SALVE, A CRIANÇA DA MATA, YORIMATÃ OKÊ ARUÊ!
Márcia Cristina Fráguas
Márcia Cristina Fráguas é mestra em Literatura pela USP e autora da dissertação: “It´s a long way: poética do exílio na obra fonográfica de Caetano Veloso (1969-1972)”. É doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UERJ.
Em abril de 2023, a gravadora Três Selos, que tem feito um minucioso trabalho de curadoria e relançamento de clássicos da música popular brasileira em primorosas edições em vinil, relançou Luli e Lucinha (1979). Expoente da discografia nacional dos anos 70, a obra estava há tempos sem edições em vinil ou em mídias digitais, portanto, também fora dos serviços de streaming.
A saga da dupla de compositoras foi tema do documentário Yorimatã (BRA, 2014) de Rafael Saar, que venceu o festival de documentários In-edit (SP) no mesmo ano de seu lançamento e está disponível para exibição no site do evento. O relançamento da Três Selos vem em vinil de 180g na cor amarela, na mesma tonalidade do encarte, com capa gatefold em papel cartonado. Inclui ainda um poster e um livreto com depoimento de Lucina e outros artistas sobre o disco e detalhes sobre o processo de gravação da obra, originalmente lançada em 1979 pelo selo independente da dupla, Nós lá em casa. O som da nova edição em vinil teve masterização cuidadosa de Arthur Joly, texto e edição de conteúdo de Lorena Calábria e Ramiro Zwetsch.
INSPIRAÇÃO E INVENÇÃO NO ENCONTRO DE LUHLI E LUCINA
Heloísa Orosco Borges (1945-2018), a Luli, que mais tarde passou a assinar Luhli, era carioca da mesma Vila Isabel de Noel Rosa, quarta filha de quatro irmãs, cujo pai era cientista, descendente de espanhóis. O lado musical veio da família materna, cujo sobrenome era Barros. Asmática desde os 7 anos, Luhli aprendeu violão como uma brincadeira substituta, já que não podia sair para estar com as outras crianças. A música se tornou coisa séria e pavimentou o caminho da compositora, que era conhecida como “a sambista ruiva”, sobretudo após a descoberta da música de João Gilberto em Chega de Saudade (1959).
No início dos anos 60, a gravadora Philips lançou na mesma leva Nara Leão, Elis Regina, Taiguara e Luhli, que ainda assinava Luli. Em depoimento a Charles Gavin no programa do Canal Brasil “O Som do Vinil”, a compositora definiu esse primeiro registro como “um disco bem povo, bem Opinião”, em referência ao show dirigido por Augusto Boal e estrelado por Nara Leão, Zé Keti e João do Vale em 1964. Luhli, aliás, chegou a ser cogitada para substituir Nara no espetáculo. Acabou impedida pelos pais, que eram contrários à sua carreira artística, e a vaga foi ocupada por Maria Bethânia. Frustrada com as circunstâncias, Luhli ficou sete anos sem cantar depois desse primeiro disco pronto.
Lucia Helena Carvalho Silva, que se tornou Lucelena, depois Lucinha, como no álbum de 1979, e que hoje assina Lucina, saiu de Cuiabá (MT) ainda bebê e se mudou com a família para Belém (PA), vivendo em contato com a Floresta Amazônica. A mais velha de quatro irmãs sofreu ao ter de abandonar o convívio próximo com a natureza para se mudar para o Rio de Janeiro. Fã de Beatles, das polcas paraguaias que remetiam à vida em Cuiabá, música clássica e bossa nova, Lucina também foi impactada pela revolução musical iniciada por João Gilberto.
Em 1967, Luhli se casa com o fotógrafo e cineasta Luiz Fernando Borges da Fonseca. O casal se muda para um casarão hippie no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, que vivia aberto para os amigos músicos. Dentre os mais ilustres, Ney Matogrosso, que Luhli indicaria para João Ricardo quando este procurava um vocalista para o que viria a ser a banda Secos e Molhados. O grupo gravou em seu disco de estreia “O Vira” e “Fala”, parcerias de Luhli com João Ricardo. Mais tarde, já em carreira solo, Ney Matogrosso gravaria outras canções da parceria Luhli e Lucina, tais como “Napoleão”, “Bandolero”, “Coração Aprisionado”, entre outras.
