ADRIANA CALCANHOTTO: A ARQUITETA DE CANÇÕES NA FÁBRICA DO POEMA
Augusta da Silveira de Oliveira
Augusta da Silveira de Oliveira é licenciada e bacharel em História pela UFRGS. Mestra pela mesma instituição com bolsa do CNPq. Atualmente, é doutoranda em História da América Latina na Brown University com bolsa CAPES/Comissão Fulbright Brasil e se dedica aos estudos de gênero, história das mulheres e história LGBTQIA+.
“Olá a todes, eu sou Adriana Calcanhotto, compositora de canções […]”
“Olá a todes, eu sou Adriana Calcanhotto, escritora de canções […]”
“Olá a todes, eu sou Adriana Calcanhotto, fabricante de canções […]”
“Olá a todes, eu sou Adriana Calcanhotto, construtora de canções […]”
“Olá a todes, eu sou Adriana Calcanhotto, projetista de canções […]”
“Olá a todes, eu sou Adriana Calcanhotto, arquiteta de canções […]”
Foi assim que Adriana Calcanhotto se apresentou aos seguidores do seu canal no Youtube ao longo das duas temporadas de Minha Música, sequência de vídeos gravada ao longo da pandemia de Covid-19, que discute e explica algumas de suas canções, respondendo a perguntas dos fãs. Compor, projetar, arquitetar: Adriana busca ressignificar seu ofício, como se seu papel fosse edificar ou materializar as infinitas combinações possíveis entre as palavras.
Dona de uma trajetória longeva na Música Popular Brasileira, Adriana iniciou sua carreira fonográfica em 1990, com Enguiço, seguido por Senhas (1992). O segundo disco já teria sua marca mais pessoal, além de sucessos como “Mentiras” e “Esquadros”. Inauguraria também a parceria com Antônio Cícero em “Água Perrier” e com Waly Salomão, que escreveu o release do disco. Uma trilogia, trabalhos para crianças sob a alcunha Adriana Partimpim, um disco de sambas e alguns álbuns ao vivo viriam depois. Em 2023, Adriana lançou o álbum Errante, resultado da autopercepção do nomadismo inerente à sua trajetória.
EXPERIMENTALISMOS MODERNISTAS
No disco A Fábrica do Poema, lançado em 1994, vemos a primeira aproximação da compositora à união independente e experimental entre poema e melodia. Adriana, ao questionar os limites da canção, e mesmo o que a constitui, acaba por expandir a poesia e a música, e refletir sobre sua própria produção. Faz do poema o protagonista e leva à risca a proposta de fazer música sem música, como disse em entrevista em 1998 – embora na canção “Bagatelas”, parceria de Frejat com Antônio Cícero, pergunte: “Será que a gente é louca ou lúcida quando quer que tudo vire música?”. O disco, comparado aos trabalhos posteriores da cantora e compositora, parece ser uma carta de intenções e uma leitura dos princípios que norteiam sua arte, além de solidificar sua relação de proximidade com a literatura modernista.
O próprio encarte do disco dá a entender que há algo em construção. A capa exibe o título escrito dentro de linhas-guia, como se estivesse sendo projetado. O interior, com textos escritos na máquina de escrever e com aspecto de amassados, possui uma série de inscrições, detalhes adicionados à caneta, com a caligrafia da própria Adriana, que brincam com a suposta seriedade e permanência de um fonograma. Até uma foto da cantora, com bigode e cavanhaque adicionados à caneta, alude a muitas fabricações: a do poema, a de si e a do gênero.
Interior do encarte de A Fábrica do poema, 1994.
MAS POR QUE FAZER MÚSICA?
A faixa que abre o disco, “Por Que Você Faz Cinema?”, resposta traduzida do francês, do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, para a pergunta que dá título à canção musicada por Adriana, responde: “Para chatear os imbecis, para não ser aplaudido depois de sequências dó de peito”. Acima da compreensão do porquê, o fazer, seja por amor ou despeito. A canção se relaciona com “Senhas”, do disco homônimo, que afirma: “Eu não gosto do bom gosto, eu não gosto de bom senso”. Adriana coloca sua música como questionadora, pouco preocupada em agradar ou limitar-se aos consensos sociais.
A Fábrica do Poema, poema de Waly Salomão que dá nome ao disco, foi escrito em homenagem à arquiteta Lina Bo Bardi e musicado por Adriana. Bardi é conhecida pelos projetos modernistas e por obras como o SESC Pompeia, em São Paulo. Na fábrica descrita por Waly, o poema é imaginado, sonhado, idealizado, mas desfaz-se facilmente, denotando sua fragilidade. O poema ideal, afinal, não existe, dada sua impossibilidade de construção. A relação com o concretismo está na metalinguagem do poema e nos aspectos visuais evocados por Waly. Em diversas ocasiões, Adriana falou a respeito de sua relação com Waly que, até o último minuto antes da gravação, adicionava palavras ao poema a ser musicado por Adriana, o que a artista rememora com humor. O concretismo é referenciado novamente no álbum com a participação de Augusto de Campos, que lê parte do poema “O Verme e a Estrela”, do poeta simbolista Pedro Kilkerry, musicado por Cid Campos.
