A “linha de morbeza romântica” como potência crítica e criadora
Sheyla Castro Diniz
Sheyla Castro Diniz é doutora e mestre em Sociologia pela Unicamp. Graduada em Música e Ciências Sociais pela UFU. Atua na interface entre Música Popular e Sociologia da Cultura. Dentre outros vários trabalhos publicados, é autora do livro “… De tudo que a gente sonhou”: amigos e canções do Clube da Esquina e da tese de doutorado Desbundados & marginais: MPB e contracultura nos anos de chumbo (1969-1974).
Destoando dos moldes à época predominantes na indústria fonográfica, um dos motivos pelo qual o rótulo de “músico maldito” recaiu sobre ele e outros também à margem não só do grande mercado como dos padrões estéticos típicos da cultura de massa, Jards Anet da Silva, ou simplesmente Jards Macalé, retorna à gravadora Phonogram depois de certas desavenças, assinando, em 1974, Aprender a nadar. O disco condecora nalguma medida o reconhecimento do compositor, violonista, arranjador e intérprete carioca, participante ativo da contracultura naquela primeira metade da década de 1970, junto aos críticos e entre os pares.
O título Aprender a nadar é emprestado do refrão de Mambo da Cantareira, canção da dupla Barbosa da Silva e Eloide Warthon, sucesso na voz de Gordurinha em 1960, mas, agora, repaginada e parafraseada por Macalé em mais um dos vários happenings e atos inusitados que coleciona em sua carreira, ou, como prefere – aludindo às dificuldades que encontrou, fazendo parte ou não do elenco de uma multinacional –, “correria”. Foi equipado com violão e uma máscara de oxigênio que ele promoveu o lançamento do disco, apresentando o repertório a bordo de uma das barcas da Companhia Cantareira de Viação Fluminense, responsável pela travessia Rio-Niterói. Amigos convidados e passageiros testemunham quando, a embarcação já sob a ponte e ao som “Ê Cantareira…, vou aprender a nadar/ Ê Cantareira…, eu não quero me afogar!…”, o músico se despe e se lança literalmente ao mar, respondendo, assim, às ameaças que diz ter sofrido naquele período: “Batiam na porta da minha casa, perguntando: ‘Você sabe nadar? Vamos levar você para um passeio na Baía de Guanabara…’” (apud MOURA, 2004; ver também MOTA, 2016, p. 107).
No encarte do álbum constam os fotogramas do inacabado Kakoddevrydo. Com uma câmera de 35 mm na mão e nenhuma ideia preconcebida de qual seria o roteiro, o cineasta Luiz Carlos Lacerda (ou Bigode, seu apelido) havia focalizado Macalé com a tal máscara de oxigênio e noutras variadas situações: na praia, num show no Teatro Tereza Raquel, num parque de diversões, pilotando uma lancha na Baía de Guanabara e perambulando mambembe pelas ruas do Rio de Janeiro, e, também, na Casa 9, um sobrado situado no bairro de Botafogo que, residência dos dois amigos, era ponto de encontro de diversos artistas sintonizados na mesma sensibilidade contracultural. Nem Bigode nem Macalé tiveram recursos para levar esse filme experimental adiante. Os negativos, armazenados por anos no Laboratório Liceu, único que oferecia esse tipo de serviço na época, acabaram perdendo o prazo de validade (cf. Luiz Carlos Lacerda em depoimento à autora).
Feita pelo cartunista Nilo de Paula, a caricatura de Macalé estampada na capa do disco é retomada na contracapa, porém não sem antes o próprio músico, noutra atitude iconoclasta, intervir com manchas de fogo, rasgos e borrões de tinta vermelha.
Eu sempre fiz questão de acompanhar todas as etapas de meus trabalhos. Da capa à contracapa ao conteúdo. Nilo sabia que eu gostava de histórias em quadrinhos. Então ele fez a capa. Foi aprovada pela gravadora. É bacana, é legal. É engraçada a minha caricatura. Mas só que ninguém me perguntou…, apareceu já pronta. Daí eu disse: “Não! A gente tinha que ter conversado antes… Mas, já que é assim, eu vou fazer a ‘contra a capa’”. Então eu fui ao departamento de arte da Phonogram, pedi uma cartolina, cola, tinta vermelha e uma caixa de fósforos. Ninguém entendeu nada. Botei tudo no chão. Risquei fósforo e meti fogo na capa. Foi uma performance. Aliás, foi um happening. Gozado, pois quando o disco chegou às lojas, não expuseram a capa… Expuseram a contracapa como capa… Mas sem querer me desfazer da caricatura do Nilo, hein… (cf. Jards Macalé em entrevista à autora).
