Te recuerdo Víctor Jara: Identidade e solidariedade latino-americana em Lo único que tengo
Natália Ayo Schmiedecke
Natália Ayo Schmiedecke é mestre e doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Atualmente realiza estágio de Pós-Doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP), com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Autora do livro Não há revolução sem canções, entre outros trabalhos acadêmicos centrados na história e na música latino-americana.
“Para Víctor Jara eram suas mãos, e ele as perdeu. […] Para nós é nosso canto, nossa música, o mesmo trabalho, com as mesmas mãos, pelas mesmas vidas almejadas. Para nós é a esperança de construir juntos essas mesmas vidas com nossas próprias mãos. Con todas las manos. […]”. Com estas palavras, inscritas na contracapa interna de seu segundo LP, o conjunto Tarancón homenageava o músico Víctor Jara, assassinado quatro anos antes pelos militares chilenos. Na sequência, foi inserida a letra da canção de Jara que dá título ao disco, Lo único que tengo, além de uma foto da lápide do cemitério onde seu corpo foi enterrado, acompanhada pela seguinte legenda: “Nos cemitérios do Chile, os mortos de setembro recuperam a vida. Das lápides de suas tumbas, eles ainda resistem”.
Assim, em plena ditadura brasileira, o conjunto trazia uma mensagem de resistência, colocando-se como continuador da canção engajada latino-americana que floresceu em diversos países do continente nos anos anteriores e que havia sido fortemente reprimida com a chegada dos militares ao poder.
Formado em São Paulo em meados dos anos 1970, tendo como incentivadores Dercio Marques e Zé Gomes, o Tarancón atuava principalmente em circuitos universitários. Sua formação inicial era integrada por Miriam Miráh, Emílio de Angeles, Marly Pedrassa, Alice Lumi, Halter Maia, Jair do Nascimento (Jica) e Juan Falú – este último um violonista e compositor argentino exilado no Brasil. Entre as diversas mudanças ocorridas no conjunto nos anos seguintes, destaca-se a entrada de Sérgio Ferez (Turcão), substituindo Falú, em 1979.
Uma ``Nueva Canción``, por outra América
Assim como ocorria em conjuntos da Nueva Canción, como os chilenos Quilapayún e Inti-Illimani, os integrantes do Tarancón tocavam uma variedade de instrumentos folclóricos latino-americanos, revezando-se em cada canção. Por exemplo: no álbum de estreia do grupo, Gracias a la vida (1976), Alice toca tarka na primeira faixa; guitarrón na segunda; bombo na sétima; flauta doce na oitava e na nona; violão na décima e na última; além de cantar em alguns momentos. A relevante presença de mulheres no conjunto é, aliás, uma originalidade do Tarancón em relação aos movimentos da Nueva Canción, essencialmente masculinos, não obstante terem como precursora e referência fundamental Violeta Parra. Com exceção de sua filha, Isabel Parra, e de Mercedes Sosa, que desenvolveram carreira solo, não encontramos nomes femininos entre os principais ícones da Nueva Canción.
A canção que dá título a Gracias a la vida é uma famosa composição de Violeta, gravada também em 1976 por Elis Regina. O disco contém doze faixas, representantes de diferentes gêneros musicais latino-americanos (como tonada potosina, taquirari, guajira, cueca e toada brasileira). Quatro delas são composições de expoentes da Nueva Canción Chilena: Violeta (Gracias a la vida e Los pueblos americanos), Víctor Jara (Te Recuerdo Amanda, que naquele momento estava censurada no Chile e na Argentina) e Rolando Alarcón (Parabién de la paloma). Considerado outro precursor dos movimentos da Nueva Canción, o argentino Atahualpa Yupanqui também aparece representado no disco (Soy Libre Soy Bueno).
As demais faixas se dividem entre músicas folclóricas de autoria desconhecida e músicas “em estilo folclórico” compostas por músicos de diferentes países. Parte delas havia sido gravada previamente por músicos da Nueva Canción – caso de Tinku (Víctor Jara, 1970; Inti-Illimani, 1973); Nanas de la Cebolla (Daniel Viglietti, 1972); e El Buen Borincano (Quilapayún, 1970). Uma exceção é En la mina El Tarancón, que inspirou o nome do conjunto. Tema anônimo de origem espanhola, faz referência a um acidente ocorrido em 1946 na mina de carvão homônima, localizada nas Astúrias, que ocasionou a morte de onze trabalhadores. Outro caso interessante é o de “Não mande a geada”, de Maria do Céu, a única faixa do disco cantada em português.