O “tudo virar música”, da já mencionada canção “Bagatelas”, se expressa literalmente em “Portrait of Gertrude”, que também corrobora as referências modernistas e da poesia concreta que norteiam Adriana. A leitura de Gertrude Stein do poema sobre Pablo Picasso contém palavras similares ou repetidas e a sobreposição de sons que dotam o poema de ritmo: uma máquina de escrever, um teclado, uma música incidental que cria um suspense. É a canção mais experimental do álbum e Adriana confere harmonia ao excerto lido pela poeta. Em “Sudoeste”, parceria com Jorge Salomão, o caráter experimental está na participação do próprio poeta, que é creditado na faixa por ser ouvido quebrando copos.
A relação com o Rio de Janeiro, cidade onde Adriana se radicou no fim da década de 1980 após deixar Porto Alegre, aparece na famosa “Cariocas” e na regravação de “Morro Dois Irmãos”, de Chico Buarque – que não por acaso estão em sequência no álbum. As duas canções são expressões de sua observação detalhada de hábitos e paisagens característicos do Rio. “Cariocas” apareceu remixada no álbum seguinte, Maritmo, de 1998, que inaugura a trilogia marítima e que expande sua relação com o mar, diretamente relacionada à chegada no Rio de Janeiro. A famosa parceria com Antônio Cícero, “Inverno”, também evoca os invernos no Leblon.
O QUE QUER “MINHA MÚSICA”?
A última canção, “Minha Música”, dedicada ao pai da artista, baterista de jazz que também tocou na gravação do álbum, encerra o tratado de Adriana a respeito do fazer musical. Minha Música também é o nome da editora que registra as canções de Adriana. A canção discorre sobre diversas negativas: “Minha música não quer ser útil, não quer ser moda, não quer estar certa”. A música não quer ser sucesso, não quer ser resposta nem perguntar, “só quer ser música”. Adriana reconhece na sua música as contradições, proposições sobre a arte e suas negações, estabelecendo novamente uma reflexão sobre os caminhos do fazer.
Adriana Calcanhotto ainda refletiu sobre o ato de compor para além da música, dado que a composição foi o tema do seminário que ministrou na Universidade de Coimbra em 2017. A Fábrica do Poema marcou a maturação dessa reflexão em escolhas ousadas e experimentais, mas que também renderam sucessos de público como “Metade”, “Cariocas” e “Inverno”, o que resultou em mais de cem mil cópias do álbum vendidas. Em retrospecto, é natural que uma obra como A Fábrica do Poema, uma sequência metanarrativa sobre a poesia e a música, seus aspectos concretos, sonoros e, principalmente, suas estruturas – ora, quem arquiteta também edifica –, conserve-se instigante após quase trinta anos de seu lançamento.
Referências
CALCANHOTTO, Adriana. Minha Música (Minha Música) – T2 #10. YouTube, 6 ago. 2020. Disponível em: https://youtu.be/OVxRFn2XPnQ?si=AvUhO5fQn5yyJkIK. Acesso em 25 fev. 2024.
CALCANHOTTO, Adriana. Enguiço. Columbia, 1990.
CALCANHOTTO, Adriana. Senhas. Columbia, 1992.
CALCANHOTTO, Adriana. A fábrica do poema. Sony, 1994.
CALCANHOTTO, Adriana. Maritmo. Columbia, 1998.
LIMA, Marina. Entrevista com Adriana Calcanhotto. A mecânica da música. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, n. 151, 1998.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_11/256058. Acesso em: 25 fev. 2024.
OLIVEIRA, Sirley da Silva Rojas. Entre a Letra e a Melodia: a Irreverência de Waly Salomão. Miscelânea, Assis, v. 21, p. 123-142, jan.-jun. 2017.
Disponível em: https://seer.assis.unesp.br/index.php/miscelanea/article/view/16/14. Acesso em: 25 fev. 2024.
PEIXOTO, Michael Viana. Prática Intersemiótica no Discurso Imagético-cancional de Adriana Calcanhotto: Uma Proposta de Análise. Tese (Doutorado em Linguística). Fortaleza. Universidade Federal do Ceará, 2013. Disponível em: chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8929/1/2013_tese_mvpeixoto.pdf. Acesso em: 25 fev. 2024.
Como citar este texto
OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. Adriana Calcanhoto: A Arquitetura de Canções na Fábrica do Poema. A música de: História pública da música do Brasil, v. 6, n. 1, 2024. Disponível em: https://amusicade.com/a-fabrica-do-poema-1994-adriana-calcanhotto/ . Acesso em: