Elizeth Cardoso viveu, cantou e se despediu com todo o sentimento
Raphael Fernandes Lopes Farias
Raphael Fernandes Lopes Farias é doutorando e mestre em Comunicação e Cultura Midiática pela Universidade Paulista, ambos como bolsista CAPES. Pesquisador do Centro de Estudos em Música Música e Mídia – MusiMid e da rede REMEMORA – Rede Brasileira de Pesquisadorxs em Memória e Comunicação. É um dos organizadores e coautores do livro Uma vereda tropical… A presença da música hispânica no Brasil.
Este ano comemoramos o centenário de uma das grandes referências da música popular brasileira: a cantora Elizeth Cardoso. Assim como muitas coisas ao redor do mundo, as homenagens à cantora foram interrompidas devido à pandemia de Covid-19. Uma das formas que encontramos de mantê-la em evidência nesta efeméride foi a breve análise de um disco que recebeu a alcunha de “A Divina” por Haroldo Costa, com reforço de Vinícius de Moraes, ainda nos anos de 1950, segundo o jornalista carioca Ruy Castro (2015).
Ainda de acordo com Ruy Castro, a carreira de Elizeth começara cedo em boates, programas de rádio e Dance Clubs, mas estrearia mesmo para o grande público junto ao início da década de 1950. Contratada pelo novíssimo selo Todamérica, ela grava a composição de Chocolate intitulada Canção de Amor: “Saudade / torrente de paixão / emoção diferente / que aniquila a vida da gente / uma dor que não sei de onde vem […]”. Um estouro de vendas para a época, que consolidou cantora e gravadora no mercado e no gosto do público. Desde então, Elizeth despontou como um nome respeitável ao longo daquela década, gravando desde Ary Barroso e Jacob do Bandolim a Tom Jobim.
Este último, aliás, teve sua consagração atrelada à divina, quando ela aceitou aprender as canções da peça Orfeu da Conceição, na rua Nascimento Silva, 107. Em parceria com Vinícius de Moraes, as músicas foram para o Lp Canção do amor demais, na voz de Elizeth Cardoso, sob arranjos de Jobim e com participação de João Gilberto ao violão. Conta Ruy Castro que o grupo, na verdade, pleiteou primeiro Dolores Duran… Talvez um desejo de dar mais ares de modernidade às obras? De qualquer modo, àquela altura, Elizeth já era uma veterana, no melhor sentido, e o resultado foi um dos discos mais comentados da história da música popular brasileira, a despeito do fracasso de vendas à época.
Terceiro e último sinal: O finale no Teatro João Caetano
A tarefa de selecionar um disco de alguém de tamanha importância e de carreira longeva nos leva a escolher um momento único e fora do comumente esperado. Um álbum de importância singular e pouco comentado, a despeito da presença de inúmeras gravações consagradas daquela que oficializou a Bossa Nova em disco: Todo Sentimento. Trata-se do último Lp de Elizeth, gravado ao vivo no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, em 1989, acompanhada pelo músico Raphael Rabello. Para os bons apreciadores da MPB, Rabello dispensa as apresentações, mesmo assim, vale dizer que se trata de um violonista do quilate de Baden Powel, Paulinho Nogueira ou Guinga, mas que nos deixou prematuramente. Não fosse isso, poderia ter vivenciado uma carreira como a do argentino Oscar Alemán, que com seu violão conseguiu as bênçãos de Josephine Baker em Paris. Mencionar Alemán, aqui, tem um sentido especial, posto que viveu por um tempo nas ruas da cidade de Santos na primeira metade dos anos 1920, ainda bastante jovem, de onde tirou muitas lições do cosmopolitismo daquele lugar. Quem conta muito bem essa história é o jornalista e historiador argentino Sergio Pujol (2015). Pelo exposto, a gravação Cardoso-Rabello é um encontro de dois artistas brasileiros lendários, portanto, antológico.
O medievalista suíço Paul Zumthor (2014) alega que a performance está atrelada às circunstâncias, isto é, o tempo presente e tudo o que está a seu redor no momento performático. Nada restrito ao desempenho do artista, no entendimento corriqueiro, mas tudo o que compõe esse desempenho e que está suscetível as mais diversas variações que levam àquele resultado. O mesmo autor salienta a perda de tatilidade performática nas gravações por haver a ausência física do artista e de todo o ambiente ora colocado. No entanto, em se tratando de uma gravação de um show ao vivo – ou de algo pensado para ser apresentado ao vivo, temos precisamente nesse disco a captura sonora de uma performance: violão e voz, apenas. E plateia cheia, percebe-se na audição de Consolação (Baden Powell/Vinícius de Moraes). A cerca de oito meses de morrer, sabendo-se doente, Elizeth se entrega ao público em 12 dias de shows em um estilo, pode-se dizer, de ode à seresta. Assim que a agulha toca o disco, Elizeth já nos captura, a capella, com alguns versos de Faxineira das Canções. Ouvimos uma voz “[…] tão serena, tão segura e poderosa, radiante de emoções”, em um pot-porri com Faxineira Das Canções (Joyce) Camarim (Cartola/Hermínio Bello de Carvalho) e Refém Da Solidão (Baden Powell/Paulo César Pinheiro), inaugurando a audição.