Na efervescência de Santa Teresa se dá o encontro da dupla de compositoras, Luhli com 25 anos, Lucina com 21. Em três anos de amizade, compõem inúmeras canções, frequentam o Píer de Ipanema, onde ficavam as Dunas da Gal ou Dunas do Barato, ponto de encontro dos desbundados na praia de Ipanema. As influências musicais jorravam num amálgama composto por música ibérica e cigana; pelos tambores da umbanda, culto no qual ambas se consagraram ogãs; pela experiência do amor livre; da experimentação psicodélica; pela vida em comunidade em estreito contato com a natureza. O fruto dessas vivências seria plasmado nas composições do que viria a ser o disco lançado em 1979, Luli e Lucinha – como as compositoras assinavam seus nomes naquela época.
A CASA DE FILGUEIRAS E O PROCESSO DE COMPOSIÇÃO DE LULI E LUCINHA (1979)
Em meados dos anos 70, a dupla de compositoras chegou a ser convidada por Sérgio Dias para formar os novos Mutantes, mas depois da decepção com um malfadado compacto sabotado pela própria gravadora, Luhli e Lucina decidem viver um outro sonho, no qual fosse possível morar perto da natureza, criar filhos, fazer horta, artesanato, pão caseiro e compor muitas canções. A essa altura, Luhli e Luiz Fernando já tinham duas filhas pequenas, Flor e Júlia, quando Luiz e Lucina se apaixonam e eles passam a viver uma relação a três num sítio em Filgueiras, em Mangaratiba (RJ), para onde se mudaram em busca do sonho comunitário. A casa ficava no alto de uma encosta que dava vista para toda a baía de Sepetiba. Vivendo entre a mata e o mar, cercadas por cachoeiras, “nos impregnando de nós mesmas”, como Luhli definiu em depoimento a Charles Gavin, com a sonoridade das águas e do vento, compartilhando a vida cotidiana e recebendo os amigos que vinham visitar, numa época em que o percurso entre o Rio de Janeiro e Mangaratiba levava 9 horas, Luhli e Lucina escrevem mais de 300 canções, dentre elas, as 12 que compõem o álbum Luli e Lucinha (1979).
A história da música popular brasileira tende a valorizar mais as intérpretes do que as compositoras, sendo notável que a dupla, além de compor e cantar, foi a primeira a introduzir tambores em suas gravações e performances. Além de ogãs, Luhli também construía os tambores que eram utilizados pela dupla.
ANTONIO ADOLFO E O CAMINHO DOS DISCOS INDEPENDENTES
Luhli conhecia Antonio Adolfo dos tempos de colégio. Compositor de “Sá Marina” em parceria com Tibério Gaspar, um grande sucesso na voz de Wilson Simonal, Adolfo estava cansado da pressão da gravadora para compor novos hits. Em 1977, recém-chegado dos EUA, Antonio Adolfo grava Feito em Casa, primeiro disco totalmente independente lançado no Brasil. No mesmo ano, Danilo Caymmi seguiria a trilha da independência em Cheiro Verde.
Antonio Adolfo decide telefonar para a dupla em Mangaratiba a fim de propor a gravação de um disco independente, que teria tudo a ver com o estilo alternativo que elas já vinham vivendo. O timing era perfeito. Lucina tinha acabado de receber uma herança que custearia as gravações no Sono-Viso, estúdio de 8 canais indicado por Adolfo, de propriedade de padres católicos. Gravado entre dezembro de 1977 e junho de 1978, o LP era a realização de um sonho coletivo, e a dupla tomou todas as decisões artísticas para “fazer de outro jeito, barato e com qualidade”, como revelou Luhli no documentário Yorimatã (2014).
