Abaixo de Zero: Hello Hell
Provocações artísticas em tempos de autoritarismo e conservadorismo
Ana Carolina Machado
Ana Carolina Machado é historiadora e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), onde desenvolve tese sobre a trajetória da atriz Fernanda Montenegro. Seus principais interesses de pesquisa giram em torno da história do tempo presente, da história pública/digital e dos estudos biográficos, com ênfase na abordagem de trajetórias artísticas.
“Esse é o retorno do cretino, dos clássicos, hits, hinos e os bolsos cheios de pinos […]”. É com essa frase que o rapper, cantor e compositor brasileiro Gustavo de Almeida Ribeiro, conhecido artisticamente como Black Alien, começa Área 51, primeira faixa do disco Abaixo de Zero: Hello Hell (2019). Ela anuncia o propósito do álbum, que materializa a volta do rapper à produção artística após longo período de bloqueio criativo decorrente, sobretudo, do uso exacerbado de álcool e cocaína.[1] Dando start a um novo tempo de sobriedade em sua trajetória, o artista brinda os apreciadores do rap brasileiro com um disco deveras singular.
Abaixo de Zero, de sua autoria, é uma das produções mais expressivas do rap nacional da última década. Embalado pelo chamado speed flow, ou seja, pelas rimas conectadas de forma rápida, e pela mistura de R & B e Jazz, o disco é composto por nove faixas curtas que, juntas, não chegam a somar meia hora. Breve na extensão e denso no conteúdo, o álbum marcou não somente a cena do rap no tempo presente, mas também pode ser considerado um marco na carreira do Mr. Niterói, como é também chamado o cantor.
Sua qualidade foi comprovada na medida em que, logo após seu lançamento, o álbum conquistou dois importantes prêmios junto à crítica especializada: o Prêmio Multishow de Música de 2019, na categoria Disco do ano, e o Prêmio da Associação Paulista de Críticos da Arte (APCA), também em 2019, na categoria Melhor Álbum. Com produção assinada pelo BeatMaker “Papatinho”, do grupo Cone Crew Diretoria, Abaixo de Zero: Hello Hell é seu terceiro álbum solo de estúdio e veio somar-se aos já conhecidos Babylon by Gus Vol. 1 – O Ano do Macaco, de 2004, e Babylon By Gus – Vol. II: No princípio era o verbo (2015).
[1] Sobre isso ver as entrevistas concedidas pelo artista em: < https://youtu.be/iEf4pFiJbPI?si=jY52KNlujrrvNcCN>. Acesso: 21 jun. 2024; e <https://www.youtube.com/live/kZpB6aHkkbo?si=o6s6x-sDM8nMNzr4>. Acesso em: 21 jun. 2024.
MR. NITERÓI, BLACK ALIEN, MAS AINDA GUSTAVO, O FILHO DE DONA GISELDA E SEU RUI
“Ainda sou Gustavo, filho de dona Giselda e seu Rui”. Assim Black Alien se reconhece em uma das frases da música Carta para Amy, segunda faixa do disco, fazendo alusão às suas origens antes da fama e do nome. Nascido em São Gonçalo (RJ), em 7 de junho de 1972, e criado em Niterói, o artista começou sua carreira no início dos anos 1990. Foi um dos integrantes do Planet Hemp, tendo trabalhado ao lado de nomes como Marcelo D2 e BNegão – com os quais foi preso, em 1997, por acusação de incentivo ao uso de drogas (Mundim, 2006) – além do icônico Sabotage, que figura entre os principais artistas do segmento no Brasil.
Alguns fragmentos de sua trajetória brilhante e controversa foram abordados no documentário “Mr. Niterói – Lírica Bereta”, dirigido por Tom Gadioli e lançado em 2011. Nele, o espectador conhece um pouco do itinerário de Black Alien, um artista tido como genial quando o assunto é rap, mas também a humanidade e subjetividade de Gustavo de Almeida, seus sonhos, tropeços e aprendizados. O audiovisual mostra diferentes faces de um mesmo sujeito, mesclando vida pessoal e artística; está disponível publicamente e pode ser acessado pelo canal de Black Alien no YouTube.[1]
[1] Disponível em:< https://youtu.be/HLd9wSI5Bb4?si=aqT_N8j0NSgMTAkW >. Acesso: 24 jun. 2024.
ABAIXO DE ZERO: HELLO HELL E O CONTEXTO BRASILEIRO
É no mínimo interessante pensar que em um país como o Brasil, cuja história contemporânea é marcada pela censura artística em diferentes dimensões (Garcia, Fico, 2021a, 2021b), um álbum como Abaixo de Zero: Hello Hell tenha sido lançado e muito bem aceito. E mais, que tenha circulado amplamente com músicas que atingiram altíssimos números de visualizações no Youtube, sem sofrer ataques pela natureza do seu conteúdo que, majoritariamente, aborda drogas e sexo, tendo como pano de fundo a vivência pessoal do autor como dependente químico. E que também tece críticas à sociedade e à conjuntura política, nas entrelinhas, na música Jamais Serão.
Ainda que a temática das drogas faça parte de seus outros álbuns, neste, Black Alien se debruça com mais afinco sobre o assunto, fazendo de sua experiência de vida o tema principal da obra. Mas não o faz em tom apologético ou romantizado, e sim compartilhando suas intimidades como forma de provocar a discussão. São músicas que compartilham experiências delicadas do artista no mundo das drogas, entre outros temas polêmicos que são comumente negligenciados e abafados por tocarem em problemas que atravessam a sociedade brasileira e a vida de milhares de pessoas, não raro marginalizadas.
Músicas que, se de um lado enfatizam com todas as palavras o quanto as drogas podem ser prejudiciais, à medida que o narrador relata como viveu e vive na pele seus efeitos a longo, médio e curto prazo, de outro, levantam a demanda da legalização da maconha em um país historicamente conservador e no qual o debate sobre a questão é sempre evitado. As letras tecem uma crítica ao presente e, ao mesmo tempo, em um movimento de quebra de tabus, realizam um culto ao erotismo e à prática sexual, sem que para isso o cantor precise falar nas entrelinhas. Um álbum, portanto, que evoca a liberdade sexual e que o faz com bom uso da liberdade de expressão, sendo uma manifestação artística elaborada em um tempo no qual apenas teoricamente vivíamos em um Estado Democrático de Direito.
Levando em conta tais aspectos, se torna curioso pensar sobre o álbum se considerarmos que ele foi lançado nas plataformas de streaming em 12 de abril de 2019, quatro meses após o início do governo de Jair Bolsonaro, que inaugurou um dos períodos mais conservadores da história do país. Hello Hell veio à público em uma conjuntura marcada pelo autoritarismo e pela intensa retórica da moral e dos bons costumes. Essa retórica constitui uma característica central do bolsonarismo, que teve a censura e o ataque à cultura e às artes como parte de seu modus operandi (Freitas, Targino, Granato, 2021; Reimão, Néry,Maués, 2023; Lirio, 2023; Sanglard, Orlandini, Oliveira, 2024).
Em 2020, uma reportagem do Uol apontou o crescimento das estratégias de censura do governo e o projeto de desmonte da cultura das artes por ele empreendido, com base no levantamento realizado pelo Mobile (Movimento Brasileiro Integrado Pela Liberdade de Expressão Artística) (Valente, 2022). A Agenda da Emergência, ferramenta de mapeamento da pauta autoritária desde 2019, também construiu uma linha do tempo que mostra os eventos de violações à liberdade artística desde o início do governo.
Entre essas, constam vetos e ataques a expressões artísticas que tratavam do tema sexualidade, como o cancelamento, pelo Museu dos Correios, de uma exposição de obras sobre a temática (Agenda da Emergência, 2019). O mesmo levantamento menciona outras peças e mostras que, por apresentarem cenas de nudez, foram alvo de processos, proibições e outras formas de censura, com a justificativa de exibirem “conteúdo obsceno”, provocando atentado ao pudor e ferindo os tão enfatizados princípios cristãos.
HELLO HELL E O CULTO À SEXUALIDADE EM UM CENÁRIO CONSERVADOR
Em Abaixo de Zero: Hello Hell, Black Alien não apenas menciona a nudez, mas também um dos nomes como é coloquialmente chamado o órgão genital feminino, se referindo ao mesmo também em inglês. De igual modo, faz referência ao sexo oral, à lubrificação, ao prazer, à pratica de se tocar (masturbação), e à posição sexual popularmente conhecida como “meia nove”.
Em Vai baby, terceira faixa do álbum, o artista fala de sexo sem fazer uso de muitas metáforas, como nos trechos:
Te olho, você me olha, se molha, se molha.
Vou a pé, vou na fé, no café, mas meu bem
Quando é que você vêm me dar aquele chá?!
Vêm que vêm de marcha a ré, descendo,
deixa solto
Lugar melhor no mundo eu não conheço
outro
Platônico e na prática é ginástica
Atômico, arrepia os cabelinho, é tipo estática
Você se toca, o beat é o Papatinho da Cone
Você se toca quando ouve minha voz assim no fone
E continua: “Sua pussy sob a minha posse, a língua rasga a rasga, cê devolve, engasga e tosse. Nove meia a gente se diverte, inverte quando se move se nove fosse meia, meia fosse nove”.
Se em Vai Baby Black Alien ainda se utiliza de metáforas narrativas, em Au Revoir, sexta música do álbum, o artista fala sobre sexo sem nenhuma reserva e com todas as palavras, especialmente no seguinte trecho:
E o que é familiar num quarto de motel?
Amor eterno só metendo
Well, gata, você é especial e memorável
Mas não sou material namorável, e na moral
Vêm que vêm quente que eu tô fervendo há
uma cota
Do jeito que cê gosta, eu bato forte na xoxota
E o que importa é puro fogo até pedir arrêgo […]
E eu boto fé que essa noite a gente sobe e
quebra a cama
Quando as luas tapam os sóis
Os eclipses somos nós
Toda nua, em toda rua eu ouço a sua voz
Já em Aniversário da Sobriedade, sétima música, ao cantar a frase “buceta pra homem fraco é que nem cocaine”, Black Alien problematiza o fato de que ambas podem ser viciantes pelo poder de “dominação”, admitindo serem dois de seus ponto fracos.
Apesar de as referidas músicas falarem abertamente de sexo, utilizando, inclusive, palavras consideradas como de baixo calão, não há registros de que a obra tenha sido alvo de censura, o que é de se admirar, haja vista que outros tipos de manifestações musicais cujas letras não apresentaram conteúdos tão caros à censura o foram. Vale dizer que o rap e o funk sofreram inúmeros ataques nesse contexto e que um número considerável de artistas que cantam os dois gêneros musicais foram alvo de abordagens policiais, criminalização e perseguição, tendo suas obras censuradas (Caetano, Seganfredo, 2021).
Nesse contexto, Sérgio Camargo, que entre 2019 e 2022 ocupou o cargo de Presidente da Fundação Cultural Palmares, teceu severas e preconceituosas críticas à linguagem do rap e do funk. Conforme reportagem do Mobile, “Em 2020, afirmou que os rappers que “enveredam pelo caminho do crime, da apologia das drogas e da putaria, ou se deixam usar como capachos da esquerda” jamais seriam contemplados com projetos ligados à Fundação Palmares” (Mobile, 2021). Vale lembrar, também, do episódio de censura e perseguição que resultou na expulsão do rapper Patriick RL de seu posto de soldado na Marinha. O artista, que integrava o Coletivo Facção Poética e participava de manifestações antirracistas, foi expulso do cargo com a justificativa de que suas músicas e posicionamentos iam contra as normas da categoria, na qual “não é permitido nenhum tipo de manifestação política” (Mobile, 2021).
Pelas questões aqui levantadas, se torna curioso o fato de Black Alien não ter sido alvo de perseguições por falar de drogas e sexo em suas músicas, temas recorrentemente associados pelos setores conservadores à “putaria” e à apologia às drogas. Sabemos que diferentes artistas compõem e lançam músicas sobre essas temáticas desde longa data, desde os chamados “funks proibidões”, até as letras que fazem protestos a favor da descriminalização da maconha, como as do Planet Hemp (Mundim, 2006), e que nem sempre esse tipo de música foi contestada, de modo que muitas dessas letras continuam circulando apesar dos tempos. Por outro lado, se os artistas do rap foram conquistando espaço e liberdade de expressão para abordarem suas pautas através da música, essa conquista se deu não sem embates, e a já mencionada prisão do Planet Hemp, em 1997, que incluiu Black Alien, é, sem dúvidas, um dos principais exemplos no Brasil.
Ocorre que em certos momentos da história, o campo artístico se torna alvo de disputas mais acirradas e na última década o Brasil atravessou um desses momentos com a ascensão da extrema-direita ao poder. Fruto deste contexto, o álbum Abaixo de Zero: Hello Hell pode ser compreendido, para além de outras interpretações que possam ser elaboradas sobre ele, como uma provocação a uma conjuntura conservadora, autoritária e moralista, não apenas pelo teor sexual das músicas, mas também pela crítica tecida à política propriamente dita.
