A modernidade Feminina de Joyce, entretempos
Nashla Dahás
Nashla Dahás é doutora em História Social pela UFRJ, com pós-doutorado em História do Tempo Presente pela UDESC. Atua como professora colaboradora da UENP na área de Ensino de História e como revisora da Editora Raiz Educação-RJ. Pesquisa temas relacionados às ditaduras no Brasil e no Chile e à ambiência latino-americana na segunda metade do século XX.
Ouvir o disco Feminina (1980) de Joyce Moreno, produzido imediatamente antes da redemocratização, hoje, imediatamente após a ocupação bolsonarista do Estado brasileiro, é uma experiência entretempos singular. A longevidade do sucesso da cantora e compositora carioca é marcada por permanências de estilo, harmonia e estética, na contramão dos cânones da instituição Música Popular Brasileira, como Chico Buarque e Caetano Veloso, cujas produções vêm se caracterizando pelo esforço deliberado de interação e diálogo entre a força da MPB dos anos de 1960 e 70 e o que surgiu de novo desde então; as novas formas de sentir os brasis atuais. Feminina é considerado o LP mais autoral de Joyce e traz canções como “Revendo os amigos”, “Coração de criança” e “Compor”, nas quais a narradora se explicita, se mostra, transparente e unívoca, tão perto cronologicamente, porém sensivelmente distante da viragem para o mundo multifacetado, polifônico e estridente que estava por vir. Em “Brasileiras canções”, que integra álbum inédito de Joyce lançado em 2022 (Biscoito Fino), encontramos o mesmo tom e o mesmo padrão de sofisticação musical, a mesma alegria – ingênua demais ou astuta demais – de quem acredita que “Apesar desse pano sombrio\ Inda brilham paixões\ Brasileiras canções\ Costuradas no céu do Brasil”.
CANTANDO AS HISTÓRIAS E OS CASOS ANTIGOS
De certa maneira, se o caminho trilhado por Joyce Moreno pode ser visto como uma maneira arguta de fugir das contradições e desafios colocados desde O fim da canção (2012) e Depois do fim da canção (2018), a trajetória da cantora também pode ser lida como um modo de não sucumbir para sempre à utopia modernizadora fundante de várias matrizes de pensamento e criação consolidadas no Brasil na segunda metade do século XX, segundo a qual tempo é sinônimo de mudança e de “progresso”. Aparentemente indiferente ao debate bastante restrito a um círculo masculino de artistas, intelectuais e artistas-intelectuais que se perguntam qual é o lugar da tradição da canção popular na realidade social do país, a música de Joyce persiste com “Os gestos de sempre, a risada em comum\ Contando as histórias e os casos antigos\ As músicas novas\ Sem moda, sem tempo nenhum”.
Em um movimento pessoal e profissional de contínua valorização das raízes da MPB consagrada na década de 1970, Joyce reafirma “a perfeição espontânea e quase sem esforço” da Bossa Nova, como a descreve Lorenzo Mammì (1992) ao abordar a música de João Gilberto e o projeto utópico bossanovista. O mais interessante, porém, é que essa aposta ofereceu a Joyce Moreno um acordo de paz com o mercado 40 anos depois de a compositora ter sido banida por uma indústria fonográfica em sintonia com o regime ditatorial dos milicos no poder. Em entrevista recente por ocasião de seus 75 anos, Joyce revela o boicote que sofreu ao processar a gravadora EMI-Odeon no começo dos anos 80, por terem utilizado as bases de sua gravação para o disco de uma outra cantora sem autorização:
“… E era eu tocando, os arranjos eram meus, os vocais de apoio eram meus, e eu coloquei um advogado pra resolver essa questão e eles tiveram que tirar o disco de circulação. Aí, por causa disso, foi convocado um boicote entre todas as gravadoras majors do Brasil. Isso aconteceu no ano de 1982 basicamente, e durante muitos anos eu fiquei marcada e não pude mais gravar em nenhuma gravadora major no Brasil, tive que me tornar artista independente”. (Moreno, 2023)
Assim se explicaria o sucesso da cantora ligado a um público seleto e ilustrado no Brasil democrático pós-85. Ao mesmo tempo, é curioso observar como o mundo atual traga a arte politicamente despretensiosa tanto quanto meio século atrás. Explico: “Feminina”, “Clareana” e “Essa mulher”, por exemplo, parecem distantes da representação das ideias feministas que tomariam a centralidade no âmbito dos movimentos sociais e das políticas públicas logo em seguida. É certo que, como afirma Joana Maria Pedro (2008), desconhece-se qualquer movimentação de mulheres e feministas em 1968, no Brasil. Entretanto, ressalta a historiadora, algumas mulheres que se tornaram conhecidas como feministas nos anos 70 já estavam escrevendo, discutindo, divulgando ideias:
“Embora no Brasil ainda não existisse movimento feminista organizado no início dos anos 1960, o país, junto com a ditadura militar que começara em 1964, vivia também um “clima” de discussão e reflexão sobre aquilo que se chamava de “condição da mulher”. As ideias, os debates, os livros, já estavam circulando”. (Pedro, 2008)
No rescaldo dessa cultura, entretanto, a música de Joyce Moreno não reivindica um espaço identificado com as mulheres, antes, parece reproduzir à sua maneira o ideal de universalidade imbricado na construção da MPB enquanto campo artístico e associado à hegemonia cultural de um espectro de esquerdas cujo tom “pedagógico” foi perdendo o sentido numa leitura interseccional da sociedade brasileira. Em certa noite de 1968, Caetano Veloso, do alto do palco, se dirigiu ao público: “Vocês não estão entendendo nada! […] Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”. O chamado progressismo de esquerda, ao que tudo indica, continuaria pensando que o público, o povo, os manifestantes “não entendem nada” até os idos da década de 2010, quando a emergência da extrema-direita e dos neoconservadores demonstrou amplo poder de mobilização interclasses e obrigou a todos a se perguntarem o que foi que aconteceu… Uma pena. E no entanto, hoje, Joyce, talvez sem querer, vai se tornando uma referência como a compositora, a instrumentista, a cantora, a artista remanescente da classe média carioca bossanovista, ativa, produtiva, criativa, inesgotável. Sem buscar “dar voz” a um público que desconhece, sem renegar a vida sofisticada, sem se render ao “rasga coração” da MPB feminina de sucesso, sem falar a gramática dos grupos com script, a cantora vai conquistando mercado, público cult, jovens artistas, além dos apreciadores mais antigos. Em reedição de 2020 do livro Fotografei você na minha Rolleiflex, originalmente publicado em 1997, Joyce, que é também envolvente escritora, reafirma: “A minha música não tem gênero definido, só porque foi feita por uma mulher” (Pág. 273).
A CAPA DO DISCO É UMA INTRODUÇÃO
Além de canções como “Mistérios” e “Aldeia de Ogum”, outro destaque de Feminina foi a capa do LP, produzida pelo fotógrafo e artista gráfico Luiz Fernando e por sua esposa Luhli. Em entrevista para o “Arte na Capa”, programa do Canal Brasil, em 2019, Joyce conta que o momento foi registrado num sítio em Mangaratiba, sem grande produção, maquiagem e parafernália modernizante, enquanto ela tocava violão. Naquele mesmo ano de 1980, o rosto de Gal Costa estamparia o LP Aquarela do Brasil, Rita Lee de corpo inteiro ilustraria seu álbum contendo “Mania de Você” e “Lança Perfume”, Joanna faria sucesso como o disco Estrela Guia, enquanto Elis Regina aperta os olhos em gargalhada característica na capa de seu último álbum de estúdio, lançado em dezembro pela gravadora EMI-Odeon. De fato, dois elementos nos parecem hoje singulares quando colocamos o LP de Joyce Moreno em perspectiva diante de tantas estrelas da época: a espontaneidade da imagem, contrastante, vale dizer, com o extremo cuidado musical ao longo do disco; e o olhar que não encara a câmera, o público, o mundo externo a quem geralmente um(a) artista pretende agradar. Na fotografia, o olhar de Joyce se volta para o violão – é com ele que se dá a sua parceria, é com ele que se estabelece a sintonia fina em uma relação completa, e ponto final. Foi um sucesso, ainda bem.
A reedição de Feminina em versão CD foi dirigida por Marcelo Fróes e Maurício Gouvêa pelo Selo Discobertas. Capa e contracapa foram fielmente reproduzidas no encarte, que também oferece ilustrações, fotografias e um texto de abertura assinado por Gouvêa. Segundo o pesquisador musical, nas faixas gravadas em 1980 ao vivo no estúdio, Joyce, Tutty Moreno e o baixista Fernando Leporace encontraram soluções criativas para as canções, elevando suingue e musicalidade ao que posteriormente seria chamado de “hard bossa” – mistura singular de samba e Bossa Nova produzida na Copacabana do Beco das Garrafas (diferente portanto da música própria à Zona Sul de Ipanema e Leblon). Sua sonoridade mimetiza o jogo de corpo próprio à “malandragem”, um flerte com a desobediência, cordial e festivo, como ainda se vê nas representações do Brasil das canções de Joyce.
Se é verdade que a novidade do momento reside no lugar que o “popular” da sigla MPB ocupa na sociedade e na cultura atuais, como afirmou Pedro Cazes em 2018 a respeito da frustração das expectativas incrustadas na forma da canção popular; e, ainda, que foi ao longo dos anos 80 que a MPB perdeu centralidade na imagem da cultura brasileira, Feminina pode ser percebido como um disco limiar, entretempos. Nele, encontramos elementos clássicos de seu tempo, como a despretensiosa “Clareana”, defendida no Festival MPB 80 e acolhida pelo público de rádios e TVs. Mas há ainda sintomas não datados, incertezas, imaginários apenas esboçados em letras e melodias cujo inacabamento de sentidos garantiria vida longa: “- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?\ – Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.\ – Então me ilumina, me diz como é que termina? – Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.\ Costura o fio da vida só pra poder cortar\ Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar”.
Em “A Chuva sem Gal”, composição em parceria com Marcos Valle após o falecimento de Gal Costa em novembro passado (melodia de Valle e letra de Joyce), lançada nas plataformas de streaming um mês depois, Joyce Moreno retoma um “Brasil brasileiro” desligado do tempo, mesmo quando nota que o céu muda de forma: eis um talento particular.
Referências
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Como citar este texto
DAHÁS, Nashla. A modernidade Feminina de Joyce, entretempos. A música de: História pública da música do Brasil, v. 5, n. 1, 2023. Disponível em: https://amusicade.com/feminina-1980-joyce-moreno/ . Acesso em: 3rd dezembro 2024.