O processo de composição consistia em Luhli e Lucina gravarem todas as bases de violão, para em seguida convidarem os outros músicos, que eram incentivados a criar livremente em cima daquilo que já estava registrado. Composto de 6 músicas de cada lado, Luli e Lucinha abre com a faixa instrumental “Pois é”, que já revela o sofisticado trabalho vocal da dupla, entremeado pela flauta de Nivaldo Ornellas, fazendo o papel de uma terceira voz sobre a cama de violões. Luhli relatou a Charles Gavin que, em geral, ela fazia o segundo violão e a segunda voz, mais aguda, sobre os graves de Lucina. Ainda destacou que aprendeu a compor hábeis “parafusos” com a voz de Lucina, fazendo com que soassem como mais do que somente duas vozes juntas. “Pois é” dialoga com “Ai, ai”, que abre o lado B do disco. De início instrumental, a faixa também traz a flauta de Nivaldo Ornellas, mas logo se torna quase um samba-bossa, com a presença de cuíca e agogô compondo com os violões e jogo de vozes, complementados pelo rontonton de Chico Batera.
Diversas canções do álbum retratam a vida cotidiana compartilhada em meio a natureza de Mangaratiba e a imersão da dupla em seus processos de viver e criar coletivamente. Em “Cheiro de Rosa”, segunda faixa do lado A, quase podemos ver as janelas do sítio de Filgueiras se abrindo diante da baía de Sapetiba: “Abri a porta, varri a soleira e parei no tempo/ vi o calor afastar toda a sombra da noite que passou”. Já a natureza, como uma grande mulher grávida da criança da mata que é saudada na canção “Yorimatã Okê Aruê”, irrompe na terceira faixa do disco. O título, segundo as compositoras, é uma frase mágica, com poder de abrir caminhos, fazer com que tudo dê certo: “Selvagem o corpo afoga todo o medo na primeira lágrima/ Água chorada em verde escuro pote (…)/ Filha da mata tenho a preparar/ Yorimatã Okê Aruê/ Abrir caminho/ fazer bonita a vida/ vida que virá”.
Lançado em 1979, Luli e Lucinha vendeu 50 mil cópias de maneira independente, pela caixa postal das compositoras e também na estrada, numa Kombi convertida em trailer, na qual viajaram o país, “num esquema Bye-bye Brasil”, como revelou Luhli em Yorimatã (2014), em referência ao filme homônimo de Cacá Diegues, no qual uma trupe de artistas viaja de caminhão, se apresentando nos rincões do Brasil.
O álbum foi a decantação de todo um processo de viver, amar e criar coletivamente, o que dá um caráter político à obra, da vivência do corpo, da experimentação de formas alternativas de amar e se relacionar, do projeto de uma vida autossustentável em comunidade, junto à natureza, enfim, de uma ética que engrandece o caráter estético de inventividade, lirismo e sofisticação formal das canções. De volta agora em grande estilo, na edição da gravadora Três Selos, Luli e Lucinha (1979), se faz não só atual, mas também belo e necessário.
Luhli, que faria 78 anos no dia 19 de junho de 2023, foi homenageada por Lucina com o lançamento de Nave em Movimento – A música artesanal de Luli & Lucina, que traz 11 canções inéditas da dupla, mais duas já lançadas anteriormente. Para quem deseja conhecer a belíssima obra de Luhli e Lucina, os dois discos não poderiam chegar em hora mais oportuna, nesses tempos de embate entre autoritarismos e a busca por novas formas de ser e estar no mundo.
Fontes audiovisuais
YORIMATÃ. Direção: Rafael Saar. Brasil, 2014
O SOM do Vinil. Apresentação: Charles Gavin, Rio de Janeiro: Canal Brasil, 2012.
Como citar este texto
FRÁGUAS, Márcia Cristina. Salve, a criança da mata, Yorimatã Okê Aruê!. A música de: História pública da música do Brasil, v. 5, n. 1, 2023. Disponível em: https://amusicade.com/luli-e-lucinha-1979-luli-e-lucinha/ . Acesso em: 9th novembro 2024.