Lo único que tengo
Neste primeiro disco, está presente a característica mais marcante do Tarancón: o espírito latino-americanista, presente na letra de Los pueblos americanos, no canto em espanhol e na opção por abranger diferentes gêneros e instrumentos latino-americanos. Tal proposta se explicitaria no disco seguinte, Lo único que tengo. Assim como Gracias a la vida, este LP foi lançado pelo selo independente Crazy e trazia na capa uma ilustração de Felix Nieto, artista que também participava dos shows do conjunto, pintando grandes telas que retratavam os temas abordados nas canções. Na capa de Lo único que tengo, aparece ilustrado um homem visto de cima, vestindo um traje típico do camponês latino-americano: chapéu (que esconde a cabeça), poncho colorido, calça e sandálias. Ele está com os braços abertos e as mãos viradas para cima, remetendo à capa do disco Pongo en tus manos abiertas… (1969), de Víctor Jara, que, como vimos, é homenageado no texto da contracapa.
Em comparação com o disco anterior, este possui um tom mais engajado, como podemos observar na primeira faixa, El cantar tiene sentido, tema do folclore venezuelano gravado anteriormente pelos chilenos Isabel e Ángel Parra (1969). Seguem-se outras músicas pertencentes ao cancioneiro folclórico latino-americano, muitas delas dadas a conhecer por músicos identificados com a Nueva Canción. Duerme negrito, por exemplo, é apresentada como sendo de autoria de Bola de Nieve, mas há aqui uma confusão com uma composição do músico cubano intitulada Drume negrita. A canção gravada pelo Tarancón foi popularizada por Atahualpa Yupanqui, que afirmava tê-la conhecido na fronteira da Venezuela com a Colômbia, e regravada posteriormente por Daniel Viglietti, Mercedes Sosa, Alfredo Zitarrosa e Víctor Jara, entre outros.
As faixas 3 (Canto del água), 4 (Tan alta que está la luna) e 6 (Canción e huayno) também correspondem a temas folclóricos – respectivamente, da Venezuela, da Argentina e da Bolívia. Já a faixa 5, (Urubamba), é uma composição em estilo folclórico do charanguista argentino Jorge Milchberg, integrante da banda Los Incas, que desde os anos 1950 vinha promovendo com êxito a música andina em Paris. A mescla nos discos, de músicas de autoria conhecida com temas folclóricos tradicionais foi uma prática comum entre os artistas da Nueva Canción e tinha como base o projeto exposto no Manifiesto del Nuevo Cancionero, lançado por um grupo de artistas argentinos em 1963. Defendendo o caráter dinâmico do folclore, o documento reivindicava a incorporação de temáticas contemporâneas e de novas formas estilísticas para aproximar a canção da problemática política e social. Esse discurso esteve pautado em dois pressupostos básicos: a necessidade de reconhecer no repertório tradicional os elementos “progressistas” que deveriam ser resgatados; e a possibilidade de, baseando-se nessas formas, criar novas canções folclóricas.
Folclore e crítica social
Estas concepções aparecem no disco de múltiplas maneiras. Em primeiro lugar, as canções selecionadas abordam o universo dos sujeitos populares (folclore camponês e indígena), fazendo, em alguns casos, críticas sociais explícitas. Como veremos, esta é a tônica predominante do lado B, mas também está presente na já mencionada canção de ninar Duerme negrito: “Duerme, duerme negrito, / que tu mama está en el campo […] / trabajando duramente, trabajando sí, / trabajando y no le pagan, trabajando sí, / trabajando y va tosiendo, trabajando sí, / trabajando y va de luto, trabajando sí, / […]”.
A mescla de instrumentos de distintas procedências e a tendência a mover o folclore do papel funcional para o artístico por meio de diferentes recursos musicais também são marcas da Nueva Canción presentes no LP. A influência dos conjuntos chilenos, que haviam gravado anteriormente algumas canções, é especialmente perceptível. Em Canción y huano, o arranjo instrumental é muito parecido com o do grupo Illapu (1972), mas o Tarancón inova na maneira de cantar, sobrepondo as melodias de vozes masculinas e femininas. Já a versão de Tan alta que está la luna, está mais próxima daquela feita anteriormente pelo Quilapayún (1972) do que da gravação original da dupla Leda y María (1957), que recopilaram a canção no Norte argentino. Centrada na temática amorosa, a canção está dividida em duas partes: em A, o eu-lírico lamenta pela perda da amante e em B, despede-se dela. Nas versões do Quilapayún e do Tarancón, a fim de propiciar variações sonoras, diferentes formações vocais são empregadas durante a música – que, com exceção da introdução no caso do conjunto brasileiro (que também utiliza a quena), conta apenas com acompanhamento instrumental do bombo –, alternando passagens a solo com duos e coros, os quais atuam ora na harmonia, ora na melodia.
Lado B
Iniciado por Canción y huayno, o lado B do disco traz mais quatro faixas – todas composições de músicos da Nueva Canción. Duas delas são do artista homenageado, Víctor Jara. Plegaria a un labrador foi a vencedora do Primer Festival de la Nueva Canción Chilena (1969), onde o nome que viria a batizar o movimento foi cunhado. Em sua letra, que mescla versos das orações católicas “Pai-nosso” e “Ave Maria”, a religiosidade popular é tomada como base para compor uma mensagem de luta. Afirmando o protagonismo do camponês nas transformações sociais almejadas, a canção clama pela união dos setores populares: “Líbranos de aquel que nos domina / en la miseria. / Tráenos tu reino de justicia / e igualdad. / […] Levántate y mírate las manos / para crecer estréchala a tu hermano. / Juntos iremos unidos en la sangre / ahora y en la hora de nuestra muerte. / Amén”.
