (não importando muito o “estilo”: hard rock, heavy metal, punk-rock etc.) em mero modismo aproveitado pela indústria cultural.
No trabalho de Arrigo, o elemento pop, tal qual o elemento vanguardista, é estruturante e fundamental – ambos tratados de maneira crítica, sem adesão total a nenhum deles. Na esteira do tropicalismo, ao qual Arrigo diz se filiar, esses elementos se colocam em permanente tensão. No entanto, como bem observou Tatit (1996; 2004), os dois projetos contidos no tropicalismo – o pop e o radical – ao longo dos anos 70 se bifurcam em projetos distintos, cada vez mais apartados um do outro. O pop se tornará cada vez mais pop, no sentido de massivo, e o radical ficará cada vez mais nas franjas do mercado de música. Nos anos 1980, o pop se vestiu, no Brasil, com o chamado Rock Nacional, ao passo que para a música radical couberam os pequenos espaços alternativos e independentes. Isso ofuscou, em larga medida, a compreensão do trabalho de Arrigo também como um dos aspectos da música pop da época.
Se o chamado “Rock dos 80” foi a introdução no Brasil do Rock pós-punk e da New Wave, o trabalho de Arrigo é um pop-rock de outra estirpe. Arrigo, mesmo sem a referência direta, possibilita ao rock brasileiro dialogar com a obra de Frank Zappa. As interconexões entre Zappa e Arrigo – seja na utilização da vanguarda, dos HQs, ou na tensão crítica com o mercado de música do qual eles fazem parte – são evidentes, embora nunca diretas e/ou feitas conscientemente. Portanto, o pop-rock brasileiro dos anos 1980 não se constituiu apenas de bandas coladas no pós-punk anglo-americano. Havia uma sobrevida do rock mais radical, que tensionava os limites tanto do pop como da vanguarda, como no caso de Arrigo Barnabé.
Referências
Cavazotti, André. Processos seriais na música de Arrigo Barnabé: as oito canções do LP Clara Crocodilo. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Departamento de música, UFRGS, 1993.
Fenerick, José Adriano. Façanhas às próprias custas. A produção musical da Vanguarda Paulista. 1979-2000. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007.
Oliveira, Fátima A. D. Trilha Sonora. Topografia semiótica paulistana nas canções independentes das décadas de 70 e 80. Campinas: Unicamp, 1990
Tatit, Luiz. O cancionista. São Paulo: Edusp, 1996
Tatit, Luiz. O século da canção. Cotia, SP: Ateliê, 2004