O PASSADO E O PRESENTE DE GAL COSTA EM RECANTO (2011)
Felipe Aparecido de Oliveira Camargo
Felipe Aparecido de Oliveira Camargo é mestrando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (PPGH-UNESP). Atualmente desenvolve pesquisa sobre a trajetória artística de Gal Costa no Tropicalismo musical e na contracultura. É graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Manhã do dia 09 de novembro de 2022. De forma repentina, foi comunicado o falecimento da cantora Gal Costa. As redes e a mídia foram tomadas por homenagens e rememorações de sua trajetória artística. Era natural que os fãs e o público no geral esperassem por depoimentos de artistas que foram parceiros musicais da intérprete. Caetano Veloso, cuja relação de décadas com Gal havia se iniciado na Bahia em meados dos anos 1960, foi categórico: “Há muitos outros aspectos em que a canção brasileira se encontrou engrandecida por vozes femininas. Mas a emissão da voz de Gal era já música, independentemente do domínio consciente das notas.” (Perdigão, 2022). O compositor finalizou o seu relato com uma sugestão:
O disco Recanto diz tudo o que chego a saber sobre Maria da Graça, Gracinha, Gal. Compus novas canções (que somei a uma que eu tinha feito para Jane Duboc, exemplo de cantora com absoluto domínio da música) para que o significado da presença de Gal entre nós se explicitasse. Vou ouvir Recanto – e sugiro a quem me leia que faça o mesmo – para repensar a Gal Fa-Tal, a Gal Domingo, a Gal Meu Nome É Gal. Moreno Veloso me disse que reouviu esse disco esses dias e voltou a entender tudo. (Perdigão, 2022).
Recanto (Universal), álbum lançado em 2011, é apontado por Caetano como a obra que ajuda a repensar todas as outras fases da carreira de Gal Costa. Reunindo apenas composições do músico baiano, o disco reflete a trajetória artística de uma cantora que foi parte integrante de um período de notáveis renovações na música brasileira. Se a MPB tem nas décadas de 1960 e 1970 fases de instituição e consolidação (Napolitano, 2001; 2002), Gal Costa circulou por esses espaços com relativa desenvoltura: se formou a partir do canto joãogilbertiano, mudou sua performance com o Tropicalismo musical e atuou na resistência cultural à ditadura através da contracultura e do desbunde (Camargo, 2022). O álbum mais recente serve como reflexão sobre a memória de uma trajetória que emergiu diante da inquietação.
Antes de Recanto, Gal passava por um período de muitas regravações, tanto do próprio repertório como de outros artistas da música popular brasileira, iniciadas na segunda metade dos anos de 1990. Neste espaço de aproximadamente 12 anos, a cantora saiu da gravadora BMG, passou por empresas indies, como a Trama e a Indie Records, e enfrentou críticas aos discos lançados nesse momento, vistos como convencionais e pouco inovadores do ponto de vista estético. A decisão de focar em regravações passava a impressão de que Gal era resistente às novidades musicais da virada do milênio. Na ocasião do show Todas as coisas e eu (2004), a cantora teve que justificar a ausência de compositores da nova geração em suas obras recentes (Xexéo, 2004, p. 1). De um modo geral, seus trabalhos desse período apostaram em nomes consagrados como Celso Fonseca, Mariozinho Rocha, Marco Mazzola, Jacques Morelenbaum e Wagner Tiso nos arranjos e produções. Essa fase foi interrompida com o lançamento do CD Hoje (Trama Records/2005). Nesse álbum, Gal interpreta canções de uma leva de compositores jovens e pouco conhecidos do grande público, acrescentando certo frescor à sua carreira.
Porém, foi em Recanto que uma verdadeira renovação de repertório, sonoridade e público aconteceu na carreira de Gal Costa. A cantora parecia retomar o gosto pelas experimentações estéticas que constituíram sua identidade artística tropicalista e contracultural.
CAETANO ENTRA EM CENA
Para consolidar a guinada e enfatizar o histórico experimental de Gal – tendo em conta a sua antiga parceria com a cantora –, Caetano Veloso assumiu a produção do álbum e as letras das faixas. O compositor já havia iniciado uma atualização em seu próprio repertório com os álbuns Cê (Universal/2006) e Zii & Ziê (Universal/2009), desenvolvidos com os jovens músicos da banda Cê. Em Recanto, Caetano dividiu a produção do álbum com seu filho Moreno Veloso. Na programação eletrônica, o responsável foi o carioca Kassin.