A imagem das mãos, fortemente evocada por Jara em suas obras e recuperada no texto incluído pelo Tarancón na contracapa, aparece novamente na faixa que dá nome ao disco. A versão original integrava o LP La Población (1972), em que o músico chileno contava a história de algumas favelas e assentamentos santiaguinos, desde a ocupação das terras pelos trabalhadores. O tema da desigualdade social aparece novamente na letra desta canção: “Y mis manos son lo único que tengo / y mis manos son mi amor y mi sustento. / No hay casa donde llegar / […] / cuando no tengo un lugar en la tierra”. A seriedade do tema abordado é reforçada pelo acompanhamento instrumental, que se reduz ao violão – formato predominante no lado B do LP.
As outras faixas que o integram são Milonga de andar lejos, do uruguaio Daniel Viglietti, e Canción con todos, dos argentinos César Isella e Armando Tejada Gómez, gravada por Mercedes Sosa em 1970. Ambas entregam uma mensagem latino-americanista, lamentando “Tanta distancia y camino, / tan diferentes banderas” quando “la pobreza es la misma / los mismos hombres esperan” e bradando: “Yo quiero romper mi mapa, / formar el mapa de todos”; “Canta conmigo, canta, / hermano americano. / Libera tu esperanza / con un grito en la voz”. Se nos anos 1960 e início dos 1970 o “sueño americano” parecia possível, na nova realidade instaurada pelas ditaduras – que é aquela em que o Tarancón se situa –, a reivindicação de tal unidade correspondia ao projeto de constituir uma rede de solidariedade entre os países da região como forma de resistência. Daí o significado e a força de reivindicar a figura de Víctor Jara, “restituindo-lhe a vida”.
Cancioneiro latino-americano e MPB
Cancioneiro latino-americano e MPB
Nos dois discos comentados, nota-se a ausência de canções próprias e a baixa presença do repertório correspondente ao Brasil, que se limita a uma faixa de Gracias a la vida. Nos LPs seguintes, esta situação mudaria: Rever minha terra (1979) inicia uma fase mais autoral, que tem como marca a fusão de timbres e elementos sonoros típicos do cancioneiro latino-americano com o universo da MPB. De qualquer forma, é importante perceber que a intenção de integrar o Brasil na América Latina (ou Iberoamérica, como o conjunto preferia denominar) se concretiza na própria atitude de trazer a música e a língua dos países vizinhos para os palcos e discos brasileiros, difundindo-as entre os setores comprometidos com a luta pela redemocratização. Com isso, o conjunto sinalizava a existência de uma cultura compartilhada e apontava para um horizonte comum.
Diante disso, como explicar a tolerância da censura? Em entrevista para a historiadora Tânia Garcia, os membros do conjunto aventaram como possibilidades seu trabalho ser escassamente veiculado nos meios de comunicação; seu repertório musical ser composto basicamente por canções folclóricas latino-americanas; e o canto em língua estrangeira. O fato de ter sido subestimado – ou mesmo desconhecido – pelos censores permitiu que a proposta do conjunto (nas palavras de Garcia, a “invenção sonora de um Brasil latino-americano”) florecesse e se tornasse um referencial importante para grupos surgidos posteriormente. É o caso do Raíces de América, surgido já em 1979.
Tendo dividido o palco diversas vezes com o Tarancón, que também permanece na ativa, o Raíces de América conta atualmente com Miriam Miráh em sua formação. Entre os grupos mais novos, destaca-se o EntreLatinos, que vem cumprindo um papel importante nos meios de esquerda e que define assim a proposta que orienta seu trabalho: “sempre lembrar que o Brasil é um país latino-americano, que nós somos latino-americanos”.
Referências
ENTRELATINOS: o resgate do canto popular da América Latina. Cultura Brasil, 5 nov. 2018.
GARCIA, Tânia. “Tarancón: invenção sonora de um Brasil latino-americano”. Artcultura, v. 8, n. 13, p. 175-188, jul.-dez. 2006.
GOMES, Caio S. “Quando um muro separa, uma ponte une”: Conexões transnacionais na canção engajada na América Latina (anos 1960/70). São Paulo: Alameda, 2015.
SCHMIEDECKE, Natália. Não há revolução sem canções: utopia revolucionária na Nova Canção Chilena, 1966-1973. São Paulo: Alameda, 2015.
TARANCÓN. Gracias a la vida. São Paulo: Crazy, 1976. LP.
TARANCÓN. Lo único que tengo. São Paulo: Crazy, 1977. LP.
TARANCÓN. Rever minha terra. São Paulo: Crazy, 1979. LP.