Ademais de algumas composições inéditas, Macalé foi buscar nos mambos, boleros e na tradição do samba pré-bossa nova, sobretudo no samba de gafieira e no samba-canção, a sua matéria-prima. Contou, para isso, com nomes do porte de Wagner Tiso, Perinho Albuquerque (arranjos), Robertinho Silva (bateria), Luiz Alves (baixo), Tutti Moreno, Pedro dos Santos (percussões), Dino Sete Cordas e Canhoto (violões). Igualmente fundamental, o seu parceiro Waly Salomão foi quem idealizou o anúncio estampado na capa desse que, desde o design gráfico, é um álbum conceitual: “Jards Macalé apresenta a linha de morbeza romântica em Aprender a nadar”.
Invenção do letrista e poeta, sendo o neologismo uma espécie de fusão entre morbidez e beleza, a “linha de morbeza romântica” ia certamente ao encontro de uma das propostas de Oswald de Andrade em seu Manifesto da Poesia Pau Brasil: “O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (ANDRADE, 1924. Grifo meu). Aparentemente rejeitando a máxima do modernista, a expressão de Salomão não apenas a atualizava como retomava, noutro contexto, a famosa ideia da “linha evolutiva” da música popular brasileira, dialogando, assim, com o projeto tropicalista. Macalé revisitava a “herança romântica latino-americana que trazemos”, conforme explicou ao jornal Opinião antes mesmo do disco pronto (apud SILVA, 1973). No entanto, era mais que isto, pois ressignificava essa nossa herança sob a ditadura em pleno AI-5 e sob a expansão do mercado de bens culturais.
Ressignificando nossa herança romântica
A faixa de abertura é formada pela sobreposição experimental de quatro composições. A princípio, a atriz Ana Maria Miranda declama os versos de Dois corações, samba-canção de Herivelto Martins e Waldemar Gomes consagrado por Dalva de Oliveira nos anos 1950: “Quando dois corações se amam de verdade/ Não pode haver no mundo maior sinceridade/ Tudo é alegria, tudo é ilusão/ Que bom que não seria se eu tivesse um amor…”. Cantarolados na sequência, tais versos cedem em intensidade para que o artista se apresente num texto-homenagem de Gilberto Gil: “Meu nome é Jards Anet da Vida/ Ou melhor, da Selva/ Ou pior, da Silva/ Ou pior, da Selva/ Ou melhor, da Silva”. Seu sobrenome de batismo e o de inúmeros brasileiros remonta etimologicamente à palavra “selva”, talvez uma alegoria para o Brasil daqueles tempos. Não por acaso, tudo isso se passa ao som de No meio do mato, canção de Macalé completamente desfigurada sob um arranjo instrumental e ruidoso, sobre o qual ele ainda recita, em tom conclusivo, Faquir da dor, de Waly Salomão: “Distinto público/ Vou ficar aqui exposto à audição pública/ Como um faquir da dor”.
Como se lê na contracapa, o disco é dedicado a ninguém menos que Lygia Clark e Hélio Oiticica, vanguardistas em cujos trabalhos sempre valorizaram a dimensão corpórea – vide, por exemplo, os objetos sensoriais da primeira e os parangolés do segundo. Aprender a nadar, com seus requintados arranjos e orquestrações e sua entonação nuançada, relevaria na música e performances certa “estética da incorporação. Na voz de Macalé o corpo é protagonista […]. Todo o processo musical propõe a canção como experiência em ato” (FAVARETTO, 2002, p. 128-129).
Dilacerada pelo amor, nessa voz não faltam suspiros, pigarros, fungadas, sussurros ou rouquidão, recursos com os quais o eu-lírico masculino vai tecendo o disco com sua “linha de morbeza romântica”. Passa com seu fio condutor pelo lirismo de Imagens (Valzinho e Orestes Barbosa) e deixa-o um tanto quanto em suspenso na sarcástica Orora analfabeta (Gordurinha e Nascimento Gomes) ou na sagaz Estatuto de Gafieira (Billy Blanco), retomando-o de modo certeiro em canções como Rua Real Grandeza, Anjo exterminado, A dona do castelo e Senhor dos sábados, todas de Macalé com versos de Waly Salomão, que do álbum também participa “tocando” chave, campainha e porta na engraçada vinheta inspirada em Pam-pam-pam, samba de Paulo da Portela. “Quem é que está batendo aí? Ora, bate com a cabeça! Antes que o mal cresça/ Antes que eu me aborreça…” vingam a lamúria do “cara sem saída” que, na Rua Real Grandeza, uma das mais suburbanas da Zona Sul carioca, espera sua amada “torcer de volta a chave na fechadura da porta…”.
Embora fidedigno à passionalidade do nosso cancioneiro popular, o fracasso amoroso é ora abordado de maneira kitsch ou irônica e ora ganha conotação política, como, por exemplo, e, sobretudo, na composição de Miguel Gustavo E daí? (Proibição inútil e ilegal).
Proibiram que eu te amasse
Proibiram que eu te visse
Proibiram que eu saísse
Ou perguntasse a alguém por ti
Que proibiam ou muito mais
Preguem avisos, fechem portas, ponham guizos
Nosso amor perguntará: E daí?
