“Terra” e o sonho de uma contracultura brasileira
Rainer Sousa
Rainer Sousa é graduado e mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor do Instituto Federal de Goiás. É coautor do livro História da Música Popular Brasileira para vestibulares e ENEM (2017) e organizador da coletânea Nas trilhas do rock – Experimentalismo e mercado musical (2018).
Lançado em 1973, o disco “Terra” pode ser visto como o álbum que transforma possibilidade em realidade. Cerca de três anos antes de seu lançamento, o cantor e compositor Zé Rodrix acabava de abandonar a clássica e efusiva formação inicial da banda Som Imaginário, que havia aparecido no cenário artístico brasileiro com máximas pretensões. De um lado, a banda acompanhava nomes já consagrados da música popular, chegando a tocar com Gal Costa e Milton Nascimento. De outro, lançara um disco de estreia que demonstrava, de modo muito evidente, que poderiam ser bem mais do que o apoio de grandes nomes da cena artística e mercadológica.
Como bem se sabe, a formação de “supergrupos” nunca foi uma garantia de que um projeto musical pudesse combinar sucesso e longevidade. No caso de Som Imaginário, a prova disso se deu com as divergências que, em 1971, geraram a primeira baixa na banda: Zé Rodrix abandonou aquele afiadíssimo grupo sem ter garantia de nada, mas certo de que a convivência ali havia se tornado impossível. Inseguro a respeito do futuro, o compositor voltou sua atenção para o universo dos festivais de música popular. Mesmo em baixa, esse tipo de evento ainda tinha relativa importância e, ao mesmo tempo, tinha sido fundamental para o começo da sua própria carreira, quando, ao lado de Edu Lobo, figurou entre um dos vencedores do 3 Festival de Música Popular Brasileira, realizado em 1967.
Para que esse retorno fosse possível, Zé Rodrix compôs com o guitarrista Tavito (ainda no Som Imaginário) a canção Casa no Campo (1971). À revelia do desempenho da canção em festivais, ela foi peça fundamental para que um verso se transformasse em uma ideia maior. Além de descreverem a tal “casa” como uma aspiração por um lugar de paz e aconchego, os autores afirmam que ali esperavam poder “compor muitos rocks rurais”. A partir deste breve verso, se abriu um universo capaz de dialogar com o que acontecia naquele momento. Um tempo nada fácil de compreender. Afinal, a década de 1970 não deixaria a menor dúvida de que a cultura jovem era uma ideia de forte presença e que, em termos musicais, muito se via representada pelo forte enlace entre o rock e a contracultura.
O rock rural
Mesmo que relevantes e alçados à condição de fenômenos transnacionais, o rock e a contracultura seguiram tons específicos em cada lugar em que se combinaram. No caso brasileiro, observamos “esse tal de rock’n’roll” e a contracultura se configurarem em um contexto de forte autoritarismo. É de se imaginar que o golpe de 1964 e as tenebrosas arbitrariedades perpetradas pelo AI-5 a partir de 1968 tenham silenciado o discurso contracultural entoado ao som das guitarras elétricas, transformando-o em uma grande impossibilidade. Contudo, apesar da ditadura, tivemos muito rock, tivemos nossa contracultura e, justamente por tais motivos, ressaltamos o surgimento dessa ideia então nomeada de “rock rural”.
Na condição de parte integrante de um fenômeno transnacional, o “rock rural” tinha uma inspiração declarada na romântica e, por vezes, revolucionária pretensão que os movimentos de contracultura carregavam ao negar a modernidade por meio de um regresso à natureza. Mais conhecida como back to the land esta pauta da contracultura desejava dar as costas para os grandes centros urbanos e, por consequência, buscar no meio rural uma possibilidade de se viver longe da poluição, do consumismo, da celeridade e de outros padrões comportamentais que expressassem o triunfo da ordem capitalista. Mesmo que aparentemente escapista, esse “braço” da contracultura foi o responsável pela formação de várias comunidades alternativas e pelo desenvolvimento do interesse em se utilizar a Terra fora de um modelo irresponsável e predatório.
Com o sucesso da canção, Zé Rodrix passa a fortalecer laços com amigos que já conhecia dos tempos do “Solar da Fossa”, um antigo casarão que foi responsável por abrigar artistas que tentavam a sorte na cidade do Rio de Janeiro, entre o fim da década de 1960 e o começo dos anos de 1970. Foi então que surgiram Sá e Guarabyra, dois compositores que tinham um perfil bastante semelhante ao de Zé. Já possuíam relativa entrada no mundo da canção popular, tendo gravado discos e participado de festivais da canção naquele mesmo período. Em conjunto, deram um corpo robusto ao “rock rural”, preenchendo-o com sonoridades e temáticas que davam mais sentido à ideia de se refugiar nos rincões de um país de dimensões continentais.
Passado, presente e futuro
O trio chegou às prateleiras das lojas em 1972, com a gravação do disco Passado, presente e futuro. A ideia de se misturar guitarra com viola caipira não era exatamente inédita, já que Os Mutantes já apontavam nessa direção quando fizeram a gravação de 2001, onde o sotaque do interior paulista era usado e abusado para falar sobre uma viagem pelo espaço sideral. Contudo, o trio avança nessa possibilidade ao gravar um disco inteiro que tenta fazer essa síntese entre o tradicional e o moderno. Dele saem canções de grande arrojo e prestígio, entre as quais se destacariam Juriti Buterfly, Primeira Canção da Estrada e Cigarro de Palha como as primeiras representantes do rock rural de Sá, Rodrix & Guarabyra.
O retorno desta empreitada foi reconhecido com uma série de shows realizados entre os anos de 1972 e 1973. Em diversas entrevistas, eles mesmos relembram a aventura de tocar em diferentes lugares do Brasil como uma espécie de ato com dupla função: por um lado, a agenda de shows fortalecia a carreira dos três músicos e, por outro, as aventuras e percalços dessa travessia faziam da turnê uma experiência de vida alternativa. Nesta sobreposição entre a arte e o mercado, o som do trio chegou a diferentes lugares e garantiu que a Odeon bancasse a gravação de mais um disco. Foi daí que surgiu Terra, segundo álbum do trio e responsável por transformar o rock rural em uma realidade.
Terra: Um sinal de sucesso da contracultura
Diferente do primeiro disco, Terra já tinha na elaboração de sua capa um projeto gráfico muito mais sofisticado do que o bicromatismo reservado ao disco anterior. Além das imagens coloridas, o trio aparece em uma foto conceitual, em que surgem no meio do mato com as costas de um outdoor ao fundo, representando essa junção entre tradicional e moderno. Além disso, o projeto de Terra trouxe na contracapa a frente do mesmo outdoor, que estampa um violão no qual as cordas se transformam nos fios de uma rede de alta tensão organizados por postes espalhados ao longo do braço do instrumento, cuja superfície conta com o desenho de uma estrada asfaltada e sinalizada.
O disco se inicia com a dançante Anos 60, canção que aponta para um exercício memorial que se desdobra em três dimensões. Primeiro, do ponto de vista estético, ela mostra que até o começo dos anos 1960 o rock não era somente uma música destinada aos jovens, mas também um tipo de dança que propiciava deleite àqueles corpos. Em segundo lugar, a canção serve como um registro de que o rock estava sendo consumido em terras brasileiras, o que torna possível compreender como a própria Jovem Guarda conseguiu se viabilizar por aqui. Por fim, a mesma canção assinala toda uma sociabilidade que se estruturava em torno da escuta e da dança propiciada pelo rock`n`roll.
Após esse breve “rock memorialístico”, a banda fornece, no primeiro lado do disco, uma das canções mais lembradas pelos seus fãs: Mestre Jonas. Aqui, Terra funde o “back to the land” com a questão da religiosidade. De fato, entre seus vários interesses, o movimento contracultural flertou com experiências religiosas e místicas de origens diversas, principalmente as de tons orientais. Indo por um caminho contrário, Sá, Rodrix e Guarabyra se inspiram no mito do profeta Jonas e criam um escape feliz da modernidade autoritária brasileira. Transformaram um Jonas punido por Deus, em um Jonas realizado, um profeta cristão que não precisa pregar para ninguém que não seja ele mesmo.
Contudo, mostrando que o anseio contracultural não se resolvia pelo devaneio das soluções mágicas, o grupo ressalta a vitória e o avanço da modernidade capitalista. Em Adiante nossos compositores entoam que a busca por um outro mundo não surge do nada, não cai dos céus como se fosse a própria intercessão do Espírito Santo. Confessando-se como um sujeito “bem normal, como se deve andar”, o eu-lírico expõe o “adiante” como uma ordem imposta a si mesmo. Seguir em frente aparece como um modo de resistência, em que as intempéries são respondidas com alegria e pró-atividade. Desse modo, ele firma um pacto consigo, em que promete não mais “ficar parado no meio do tempo” e, quando algo ruim acontecer, ele determina que “se a chuva desabar, eu vou me mexer/ Eu vou me cuidar, não vou me molhar”.
Neste ponto, fica evidente que o disco Terra é um signo manifesto da contracultura que se fez possível no Brasil da Ditadura Militar. O manter-se bem e vivo, o interesse em seguir “adiante” aparece em contraponto a uma política de medo e morte. A negação de um tempo em que a liberdade dos sujeitos e a busca por outros mundos eram sistematicamente lançadas à obscura espiral da chamada “subversão”. Mas esta não seria a única forma de resistência proposta e possível naqueles tempos, principalmente quando focamos nas possibilidades estético-musicais que se proliferavam na crescente indústria fonográfica brasileira.