A principal característica de Recanto é a sua sonoridade eletrônica, ancorada em bases sintéticas e sujas, cujos flertes vão do trip hop ao funk carioca. Palavra-chave do disco, a plasticidade é utilizada tanto como recurso estético como expediente crítico da canção.
No texto que assinou para o encarte do CD, Caetano assumiu as intenções que tinha ao conduzir o novo projeto de Gal: “Vi que ela e eu podíamos fazer soar um objeto não identificado que tivesse a ver com tudo o que essencialmente somos”. O “objeto não identificado”, referência à canção “Não Identificado”, composta pelo baiano e gravada pela cantora no LP tropicalista Gal Costa (Philips/1969), é invocado como símbolo de duas identidades artísticas – de Caetano e Gal – marcadas pela ousadia e a experimentação de diferentes estéticas musicais, seja em 1969, seja em 2011. Afinal, o histórico experimental de Gal poderia ser um bom respaldo para os riscos que a sonoridade de Recanto apresenta.
No encarte do CD, há uma fotografia da cantora e Caetano juntos no Festival da Ilha Wight, em 1970, além de um registro em plano geral do público do festival. As imagens representam um símbolo da contracultura internacional e do experimentalismo como expressão artística, que foram os festivais hippies a céu aberto. Dessa forma, reforça a interação que os dois baianos tiveram com esse universo.
Se no projeto gráfico há fotografias do Festival da Ilha Wight, o primeiro contato do ouvinte com o CD é por meio da capa, que possui um close no rosto de Gal Costa em ensaio feito à época de seu lançamento, assinado por Gilda Midani. O que fica evidente na concepção visual do álbum é o imbricamento entre passado e presente, o primeiro, representado pelas imagens do festival, e o segundo, perceptível em um registro atual da intérprete para a capa.
COISAS SAGRADAS PERMANECEM...
Além de Caetano, Moreno Veloso e Kassin trabalharam no comando da produção e programações eletrônicas. O disco conta ainda com a participação do guitarrista Pedro Sá em faixas como “Recanto Escuro”, “Cara do Mundo” e “Neguinho”. Donatinho, filho do pianista João Donato, ficou responsável pelos teclados e sintetizadores de “Autotune Autoerótico” e “Recanto Escuro”. Já os sons de “O Menino” e “Madre Deus” ficaram sob os cuidados dos conjuntos Rabotnik e Duplexx. Jacques Morelenbaum e Daniel Jobim, figuras de peso da música brasileira, participaram dos arranjos de “Mansidão”, no violoncelo e piano, respectivamente. Filho do meio de Caetano, Zeca Veloso foi convidado para elaborar as programações e sintetizadores de “Neguinho”, canção que dialoga com o pop eletrônico que tomava conta das paradas de sucesso mundiais no início dos anos 2010.
Em meio a tanta sonoridade sintética e eletrônica, as interpretações vocais de Gal pouco saem de um modelo que remete ao cool joãogilbertiano, responsável por moldar o estilo de canto da intérprete no início da sua carreira. É aí que podemos notar que, apesar dos diversos caminhos trilhados em sua trajetória, a figura de João Gilberto sempre manteve peso forte na persona artística da cantora. Gal chegou a declarar que a música “Tudo Dói”, faixa 4 do CD, seria um retrato do intérprete de Juazeiro (Costa, 2020). Momentos desta canção contam com versos que são entoados próximos da palavra falada e, na parte final da música, após uma pausa das programações eletrônicas, a cantora sussurra: “As cascas das árvores crescem no escuro/ As cascatas a 24 fotogramas por segundo/ Os vocábulos iridescem/ Os hipotálamos minguam”, sob o acompanhamento do violão de Caetano. Aqui, a invocação a João Gilberto, mestre de Gal e Caetano, atinge sua máxima no intimismo provocado pela voz sussurrada da cantora em contato com o instrumento tocado por Veloso. Forma-se uma simbologia produzida pela cumplicidade da intérprete com seu principal compositor.
