A culpa deve ser do sol
Luís Felipe Machado de Genaro
Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, pesquisador e escritor. Mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Preparado para a nova turnê “Que tal um samba?”, que tem início em setembro de 2022, Chico Buarque de Hollanda tem sido lembrado pelas gerações mais novas que o acompanham – mais que as antigas, nesse caso – em razão de seu último álbum, Caravanas, lançado pela gravadora Biscoito Fino há cinco anos. Na noite de 28 de julho de 2017 o single Tua Cantiga era lançado. Chico regressava.
Chico Buarque possui métodos e padrões já conhecidos, versando entre a melodia e a literatura, as canções e os livros, como um artista brasileiro completo, aquele que não apenas trabalha com os pés fincados na realidade de seu próprio tempo, mas com olhares sempre muito atentos: resgata o relevante – e urgente – do trágico passado brasileiro, sempre de braços abertos para um futuro de múltiplas possibilidades.
No belo ensaio “O Artista e o Tempo”, José Miguel Wisnik escreveu:
Não é difícil perceber que, às vezes, Chico Buarque faz como se virasse, com uma canção, a página da História. […] As canções de Chico, ao mesmo tempo que assinalam acontecimentos da vida brasileira nas últimas décadas, são elas próprias acontecimentos marcantes que se vão formulando para nós em tempo real e em tempo simbólico (WISNIK, 2004, p.243).
O tempo, o amor, a canção
No álbum de 2017, versos críticos são pincelados com sutileza no palco de seu personagem principal: o tempo. Quando o engajamento aparece, é ecoado com potência inigualável. Junto ao Chico político, os afãs românticos e lirismos que esbanjam as dores e doçuras do amor também transitam em todas as canções de Caravanas, onde as temáticas e historietas variam.
Em Tua Cantiga, o tema da saudade é colocado à mesa. Saudosos do grande artista, os fãs estavam ansiosos por uma nova composição. Chico caminha para o centro do palco com a velha finesse, abrindo “alas” para novas composições, dando início ao quebra-cabeças de Caravanas.
Ao escutarmos a canção, percebemos que o amor que sente por aquela mulher, dona da cantiga, chega às raias do indescritível. Ninguém amou como ele amou, nem faria qualquer coisa por ela como um dia fez. Abraços, beijos, suspiros, sentimentos dúbios, cheganças e partidas marcam a relação dos apaixonados em uma tensão que caminha de forma sutil para um desfecho triste, quase sempre a marca indelével dos grandes amores que são quando não podem ser: “Quando o nosso tempo passar/ Quando eu não estiver mais aqui/ Lembra-te, minha nega/ Desta cantiga/ Que fiz pra ti”.
Na segunda faixa, Blues pra Bia, Chico traz a temática da liberdade sexual com singela naturalidade. Em um país marcado pela homofobia, o preconceito e a intolerância diante das escolhas pessoais do “outro”, Bia é a personagem criada por Chico para trazer de forma simples essa questão. O cantante está perdidamente apaixonado por Bia, moça que “vive solta por aí”, distante de compromissos, com um coração livre. Apaixonado, mas consciente dos descaminhos da paixão, sabe que no coração de Bia “meninos não têm lugar”. Entre insinuações e cantigas, todas sem sucesso, o cantante volta ao universo dos absurdos como o sujeito apaixonado de Tua Cantiga: de tanto que ama, em um desvario sentimental, viraria “até” uma menina para namorá-la.
O tempo – assim como amores impossíveis – é o grande vilão de A Moça do Sonho, composição de Chico com o grande amigo Edu Lobo. Entre o correr do relógio, a personagem que canta parece caminhar para alcançar o seu amor, sem sucesso: “Soprei seu rosto sem pensar/ E o rosto se desfez em pó”. Em algum lugar longínquo, noutra realidade, os laços com a sua paixão seriam atados e o amor, finalmente, vivido. Assim como o tempo foge entre os dedos, a moça também foge daquele homem.
O tempo sempre fora personagem importante nas obras de Chico, agora, porém:
O tempo como acontecimento que se desprende da ordem linear das coisas e que vaga por si mesmo, para além delas e para dentro delas, modelando-as, transcendendo-as, destruindo-as e dando-lhes a quintessência, projetando-as na vertigem do finito e do infinito (WISNIK, p.256, 2004).
Os prazeres de Chico
Já em O Jogo de Bola, o futebol entra em cena. Chico aproveita para lançar tiradas inteligentes sobre os dias que correm, afinal, são tantas frustrações e dificuldades, tantos são os dribles no campo… “Há que aturar uma embaixadinha, deveras/ Como quem tira o chapéu para a mulher/ Que lhe deu o fora”. Nos últimos anos, engolir sapos e ainda “ficar feliz como pinto no lixo” parece o “esporte” favorito do brasileiro. E o bom humor está ali. Para Regina Zappa,
Futebol é provavelmente a maior de todas as paixões de Chico. Maior que a música? Pode ser. Uma vez, chegando a Paris, um funcionário do aeroporto notou que havia uma certa movimentação em torno Chico e perguntou se ele era alguma estrela. ‘Sou um famoso jogador de futebol’, afirmou, estufando o peito. ‘E aquela caixa de violão na esteira?’, perguntou cético o funcionário. ‘É o disfarce para as minhas chuteiras’ (ZAPPA, p.135, 2016).