O lado B de Terra: Uma viagem pelo interior
O grupo encerra o lado A do disco fazendo conexões diversas com a contracultura e, não por acaso, passa então ao universo campestre que norteia e justifica aquele grupo de rock rural. No lado B de Terra temos uma imersão profunda em representações de um país interiorano, vasto e, por este mesmo motivo, muito difícil de ser condensado no breve tempo cedido por um dos lados de um long play. Mediante este óbvio desafio, Sá, Rodrix & Guarabyra começam a sua saga rural com a composição Pendurado no Vapor. Tendo ali o rio São Francisco como efetivo protagonista, a canção convida seu ouvinte a uma viagem pelos interiores da Bahia e das Minas Gerais, partindo da cidade de Bom Jesus da Lapa, chegando até a cidade mineira de Pirapora.
A escolha por esta viagem traz muito da vivência pessoal de Guarabyra, que nasceu em Bom Jesus e, no tempo em que esteve com o trio, permitiu que os cariocas Sá e Zé Rodrix tivessem contato com universo interiorano da sua cidade natal. No fim das contas, a região especificamente evocada no disco se transforma em uma referência ampla, que tenta capturar a atenção daqueles que anseiam por essa vida distante das agitações citadinas. Isso fica evidente quando as viagens pelo interior e o conjunto de impressões das canções seguintes trazem uma perspectiva pendular, fazendo as imagens interioranas vagarem entre os tempos passado, presente e futuro.
Não por acaso, as duas canções seguintes, O pó da estrada e O brilho das pedras/Paulo Afonso surgem como uma unidade no disco. Ambas utilizam elementos específicos que cumprem uma dupla função: lembrar o ouvinte que seguimos no campo e indicar que as vivências de seus respectivos eu-líricos se apresentam como uma experiência do passado. Dito de outro modo, as “pedras” e o “pó” são o despertar daquilo que se viveu quando as obrigações da modernidade urbana se encontravam, ainda que brevemente, distantes.
O pó da estrada pode ser considerada uma canção que registra de modo eficaz o desenvolvimento de uma contracultura brasileira. Afinal, ela não se limita à ideia de expor os sabores e deleites de um sujeito que larga tudo para se embrenhar pelos interiores, como diversos hippies o fizeram naqueles tempos. Ela indica para o seu ouvinte uma experiência de ordem social, quando destaca a presença de “um velho vagabundo”, que assim como ele transitava por aquele mesmo espaço longínquo. Essas estradas levaram para lugares distantes, mas também efetivaram o encontro daqueles que romperam com os padrões de vida daquele tempo e que, em alguma medida, partilhavam o mesmo coração que “ainda rolava pelo mundo”.
O brilho das pedras
Em contrapartida, nota-se em O brilho das pedras/ Paulo Afonso que a experiência rural também poderia ser efêmera, não chegando a se constituir como uma forma de vida definitiva. A extensão das notas no fim dos versos e os cantos corais reforçam uma sensação de melancolia em que a vida no campo atravessa a memória do seu eu-lírico, que se dedica a descrever as minúcias que envolvem a oportunidade de ouvir os bichos, testemunhar o nascer do sol ou ter os olhos cegados pelo brilho das pedras. Já em seu fim, ressurge na canção o vapor que aparece no início do lado B, como a embarcação que conduz o ouvinte a um dos vários interiores que compõem o Brasil.
Até mais ver é a canção que fecha o disco e destaca que a vida no campo nem sempre se efetiva. Ou seja, ainda que desejada, a ruptura nem sempre é possível. E é por esse motivo que o disco se vincula diretamente com a estrada que traz na capa. A tal Casa no Campo nem sempre será o símbolo de uma vida que corta laços com a modernidade, mas de um tempo breve em que o avanço da vida urbana é entrecortado pela natureza, que também, posteriormente, se veria ameaçada pelo avanço desregrado das fronteiras agrícolas, das disputas de terra e pela ameaçadora imposição das monoculturas. Ainda que a efemeridade e a melancolia atravessem essa ida aos interiores, o rock rural desse trio ainda ressoa nas vitrolas dos ouvintes que rememoram ou que, pela primeira vez, aprendem sobre a contracultura que foi possível naqueles tempos de sonho e temor.
Referências
SOUSA, Rainer Gonçalves. Uma estrutura de sentimento em tempos autoritários: o romantismo no cancioneiro de Zé Rodrix. 2020, 303f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca. 2020.
VAZ, Toninho. O fabuloso Zé Rodrix. São Paulo: Olhares, 2017.
Como citar este texto
SOUSA, Rainer. “Terra” e o sonho de uma contracultura brasileira. A música de: História pública da música do Brasil, v. 4, n. 1, 2022. Disponível em: https://amusicade.com/terra-1973-sa-rodrix-guarabyra/. Acesso em: 26th dezembro 2024.