E daí por mais cruel perseguição
Eu continuo a te adorar
Ninguém pode parar meu coração
Que é teu, só teu, todinho teu...
Nos compassos iniciais, o registro grave, lento e binário do bumbo denota certa tristeza e languidez. Já as semicolcheias da cuíca exprimem algo de burlesco, como se parodiassem os modismos envolvendo o uso do instrumento. Apresentada a letra uma primeira vez, e até aí a passionalidade é fiel às queixas contra quem impedia a união dos amantes, Macalé a repete na íntegra, valendo-se de sussurros e dispensando a melodia. Sua voz intencionalmente abafada, e não prescindindo do gesto interpretativo agressivo que lhe é típico, confere outros sentidos a esse samba lançado por Isaurinha Garcia nos anos 1950. Em 1974, E daí transfigura-se numa contundente denúncia à censura (ver DINIZ; MACHADO, 2013). Tanto é que a canção, nessa versão reconfigurada, e não obstante a omissão proposital de seu subtítulo na ficha técnica do disco (Proibição inútil e ilegal), foi, segundo Macalé, proibida nas rádios. Também pudera, já que a crítica implícita em Aprender a nadar não se limitava às questões estritamente políticas.
Boneca semiótica
Composta a oito mãos por Macalé, Rogério Duarte, Duda Machado e Ricardo Chacal, a última faixa do disco desvenda o que pouco a pouco é sugerido. Com um arranjo orquestral de Wagner Tiso, em cuja introdução cita o motivo melódico da famosa Insensatez (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), Boneca semiótica traça não só o perfil de uma mulher ingrata, renitente nas letras de samba: “Samba é sempre a mesma história/ ‘Nosso amor morreu na Glória’/ A boneca foi embora/ Não obstante esqueceu o seu fantasma…”. Assim como “Glória” é tanto o apogeu do amor quanto o bairro carioca, a “boneca”, como indicado desde o título, transcende o significado mais ordinário. Ao mesmo tempo em que Aprender a nadar foi uma tentativa de alçar uma ou outra de suas canções às paradas de sucesso, o álbum como um todo questionava a vulgarização e padronização do repertório romântico em meio ao processo de restruturação sistêmica da indústria cultural. Quando ainda não havia suportes digitais nem para a gravação nem para o compartilhamento de registros sonoros, os versos derradeiros desse samba-bossa nova já nos alertavam: “Você venceu com sua lógica/ Digital e analógica/ Você não passa da programadora/ Do repertório redundante da minha dor…”.
Jards Macalé e seus parceiros esticaram a “linha” da canção crítica e autocrítica lançada pelos tropicalistas no fim dos anos 1960 (ver NAVES, 2010). Ao revisitarem a “cafonice”, a “fossa” e a “dor-de-cotovelo” do cancioneiro popular, o fizeram mirando o contexto político, a massificação da produção cultural sob o desenvolvimento industrial-tecnológico e a própria forma canção. Bem-humorada e nada inofensiva, a “morbeza romântica” de Waly Salomão é arrematada no gran finale do álbum. Findada Boneca semiótica, ouvimos Lygia Anet, mãe de Macalé, retomar a capella Dois corações. Seu canto faz jus às grandes vozes da “era de ouro” do rádio para, em seguida, desconstruir a passionalidade desse samba-canção com uma risada ocasional.
Referências
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto da Poesia Pau Brasil”, Correio da manhã, 18 mar. 1924.
DINIZ, Sheyla Castro; MACHADO, Adelcio Camilo. “Uma proibição, dois sentidos: considerações sobre duas versões da canção ‘E daí? (Proibição inútil e ilegal)’”, Anais do XXIII Congresso da Anppom, Natal, UFRN, p. 2-11, ago. 2013.
FAVARETTO, Celso. “Jards Macalé”. In: NESTROVSKI, Arthur (org.). Música popular brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.
JARDS MACALÉ. Entrevista concedida à autora. Grav. digital, 80 min., Rio de Janeiro, 10 fev. 2016.
LUIZ CARLOS LACERDA (BIGODE). Depoimento concedido à autora por telefone, 15 fev. 2017.
MOTA, Lia Duarte. “Jards Macalé – tramas variadas”, Ipotesi, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 101-109, jan./jun., 2016.
MOURA, Carlos Eduardo. “Jards Macalé: maldito anarquista”, ago. 2004.Acesso: 8 mar. 2013.
NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
SILVA, Abel. “A morbeza romântica de Jards Macalé”, Opinião, n. 14, p. 19, fev. 1973.
Como citar este texto
DINIZ, Sheyla Castro. A “linha de morbeza romântica” como potência crítica e criadora. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 1, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/aprender-a-nadar-1974-jards-macale/. Acesso em: 10th outubro 2024.