O instrumental e o vocal na música popular brasileira: Vânia Bastos e Marcos Paiva em Concerto para Pixinguinha
Virgínia de Almeida Bessa
Virgínia de Almeida Bessa é pós-doutoranda e professora colaboradora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Doutora em História Social, é membro do grupo de pesquisa ‘Entre a memória e a história da música’ (DH-USP), do Laboratório de Estudos da Música e do Som – LEMS (IA-Unicamp) e do Laboratório Interdisciplinar do IEB – LabIEB. É autora do livro A escuta singular de Pixinguinha.
Figura incontornável da música popular brasileira, Alfredo da Rocha Viana Junior (1897-1973), mais conhecido como Pixinguinha, é um desses ícones da cultura nacional sobre quem mais se fala do que efetivamente se conhece. Reverenciado como um dos principais sistematizadores da linguagem do choro, ele também compôs sambas, foi flautista virtuoso e saxofonista inventivo, regeu bandas e orquestras, trabalhou regularmente como arranjador na indústria fonográfica e no rádio, além de compor para teatro e cinema. Ainda assim, quando sua memória é evocada, as referências a ele raramente ultrapassam a de autor de Carinhoso.
Lançado sob a forma de disco em julho de 2016, após três anos circulando pelos palcos de diferentes cidades brasileiras, Concerto para Pixinguinha explora algumas dessas múltiplas facetas do artista. O álbum documenta o show homônimo estreado em 2013, ano em que se completavam 40 anos da morte do artista. É estrelado pela cantora Vânia Bastos e pelo contrabaixista e arranjador Marcos Paiva, acompanhados por Nelton Essi no vibrafone, Jônatas Sansão na bateria e César Roversi nos sopros (clarinete, flauta e saxofone tenor e soprano). Além de prestar homenagem a um dos mais reconhecidos músicos cariocas, Concerto para Pixinguinha também marca os 30 anos de carreira solo da cantora paulista, aproximando essas duas trajetórias, tão diversas, por meio de um repertório em que se aliam a tradição instrumental e a vocação cancioneira que perpassam a história da música popular brasileira.
Atuando no Rio de Janeiro da primeira metade do século XX, Pixinguinha transitou por diferentes espaços de produção e difusão da música urbana carioca, desde as famosas festas da casa de tia Ciata e os rituais religiosos afro-brasileiros, onde atuava como ogã (tocador de atabaque), até os primeiros estúdios de gravação elétrica da cidade, compondo arranjos para os discos dos principais artistas comerciais brasileiros dos anos 1920 e 1930, como Carmen Miranda, Francisco Alves e Carlos Galhardo. Entre um extremo e outro, tocou na sala de espera de cinemas cariocas, foi maestro e arranjador no teatro de revista e esteve à frente de um dos primeiros grupos de música popular a se tornar conhecido nacionalmente, Os Oito Batutas, com o qual viajou para a França em 1922. Numa sociedade em que as marcas da escravidão ainda eram muito presentes, Pixinguinha soube se valer dos espaços de atuação profissional surgidos com a indústria do entretenimento. Afinal, este foi um dos raros nichos de trabalho cujas portas não foram fechadas aos negros brasileiros, preteridos, em outras áreas, pelo imigrante europeu no bojo do projeto de branqueamento demográfico do Brasil pós-abolição. Nesse contexto, como já tive oportunidade de demonstrar (BESSA, 2010), Pixinguinha desenvolveu uma “escuta aberta”, incorporando em seus arranjos, composições e interpretações as diferentes sonoridades que circulavam no Rio de Janeiro do início do século, do choro ao jazz, do samba à música de banda, tudo isso amalgamado pela rítmica afro-brasileira.
Versatilidade
Essa enorme versatilidade do músico transparece no repertório do disco, que ao lado de clássicos como Carinhoso e Rosa inclui composições menos famosas e faz alusão a arranjos e interpretações que marcaram a trajetória de Pixinguinha. O compositor de choro aparece nas quatro faixas instrumentais do disco: Cochichando, Seu Lourenço no Vinho, Displicente e Recordações – esta última erroneamente atribuída a Pixinguinha, sendo seu autor Julio Bahianinho, conforme revela um manuscrito de 1878 pertencente ao Acervo Jacob do Bandolim, do MIS-RJ (IMS, 2017). Nas três primeiras composições, nota-se a rara inventividade melódica de Pixinguinha, que a partir de motivos simples propõe ricas variações, tanto do ponto de vista rítmico como melódico.
