Salve ela! Virgínia Rodrigues: A voz maior quando canta
Marilda Santanna
Marilda Santanna é cantora, com três álbuns gravados e três livros lançados pela EDUFBA, professora-doutora e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, e professora-pesquisadora do NEIM – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, ambos na Universidade Federal da Bahia; com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa em 2013-2014 (bolsa CAPES) e pelo Instituto de Artes da Unicamp (2019-2020). Atualmente dedica-se a pesquisar a genealogia da intérprete negra na Música Popular Brasileira.
Aclamada e incensada pela crítica internacional, em turnê por 26 países entre Europa e América, e pelo centro-sul do Brasil, a cantora baiana Virgínia Rodrigues completou 22 anos de carreira com mais um álbum lançado pela Natura Musical em julho de 2019: Cada voz é uma mulher (CADA…, 2019). Produzido pelo cantor e compositor baiano Tiganá Santana e pelo violonista Leonardo Mendes; contando ainda com João Taubkin no baixo e Sebastian Notini e Cauê Silva na percussão; a cantora estimulada pelo seu produtor artístico aceitou o desafio de gravar só compositoras mulheres de língua lusófona cuja música se conecta com a ancestralidade. Nada mais acertado para um momento em que o aquilombamento de mulheres, em especial, de mulheres negras, serve de instrumento de resistência demonstrando que o coletivo é um ato de empoderamento do feminino.
Composto por nove faixas, número representado no candomblé pelas yabás, as orixás femininas, a artista explica que o disco é dedicado às mulheres. Para falar sobre a feitura do álbum entrevistei o produtor artístico, professor e doutor em filosofia, cantor e compositor Tiganá Santana, que também produziu o aclamado e premiado álbum anterior, Mama Kalunga. Antes, porém, umas poucas linhas sobre a origem da artista, suas influências e suas escutas.
Yabá da canção
Nascida e criada em Salvador, no bairro de sete de abril, no subúrbio ferroviário, foi manicure, cozinheira, empregada doméstica, até participar do programa de calouros do Big Ben, em Salvador, ganhando todas as eliminatórias. A oficina de canto coral da fundação cultural também foi um espaço de aprendizado; bem como o coro de câmara da Bahia, o coral de São Bento, dentre outros. A artista afirma que a sua formação vocal se deu nos corais que frequentou. “O que me levou à igreja foi a música” (TV Brasil, 2020).
Sua história com a música começa com a escuta. Em Virgínia, o rádio foi seu fiel professor de canto. “Eu sou da época do rádio que o ouvido não era monopolizado” (TV Brasil, 2020). Importante observar como a escuta para muitas cantoras foi a sua forma de aprender a cantar.
Entretanto, sua projeção se deu no início como atriz. Convidada por Márcio Meirelles, diretor do Bando de Teatro Olodum, para fazer parte do espetáculo Bye bye Pelô, sob sua direção, foi o seu pontapé para reverberar seu canto para o mundo. Caetano Veloso, fã do grupo, assiste o espetáculo, se encanta pelo seu canto negro e produz o primeiro álbum da artista, Sol negro, em 1997. Depois deste álbum, produz mais dois álbuns da cantora que sai em turnês internacionais e se torna famosa no mundo.
O quinto e o sexto álbuns, respectivamente, Mama Kalunga (2015) e Cada voz é uma mulher (2019) são produzidos por Tiganá Santana que também a inicia na espiritualidade afro-brasileira. Filha de Ogum, diz que seus ancestrais e suas origens estão no candomblé.
Entrevistei o produtor artístico para revelar o processo de feitura do sexto álbum da artista. Nesta entrevista, optamos por um formato de conversa, evitando perguntas e respostas fechadas. Obviamente, em alguns momentos, a pergunta acontece. Entretanto, ela não foi previamente elaborada. Deixamos a conversa fluir livre, como pode ser constatado ao longo do texto. A opinião da entrevistadora também está presente.
A unicidade do canto de Virgínia
Tiganá (mostrando a capa do álbum fala da escolha da imagem): Começando pela capa de Rodrigo Sombra que exibe a foto do tronco de uma árvore com um enorme orifício. A ideia dos orifícios. Boca, nariz, ouvido, vagina, anus. Este lugar de recolhimento e de expressão. Passando ao título, insistindo um pouco que cada mulher é uma voz, preferi cada voz é uma mulher como ponto de partida. Ou seja, uma ideia feminina da voz, independentemente de onde venha.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Tiganá diz que “o disco tem várias camadas de vozes femininas. A voz da autoria, a voz lírica, a voz melódica. Todas essas vozes confluem para a voz de Virgínia, que vai difundi-las” (LEAL, 2020).
Marilda: A voz de Virgínia é Mezzo Soprano na classificação do canto erudito. A artista, apesar de cantar música popular, em seus álbuns, a sonoridade soa camerística, minimalista que se deixa levar pelo seu canto circular, africano. A voz da artista com ressonância posterior e de cabeça, bastante recorrente em vozes negras, soa escura… Normalmente, se utiliza de notas longas e atinge os agudos com leveza, sem esforço. O seu canto, sem vibrato, soa sofrido, melancólico. Um lamento. Sua voz é profunda em ressonância e em intenção. Atinge o âmago de quem é tocado pelo seu canto. Outro recurso utilizado pelo canto de Virgínia é o boca chiusa. São as mazelas do povo negro que estão contidas no canto da artista.
Sua voz ancora a palavra muito bem articulada neste corpo, tornando-a única, pessoal, inconfundível. É uma assinatura. Impossível imitar. Não é só um timbre, mas uma experiência de vida que se reflete numa voz carregada de subjetividade, história de vida. Com base nesta pequena análise para entender o canto negro de Virgínia Rodrigues é possível compreender, ancorada em Cavarero (2011), que a unicidade da voz está presente em quem fala, e não necessariamente no que se fala. Partindo desta percepção da voz da artista que reverbera em tal frequência que se pode mesmo entrar em transe; como foi dirigir a voz de Virgínia, esta voz captada no estúdio?
Tiganá: Virgínia é um típico caso de alguém que tem uma força, uma paleta de cores na voz, de tal modo que a tecnologia só pode ser para ressaltar isso. Ela tem uma questão com estúdio de resistência ao que não é orgânico. […] Ficávamos no estúdio, perto dela, para que tudo fosse o mais orgânico possível. Para que sentisse um gosto de “casa”. Colocamos o microfone distante, pois ela tem uma emissão forte.
Tiganá: A princípio, eu tinha o desejo de gravar só com repertório de compositoras mulheres. Eu homem, com um desejo de gravar só mulheres, principalmente composições de mulheres. Então, conversando com Virgínia, sugeri a ela gravar este projeto. Ela amou a ideia. E veio todo aquele processo de pesquisa, eu já tinha alguns nomes em mente. E no caso de Virgínia, eu achava importante ela se comunicar com cantoras e compositoras de geração mais nova do que a dela.
Fizemos alguns recortes. Selecionar compositoras de língua lusófona. Além do Brasil; outros países de língua portuguesa como Moçambique, com Lenna Bahule, Angola, Aline Frazão, Portugal, Sara Tavares, Cabo verde, Mayra Andrade e as brasileiras Luedji Luna, Alzira E, Ceumar e Mathilda Kovak e Iara Rennó e um achado; um samba de Carolina de Jesus, imortalizada pelo livro Quarto de despejo.
A faixa da canção de Sara Tavares, Ter peito e espaço, em parceria com João Pires e Edu Mundo é uma das que mais me emociona. Inclusive, quem está tocando clarinete e clarone é Joana Queiroz. Nesta faixa eu acho uma triangulação muito legal. Virgínia cantando, a compositora e a instrumentista.
Com Mayra Andrade, a canção storia, storia tem participação da autora. É a única que não é em português, mas em crioulo. Outro registro neste álbum que eu acho importante é a gravação de uma canção de Carolina de Jesus, Vedete da favela. A atividade de Carolina de Jesus como compositora era absolutamente velada. Mas ela tem disco gravado disponível no youtube. Vedete da favela é a história de Virgínia. Neste álbum gravado por uma mulher negra que tem as referências na periferia e os significados e as camadas que isso possa ter. Virginia gostou muito, se identificou.
Salve ela, ô
Salve ela
Salve ela
A vedete da favela
Conhece a Maria Rosa?
Ela pensa que é a tal
Ficou muito vaidosa
Saiu seu retrato no jornal
Salve ela, ô
(…)
Maria conta vantagem
Que comprou muitos vestidos
Preparou sua bagagem
Vai lá pros Estados Unidos
Salve ela, ô…
Marilda: Virgínia grava esta música com outra interpretação. Como você destaca este momento? Ela usa recursos como o growl e tem um deboche, uma ironia na maneira dela cantar esta música. Diferente do seu jeito interpretativo.
Tiganá: Ela utiliza estes recursos vocais nas inflexões, resgatando o seu jeito cotidiano de ser. Continuando, Ave leve, um oriki transcriado por Antônio Rizério, com música de Iara Rennó. A presença deste orixá feminino, oxum, eu acho importante. Além de ser uma força ligada ao sentido mais amplo. (…) A fertilidade de Oxum ultrapassa a questão biológica. É uma força ligada ao criar. A fertilidade neste sentido, da própria voz de Virginia. Uma composição de Alzira e Arruda, Um beijo de beira; a canção de Ceumar e Matilda Kovak, Oração do anjo, e na sequência, a canção de Luedji Luna, Asas.
Marilda: Eu sinto que a circularidade do canto de Virgínia está presente também na música popular afro-brasileira. A canção Asas de Luedji Luna é um exemplo. O que você acha?
Tiganá: Eu concordo. E sinto que Virgínia ao mesmo tempo que está comprometida com certo tempo (da música), está descomprometida com a marcação de tempo. Ela se compromete com o tempo como algo que se espraia, que é circular, como você disse, e ao mesmo tempo ela se descompromete com uma certa linearidade do tempo. Talvez, por isto, ela permite que os harmônicos, vão, se estiquem, cheguem a lugares mais distantes. E que a própria palavra, por meio da voz dela também, chegue de uma outra forma. De fato, na canção asas, diferente da gravação com a autora; percebe-se em Virgínia, como ela vai expandindo de outro modo a canção.
Tiganá: E por fim, para finalizar o disco, o tema instrumental Ymelelani de Lenna Bahule que são as vozes das duas dialogando. Assim como ela e Mayra, são vozes intergeracionais de lugares distintos. Ela na diáspora, Mayra de Cabo Verde e Lenna Bahule em Moçambique.
Marilda: A propósito, que ritmo é este nesta canção de Lena Bahule?
Tiganá: (Canta o ritmo) Lembra um pouco um vassi lento. O candomblé de Ketu. De todo modo, é um 6/8, só que mais lento. O Ave leve é um ad libitum, livre; e Vedete da Favela, uma chula. Enfim, esta é a ideia geral do disco e a gente ficou muito feliz depois de terminado.
Marilda: E como é que vocês pensaram a sonoridade do álbum?
Tiganá: A sonoridade do álbum… A gente pensou em basicamente um álbum centrado nas vozes de Virgínia e das compositoras. Tentando ir por outro caminho diferente do Mama Kalumga, também produzido por mim, premiado no Prêmio Nacional de Música, pensamos num disco mais minimalista. Pensamos na voz de Virgínia e pensamos em harmonia para dialogar com esta voz que vai trazer as outras vozes femininas. Então você percebe que tem muitos vazios, muitos espaços, justamente para que estes harmônicos possam chegar e ocupar esses espaços. Foi pensado basicamente assim. A voz de Virgínia, evocando as outras compositoras e com poucos instrumentos. E a gente pensou logo no sopro. Porque traz uma ideia de voz também, importante. E é uma instrumentista que trava este diálogo. Joana. O contrabaixo, às vezes com arco, o violão, e alguma percussão. Então, basicamente, foi isso. Uma voz de mulher reunindo uma aldeia feminina.
Marilda: O pensamento feminino, em especial, o pensamento feminino negro é fincado na coletividade. Então, eu acho que este álbum traduz este pensamento, este poder feminino, esta voz feminina. Parafraseando Paul Zumhtor (1997), da intérprete como portadora da voz poética, mas ela também tem voz. Virgínia diz que o número nove representa as yabás no candomblé. Fale um pouco sobre isto.
Tiganá: Tanto o nove de Yansã… Na linhagem Ketu, também, o nove tem uma relação com Yemanjá. Além de Yansã. Então, neste sentido, tem aí duas yabás regendo este número de canções que foi escolhido.
Marilda: Como foi para você, um artista, compositor, dirigir este trabalho exercitando o olhar crítico, mas também de respeito. Como você se localiza neste espaço?
Tiganá: Este exercício faz parte da minha própria personalidade. Estar dentro e fora. Então, neste sentido, acho que foi uma continuidade de uma prática cotidiana.
Referências
Cada voz é uma mulher [Intérprete]: Virginia Rodrigues. São Paulo: Tratore, 2019.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
LEAL, Claudio. ‘Não preciso ser folclórica’, diz Virgínia Rodrigues sobre ser cantora negra: Em ‘Cada voz é uma mulher’, ela faz parceria com artistas como Mayra Andrade e Luedji Luna. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 jul. 2019.
SANTANA, Tiganá. A unicidade do canto de Virginia. [Entrevista concedida a Marilda Santana]. Salvador, 22 set. 2020. Plataforma Zoom.
TV BRASIL. O Sem Censura recebe a cantora Virgínia Rodrigues. [Programa exibido em 27 de setembro de 2018].
VIRGÍNIA RODRIGUES. Site cantora Virgínia Rodrigues, 2020. Conteúdo: biografia, discografia, fotos, vídeos e notícias para o público em geral.
ZUMTHOR, Paul. Introdução a poesia oral. Rio de Janeiro: Hucitec/ Educ, 1997.
Como citar este texto
SANTANNA, Marilda. Salve ela! Virgínia Rodrigues: A voz maior quando canta. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 1, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/cada-voz-e-uma-mulher-2019-virginia-rodrigues/. Acesso em: 22 dez 2024.