“Recanto Escuro”, canção que abre o disco, discorre sobre a origem do eu poético, que seria o recanto escuro, as suas andanças pelas luminosidades da cidade e o contato com coisas como o cool jazz, elemento que traz felicidade, e o álcool, que “só faz chorar”. Mas nos versos finais é que a letra assume um tom autobiográfico em relação à Gal Costa: “Mas é sempre o Recanto Escuro/ Só Deus sabe o duro que eu dei/ Mulher, aos prazeres futuro/ Eu me guardei/ Coisas sagradas permanecem/ Nem o Demo as pode abalar/ Espírito é o que enfim resulta/ De corpo, alma, feitos: cantar”.
Sob bases minimalistas e efeitos distorcidos, a interpretação sóbria da cantora demonstra consciência do passado e do estado atual de coisas. Revela um dado íntimo, “só Deus sabe o duro que eu dei”, e o que lhe legou sua imagem pública: “mulher, aos prazeres, futuro”. A baiana se mostra madura diante da musicalidade eletrônica e suja que conduzirá o álbum, pois sua performance vocal se ancora parcialmente na referência de uma estética despojada que, diga-se, causou certa estranheza quando surgiu no fim da década de 1950. Sugestivamente, quando canta “coisas sagradas permanecem”, há a inserção do violão de 7 cordas tocado por Luís Filipe de Lima, remetendo à sonoridade acústica que, mesmo defronte da plasticidade eletrônica e programada, resiste.
Já a artificialidade vocal é tema de “Autotune Autoerótico”. Versos como – “Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar/ Pelos caminhos que levam à grande beleza/ Americana, global, minha voz na panela lá/ Uma lembrança secreta de plena certeza” – expõem um discurso sobre a ferramenta digital que altera a voz dos cantores e se tornou frequente na música pop desde o início dos anos 2000, ora como recurso estético, ora para mascarar falhas e imprecisões vocais. É também nessa canção que Gal faz um uso mais expressivo da sua voz, sendo, em breves momentos, atravessada pelo artifício sonoro de que a música trata. Nesse sentido, a mensagem da letra parece ganhar reforço por ser mediada por uma das vozes que sempre foi vista pelo imaginário popular como uma das maiores do Brasil.
O uso do autotune em uma música que tece uma visão crítica a ele pode ser visto como exemplo de uma operação que configurou a “canção crítica”, nos termos de Santuza Cambraia Neves. Nesse tipo de canção, o compositor atua “criticamente no processo de composição, fazendo uso da metalinguagem, da intertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversas formas de citação […]” (Naves, 2010, p. 21).
O FLERTE COM O FUNK
Mas o álbum não é um mero exercício de crítica e resistência ao cenário musical de seu momento de lançamento. Fosse isso, não haveria o esforço da cantora e de Veloso, nas entrevistas de lançamento e no projeto gráfico do CD, de articular a estranheza da obra às suas próprias trajetórias e à predisposição que mostraram para estéticas ousadas. Há, em Recanto, uma intenção de realçar esse passado iconoclasta diante das tendências sonoras da cena musical contemporânea. Não como um simples saudosismo. Como em “Recanto Escuro”, o que já foi experimentado, permanece. E pode também ser assimilado ao “novo”. Note-se “Miami Maculelê”, faixa que se envereda pela sonoridade e base rítmica do funk carioca:
Mas por quê/ Mas por quê/ Por quê eu fui meter você/ No meu som/No meu bom/ Miami Maculelê/ Miami Maculelê/ Miami Maculelê/ São Dimas, Robin Hood e o Anjo 45/ Todos dançando comigo/ […]
Você encheu minha vida/ De ternura e sentimento/ Vou virar trabalhador/ Vou deixar o movimento/ E se alguém me perguntar/ O que foi que aconteceu/ Eu responderei então: na verdade o malandro sou eu […] (Recanto, 2011).