Já sua atuação como arranjador é relembrada em Gavião Calçudo, samba de sua autoria em parceria com Cícero de Almeida. Nessa faixa, Marcos Paiva optou por preservar as sonoridades da orquestração original de Pixinguinha, gravada por Patrício Teixeira e Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Na época de seu lançamento, em 1928, o crítico musical da revista especializada em discos Phonoarte, Cruz Cordeiro, acusou a gravação de ser jazzificada: “mais parece um fox-trot que que um samba”. Provavelmente, ele se referia à introdução do samba, que de fato remete ao gênero de dança estadunidense. Do mesmo modo, o jogo de pergunta e resposta entre o solista e os sopros na primeira parte da canção lembra o procedimento então utilizado pelas orquestras de hot jazz, especialmente a frase-clichê entoada pelo saxofone ao final dos quatro primeiros versos.
A abertura de Pixinguinha para as sonoridades jazzísticas já havia sido notada pelo mesmo Cruz Cordeiro na gravação do choro Lamentos, também realizada pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Décadas mais tarde, essa composição de Pixinguinha receberia letra de Vinícius de Moraes para integrar a trilha do filme Sol sobre a lama (1962), de Alex Viany, e é sob essa forma de canção que ele integra o disco de Vânia Bastos e Marcos Paiva. Outro choro de Pixinguinha que no álbum aparece cantado é Fala baixinho, com letra de Hermínio Bello de Carvalho. Embora inúmeras composições do gênero tenham recebido versos a posteriori, esses são dois raros exemplos em que o casamento de melodia e letra atingem um bom resultado. Isso se deve ao fato de que o choro, como bem observou Mário de Andrade ao comentar a obra de Ernesto Nazareth (ANDRADE, 1934: 147-8), distingue-se justamente por seu caráter instrumental, anticoreográfico e, portanto, pouco afeito à palavra cantada. Se alguns choros de Pixinguinha se transformam tão facilmente em canção, isso se deve justamente à tal “escuta aberta”, que o levou a incorporar em alguns deles procedimentos de músicas dançantes em voga na época, como o foxtrot, o tango argentino ou mesmo a ritmos caribenhos, que também influenciaram muitos de seus arranjos.
Fechando o disco com chave de ouro, o samba Urubu malandro remete-se ao flautista virtuoso e o improvisador inventivo que foi Pixinguinha. Trata-se de um motivo popular que foi objeto de variações instrumentais gravadas pelo músico com Os Oito Batutas em 1923. Em Concerto para Pixinguinha, a composição foi cantada por Vânia Bastos na forma de samba, com letra de João de Barro. Marcos Paiva, inspirado no arranjo de Leandro Braga, incluiu palmas e coro na gravação, numa alusão ao ambiente dos sambas na casa de tia Ciata. Igualmente oriundo das rodas coletivas é o partido-alto Samba de fato, outra parceria de Pixinguinha com Cícero de Almeida gravada pela primeira vez em 1932. O arranjo de Marcos Paiva procura destacar o caráter “amaxixado” que predominava nesse tipo de samba. Ao lado do cromático Isso é que é viver e do exaltante Mundo Melhor, ambos com letra de Herminio Bello de Carvalho, compostos numa fase madura do compositor, essas faixas ilustram o lado sambista de Pixinguinha, e completam assim o retrato multifacetado do artista.