O timbre, então grave e rouco, sem o verniz dos instrumentos sinfônicos e das orquestras que por várias vezes a acompanharam, praticamente desnuda, revisita canções marcantes ao longo de sua carreira, como Doce de Coco (Hermínio Bello de Carvalho/Jacob do Bandolim), Janelas Abertas e Modinha (Tom Jobim/Vinicius de Moraes) e incorpora a música que dá título ao álbum: Todo Sentimento (Chico Buarque/Cristóvão Bastos). Quase uma maneira de admitir que ela precisava então partir, mas, a tempo de poder gravar essa canção.
Se ao cantar Todo sentimento ouvimos a veterana mais contida, sem os costumazes rompantes oriundos do samba-canção – talvez por receio de deturpar a poética da composição – temos Elizeth em toda a sua essência em outras faixas que merecem ser destacadas. A mistura das canções Janelas Abertas, Canção da Manhã Feliz (Luiz Reis/Haroldo Barbosa) e Bom dia (Herivelto Martins/Aldo Cabral) em uma só faixa revela toda a plenitude vocal da cantora àquela altura: ataques repentinos, fortes, crescendo brilhantes e coloridos dinâmicos muito bem dosados – coisa na qual ela era mestra. Em Modinha, a letra e melodia marcantes, profundas, não obteve o potencial resultado dramático que poderia devido ao tom grave empregado para a voz. Contudo, o violão de Rabello está um deleite, tocando notas da melodia em vibrato e com pequenas alterações de tempo, entre acordes rasgados e fortes, contrapondo sutileza e intensidade (dinâmica e poética). Por fim, Violão e Violão Vadio criam um diálogo metalinguístico entre intérprete e instrumento, praticamente uma homenagem de uma cantora tão brasileira a um instrumento igualmente tão nacional, que acompanha cantores desde as primeiras canções populares, sobretudo urbanas, de que se tem registro.
``A mãe de todas as cantoras do Brasil``
Foi com essa frase que Chico Buarque concluiu o texto que fez para a contracapa de Todo o sentimento. Ao encontro do reconhecimento de Chico, outros grandes nomes da música popular prestaram reconhecimento e ajudaram a perpetuar o legado de Elizeth. Maysa Monjardim dizia que aprendeu a cantar com ela e que gostaria, inclusive, de sê-la, relata seu biógrafo, Lira Neto, acrescentando que a presença de Elizeth era frequente nos saraus promovidos na casa dos Monjardim.
Do samba à Bossa Nova, do choro ao samba-canção, Elizeth se consolidou como um dos principais nomes da música popular, ainda em um tempo de estigmas, quando o músico negro estava restrito a determinados gêneros musicais e a uma determinada cena artística. Sua imagem foi constantemente veiculada na mídia, seja nas antigas e super populares Revista do Rádio ou O Cruzeiro; ou nos programas de televisão, alguns próprios como o Bossasaudade, nos anos 1960, em que ajudou a alavancar nomes como Elis Regina e Claudette Soares, e a resgatar outros já veteranos como Ângela Maria e Nelson Gonçalves face às novidades musicais que surgiam – Jovem Guarda, Tropicalismo.
Aliás, frisa-se que, no lastro do que dissemos até aqui, Elizeth Cardoso é, sem dúvida, um grande nome da MPB, sigla que ficou convencionada ao que veio a partir do tropicalismo, mas que em seu sentido literal, não comporta tal restrição. Encontramos canções que marcaram a carreira de nossa homenageada no repertório de artistas como Zezé Motta, Mônica Salmaso, Ná Ozzetti, Alaíde Costa, Rosa Passos e Ayrton Montarroyos, o que reforça a tese de que a divina certamente constitui um verdadeiro patrimônio musical brasileiro, fonte de repertório, estilo, memória e por que não, resistência, em um país que, no entendimento deste autor, precisa se empenhar mais no exercício de olhar para trás, e de ouvidos bem atentos.
Referências
CASTRO, Ruy. A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção. São Paulo: Companhia das letras, 2015.
NETO, Lira. Maysa: só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
PUJOL, Sergio. Oscar Alemán: la guitarra embrujada. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Planeta, 2015.
ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção e Leitura. São Paulo: Cosac Naif, 2014.
Outras fontes
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.
DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Ed. 34, 2004.
Como citar este texto
FARIAS, Raphael Fernandes Lopes. Elizeth Cardoso viveu, cantou e se despediu com todo o sentimento. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 2, 2020. Disponível em: https://amusicade.com/todo-sentimento-1989-elizeth-cardoso/. Acesso em: 2nd abril 2025.