O título da música mistura o Miami Bass, estilo norte-americano que embasou o funk carioca, com o maculelê, ritmo do Recôncavo Baiano, berço de Caetano Veloso. Sob sustentação das configurações poéticas e musicais do funk, a letra da canção remete à figura do malandro, típica do samba urbano, além de conter programações e sintetizadores de Kassin. Gal, utilizando um canto ritmado comum ao gênero, canta trechos que mencionam figuras como São Dimas, Robin Hood e Anjo 45, conhecidos por se colocarem ao lado dos pobres e marginalizados. Há um claro interesse em relacionar esse universo com a própria marginalização do funk carioca perpetrada por alguns setores da elite cultural. Caetano surge na canção entoando como um MC versos que citam “Conversa de Malandro”, de Paulinho da Viola. As referências citadas pela canção aludem também ao show -Fa-Tal-, no qual Gal cantava “Charles, Anjo 45”, de Jorge Ben, mencionada na letra.
Curiosamente, o autotune é um recurso utilizado em “Miami Maculelê”. Em alguns momentos, a voz de Gal se integra e se perde nos sons construídos eletronicamente. A intérprete soa como uma estrangeira em contato com elementos culturais que ainda não havia explorado em sua carreira. Musa consagrada da MPB, a cantora emprega o batidão carioca e o dispositivo de distorção vocal para reafirmar sua ousadia musical como intérprete e, o que não pode ser desconsiderado, marcar presença em um estilo massivo consumido predominantemente pelas novas gerações.
DE CORPO, ALMA, FEITOS: CANTAR
Recanto renovou o repertório de Gal e proporcionou diálogo com uma nova geração, notável nos álbuns seguintes lançados pela cantora. Em discos como Estratosférica (2015), A Pele do Futuro (2018) e o derradeiro Nenhuma Dor (2021), a intérprete ampliou esse contato através da presença de músicos variados como Malu Magalhães, Marília Mendonça, Emicida, Criolo e Tim Bernardes nas composições e interpretações. O público jovem se interessou por sua trajetória e, graças às possibilidades da internet, novas gerações ouvem e compartilham obras como Gal (1969), -Fa-Tal-, Índia (1973), Cantar (1974), Gal Tropical (1979) e O Sorriso do Gato de Alice (1993). A imagem da cantora, ousada e sensual, virou expressão de rebeldia em um período histórico convulsionado pelo autoritarismo militar e a violência política, ao mesmo tempo que se tornou símbolo para pautas de ampla repercussão no século XXI, como a contestação à caretice e ao reacionarismo brasileiro que vigoraram na segunda metade dos anos 2010.
Sem querer apontar o CD de 2011 como o marco zero dessas constatações, é flagrante como o álbum realizou um exercício de memória sobre a própria carreira de Gal Costa por meio do encontro experimental com as tendências eletrônicas e bases rítmicas do cenário musical contemporâneo. Isso não seria possível sem as marcas – tropicalista, contracultural, massificada – que a cantora deixou na música popular brasileira dos anos de 1960, 70 e 80. Talvez por isso mesmo Caetano Veloso tenha dito que Recanto serve para entender a trajetória artística da baiana.
Referências
CAMARGO, Felipe Aparecido de Oliveira. O espetáculo -Fa-Tal- Gal a Todo Vapor: performance e resistência cultural. Trilhas da História, v. 12, no 23, p. 78-98, ago-dez. 2022.
MELHOR MÚSICA. GAL Costa e Caetano Veloso sobre o CD Recanto. Youtube. 26 out. 2020. [27min21seg]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MA1rAFqyLjA. Acesso em: 26 out. 2023.
NAPOLITANO, Marcos. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural. Anais do IV Congresso da IASPM-AL. Cidade do México, abr. 2002, pp. 1-12.
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1968). São Paulo: Annablume, 2001.
NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
PERDIGÃO, Leticia. Caetano Veloso faz homenagem emocionante a Gal Costa nas redes sociais. Metrópoles, 10 nov. 2022. Disponível em: https://www.metropoles.com/entretenimento/musica/caetano-veloso-faz-homenagem-emocionante-a-gal-costa-nas-redes-sociais. Acesso em: 26 out. 2023.
XEXÉO, Artur. Sobre todas as coisas. O Globo, Segundo caderno, 25 jul. 2004, pp. 1-2.
Como citar este texto
CAMARGO, Felipe Aparecido de Oliveira. O Passado e o Presente de Gal Costa em Recanto(2011). A música de: História pública da música do Brasil, v. 5, n. 2, 2023. Disponível em: https://amusicade.com/recanto-2011-gal-costa/ . Acesso em: 02 jan 2025.