Mistura e invenção
Oriunda de um universo bastante diferente daquele em que se formou Pixinguinha, Vânia Bastos imprimiu uma leitura original a esse repertório. Se a obra do músico carioca está intimamente ligada à tradição instrumental do choro, bem como ao caráter coreográfico da marcha e do samba, a linhagem a que se filia a cantora paulista é a da canção. Tendo iniciado sua carreira na banda Sabor de Veneno, de Arrigo Barnabé, com quem gravou os discos Clara Crocodilo (1983) e Tubarões Voadores (1984), Vânia Bastos formou-se no bojo de um grupo nomeado pela imprensa da época de “vanguarda paulistana”. Reunido em torno do teatro Lira Paulistana, em São Paulo, esse grupo agregava um conjunto heterogêneo de práticas e propostas que agitaram a cena musical independente da capital paulista entre o final da década de 1970 e os anos 1980. Por meio das narrativas atonais e multimídias de Arrigo Barnabé, das anticanções do Grupo Rumo, da irreverência cênica do Língua de Trapo ou dos personagens “malditos” de Itamar Assunção e Banda Isca de Polícia (na qual Vânia Bastos também atuou), entre outras experiências, a vanguarda paulistana renovou a forma canção ao aproximar o cantar do dizer, ao mesmo tempo em que trazia novas sonoridades para a música brasileira.
Embora Vânia Bastos tenha desenvolvido um estilo próprio, distinto daquele dos grupos em que atuou no início da carreira, a influência da vanguarda paulista se nota até hoje em suas interpretações, nas quais as inflexões do canto, impecavelmente afinado, são sutilmente moduladas pelas intenções do texto. Do mesmo modo, o caráter independente da carreira da artista, que não cede a interesses comerciais e escolhe a dedo seu repertório e suas parcerias musicais, marca certa continuidade com o espírito alternativo do movimento. Concerto para Pixinguinha, seu 12° disco solo, é o quinto dedicado à obra de um mesmo artista ou grupo. Antes dele, a cantora já havia gravado álbuns dedicados a Tom Jobim, Caetano Veloso, Edu Lobo e Clube da Esquina, o que revela o interesse de artista em dialogar com as diferentes vertentes da canção brasileira.
A mediar esse encontro entre a tradição instrumental do choro e a vocação cancioneira da chamada MPB, figuram os arranjos de Marcos Paiva, cujo caráter camerístico faz jus à noção de Concerto, contida no título do álbum. Experiente contrabaixista, tendo atuado tanto na música instrumental quanto ao lado de grandes vozes do país e do exterior, como a portuguesa Teresa Salgueiro, o cubano Fernando Ferrer ou os brasileiros Fabiana Cozza, Bibi Ferreira, Cauby Peixoto e Zizi Possi, Marcos Paiva é também um compositor e arranjador entusiasta da história e da diversidade da música brasileira, ressaltando em suas criações as múltiplas influências que a permeiam. Em seus três primeiros discos de carreira, São Mateus (2007), Meu samba no prato – Tributo a Edison Machado (2012) e Choroso (2015), ele já havia explorado a fusão do samba e do choro com a linguagem do jazz, recurso que também utiliza em Concerto para Pixinguinha. Porém, longe de incorporar elementos exógenos a composições pré-existentes, seus arranjos jogam luz sobre o caráter intrinsecamente antropofágico da música brasileira. A introdução jazzística de Cochichando, por exemplo, faz referência à leitura que Radamés Gnattali e seu sexteto já haviam realizado da composição, enquanto o jogo de ritmos e timbres relembra os procedimentos orquestrais do próprio compositor. Resumindo um século de história, o encontro de Pixinguinha, Vânia Bastos e Marcos Paiva comprova que a força da música brasileira não se assenta em sua pretensa pureza, mas na mistura frequente e na reiterada invenção.
Referências
ANDRADE, Mário de. Música, doce música. São Paulo: L. G. Miranda, 1934.
BESSA, Virgínia de Almeida. A escuta singular de Pixinguinha. História e música popular no Brasil dos anos 1920 e 1930. São Paulo: Alameda, 2010.
IMS (Instituto Moreira Salles). Pixinguinha. Rio de Janeiro, 2017. Acesso em: 03 jun. 2020.
Como citar este texto
BESSA, Virgínia de Almeida. O instrumental e o vocal na música popular brasileira: Vânia Bastos e Marcos Paiva em Concerto para Pixinguinha. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 2, 2020. Disponível em: https://amusicade.com/concerto-para-pixinguinha-2016-vania-bastos-e-marcos-paiva/. Acesso em: 02 abr 2025.