PRESIDENTES SÃO TEMPORÁRIOS, MEU DESPERTAR, TEMPORÃO!
Tal crítica é feita, sobretudo, na música Jamais Serão, oitava faixa, na qual Black Alien declara: “Só se fala groselha. Meu silêncio é caridade. Se eu for agir na velha, hm, que eu penso de verdade é: Presidentes são temporários, baby. Meu despertar, temporão. Música boa é pra sempre, e esses otários jamais serão!”. É nesse tom provocativo que o artista enfatiza o caráter atemporal da produção artística e o quão certos chefes e projetos de poder podem ser efêmeros, apesar do impacto de sua atuação repercutir no tempo. De fato, o presidente para o qual a crítica se dirigia foi temporário, já Abaixo de Zero: Hello Hell, que surfou em cima da censura bolsonarista, continua existindo e resistindo a todo e qualquer autoritarismo, moralismo e conservadorismo
Referências
AGÊNCIA DA EMERGÊNCIA. Museu dos Correios cancela exposição com obras sobre sexualidade. 12 jun. 2019. Disponível em: https://agendadeemergencia.laut.org.br/2019/06/museu-dos-correios-cancela-exposicao-com-obras-sobre-sexualidade/. Acesso em: 11 abr. 2024.
CAETANO, Ester; SEGANFREDO, Thaís. Artistas do hip-hop são alvo de criminalização e abordagens policiais. 15 mar. 2021. Disponível em: https://www.nonada.com.br/2021/03/artistas-do-hip-hop-sao-alvo-de-criminalizacao-e-abordagens-policiais/. Acesso: 11 abr. 2024.
CASANOVAS, Paloma. Histórico recente da censura no Brasil. Agenda de Emergência. 15 set. 2021. Disponível em: https://agendadeemergencia.laut.org.br/liberdade-artistica/historico-recente-da-censura-no-brasil/#. Acesso em: 11 abr. 2024
FREITAS, Sara da Silva; TARGINO, Janine; GRANATO, Leonardo. A política cultural e o governo Bolsonaro. Brasiliana: Journal for Brazilian studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 219-239, 2021.
GARCIA, Miliandre; FICO, Carlos. Censura no Brasil Republicano (1937-1988): governo, teatro e cinema. Salvador: Sagga, 2021a.
GARCIA, Miliandre; FICO, Carlos. Censura no Brasil Republicano (1937-1988): sociedade, música, telenovelas e livros. Salvador: Sagga, 2021b.
LIRIO, Gabriela. Teatro brasileiro e censura no governo Bolsonaro. IdeAs [online], n. 21, 2023. Publicado em 01 mar. 2023. Disponível em: http://journals.openedition.org/ideas/15504. Acesso em: 30 mai. 2023.
MOBILE. Marinha não readmite músico por suas músicas e manifestações políticas. 30 jan. 2021. Disponível em: https://movimentomobile.org.br/caso/marinha-nao-readmite-musico-por-suas-musicas-e-manifestacoes-politicas-2/. Acesso: 11 abr. 2024.
MOBILE. Presidente da Fundação Palmares reclama da linguagem do rap e do funk e critica Mano Brown. 18 nov. 2021. Disponível em: https://movimentomobile.org.br/caso/presidente-da-fundacao-palmares-reclama-da-linguagem-do-rap-e-do-funk-e-critica-mano-brown/. Acesso em: 11 abr. 2024.
MUNDIM, Pedro Santos. Das rodas de fumo à esfera pública: o discurso de legalização da maconha nas músicas de Planet Hemp. São Paulo: Annablume, 2006.
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VALENTE, Rubens. País teve 211 casos de censura e ataques à cultura em 3 anos, diz relatório. Uol. 17 mar. 2022. Disponível em:https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2022/03/17/cultura-censura-ataques-governo-bolsonaro.htm. Acesso em: 11 abr. 2024.
Como citar este texto
MACHADO, Ana Carolina. Abaixo de Zero: Hello Hell. Provocações artísticas em tempos de autoritarismos e conservadorismo. A música de: História pública da música do Brasil, v. 6, n. 2, 2024. Disponível em: https://amusicade.com/abaixo-de-zero-hello-hell-2019-black-alien . Acesso em: 01 jan 2025.