Em Massarandupió, nos sentimos de fronte ao mar. Durante a sua última turnê (2018), Chico dirigia-se ao público momentos antes de cantar, explicando a composição: a canção falava de sua relação com o neto, o também músico Chico Brown, durante as viagens de família para a praia, na Bahia. “É o xuá/ Das ondas a se repetir/ Como é que eu vou saber dormir/ Longe do mar”. Aqui, a proximidade moleca das canções de Chico com expressões infantis aparece lindamente. E como não poderia deixar de ser, o senhor de todas as coisas e grande personagem do álbum – o tempo – dá as caras novamente: “Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal de Massarandupió”.
Já a “nova velha” canção Dueto, aquela cantada por Chico e Nara Leão em uma gravação tão conhecida pelo público da Música Popular, retorna em uma versão atualizada – não só nas vozes, agora com Clara Buarque, sua neta, como também na letra. Se o amor pode penetrar e romper as barreiras mais absurdas – temporais e atemporais -, não seria diferente com a comunicação via internet e redes sociais. Elas protagonizam a mudança de tom, alterando o formato original: “Consta no Google, no Twitter, no Face/ No Tinder, no WhatsApp, no Instagram/ No email, no Snapchat, no Orkut/ No Telegram, no Skype”.
``Desaforos``
Próximo de lideranças e governos populares, movimentos sociais por terra e moradia, e quase sempre presente em campanhas políticas, Chico Buarque enfrentou a fúria reacionária também nas ruas. Foi notícia ao ser parado nas esquinas e xingado por homenzarrões que bradavam contra a figura do compositor com o ódio crescente que efervescia no país – aquele que elegeria um candidato de extrema-direita marcadamente racista, xenófobo e homofóbico como presidente da República.
As três canções finais “riscam o chão”, trazendo versos em resposta ao desvario brasileiro. Entre a bruteza e a violência de atos e palavras, a obra buarqueana passa a ser um amortecedor contra o estrago e a tragédia anunciadas. Em Desaforos, com leveza e bom humor, Chico indaga a razão para uma moça tão bela e de lábios tão delicados mal dizê-lo tanto, afinal ele é apenas um “moreno que toca boleros”, um “vagabundo” qualquer. Impossível não traçarmos paralelo entre a historieta vivida entre o músico singelo e a moça “florescida num viveiro” com os ataques constantes vividos por Chico naquele período. E tão logo atacado pelos posicionamentos ideológicos, a velha injúria retornou: mandavam Chico “embora para Cuba”.
Na penúltima canção do álbum, Casualmente, um velho e furtivo romance na cidade de Havana é relembrado. Romance que ficou apenas na memória. “Regressarei, oxalá/ Algum dia ala ciudad/ Y perdidamente en sus calles voy a buscar”. Tudo em Havana é o mesmo: a canção, a catedral, a mulher, e até mesmo o mar. Somente aquela Havana revolucionária não permaneceu. Chico sabe disso. Sem resignações, o tempo do real e dos possíveis marca a sua palavra-cantada.
Se sutilezas e historietas de amor marcam as faixas do álbum de 2017, As Caravanas vem encerrá-lo com um soco no estômago. Chico recolhe fúrias e arma-se de versos velozes e potentes em um manifesto poético-político de tirar o fôlego. O abissal fosso social e a violência gratuita de parcelas barulhentas do povo brasileiro, marcas históricas da cidade onde reside, o Rio de Janeiro, são o palco central da canção. A paisagem carioca é marcada não apenas pelo azul turquesa dos mares que a circundam, mas pela altivez de suas margens: periferias e favelas que transitam e movimentam-se. Não há como esquecer dos “rolêzinhos” e dos arrepios da classe média que quase sempre carregava discursos de ódio e preconceito. As cheganças do povo da Penha e do Irajá em plena Copacabana? Como isso era possível?
Estratificações sociais e a reação de setores privilegiados marcam a canção As Caravanas. Chico parece prever o futuro. Se um ano antes, setores da elite brasileira tinham se aglutinado para derrubar um governo popular democraticamente eleito – tradição política nacional! – não mais esconderiam o rosto ao empurrar às prisões negros e pobres, a violentá-los e exterminá-los. “Como negros torsos nus deixam em polvorosa/ A gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de volta/ O populacho pra favela/ Ou pra Benguela, ou pra Guiné”.
As nove canções que marcam o álbum de Chico Buarque em Caravanas (2017), foram uma lufada de ânimo e centelha de alegria no rolo compressor que tornou-se o Brasil após 2016. Hoje, o cantor volta aos palcos e pergunta aos fãs “Que tal um samba pra raiar o dia?” – claro, depois de uma “dor filha da puta”.
O velho artista brasileiro parece, novamente, prever o futuro. Todos sabemos sobre quem se refere. Esperemos que ele esteja certo.
Referências
WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo, Travessa, 2004.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque para todos. Rio de Janeiro, Ímã Editorial, 2016.
Como citar este texto
GENARO, Luís Felipe Machado de. A culpa deve ser do sol. A música de: História pública da música do Brasil, v. 4, n. 2, 2022. Disponível em: https://amusicade.com/caravanas-2017-chico-buarque-de-hollanda/. Acesso em: 15 jan 2025.