As “obscenas obsessões” de Edy Star em Sweet Edy (1974)
Carlos Eduardo Pereira de Oliveira
Carlos Eduardo Pereira de Oliveira é doutorando em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisador de história e música; trabalhou com a cena rock dos anos de 1980 em Florianópolis durante seu mestrado. Atualmente pesquisa a história da MTV Brasil.
O que te define? Uma simples pergunta que pode trazer desconforto para quem a responde. Definição preconiza fronteiras bem estabelecidas, limites que são delineados para conferir sentido. Portanto, ao mergulhar na construção de uma resposta, temos que estabelecer nossos parâmetros. Até aqui, são palavras que circundam o sentido de se definir: limite, fronteira, parâmetros. Coloco mais uma que adensa a questão: barreira. Ao se definir, e, portanto, ao se estabelecer enquanto algo, outras características são deixadas de lado, esquecidas propositalmente, para delimitar uma imagem sobre si.
Porém, essas palavras dificilmente aparecem no universo de Edy Star, multiartista baiano que experimentou diversas expressões corporais, vocais e sensoriais, e ainda hoje brinca com os limites impostos pela sociedade. No alto de seus 80 anos de idade, ostenta uma trajetória única na cena artística brasileira, sendo um dos primeiros a se declarar abertamente como homossexual, no auge da repressão do regime militar. O esfacelamento de fronteiras cravejadas pela transgressão norteou as ações de Edy desde seu início em um circo itinerante na Bahia, passando pelas suas obras plásticas, e dialogando com a música. Um marco da carreira musical é seu primeiro álbum, Sweet Edy, gravado em 1974 pela Som Livre.
A particularidade de Sweet Edy dialoga com a própria trajetória do artista, e para entender a obra se faz necessário entender o criador. Edivaldo Souza nasceu em Juazeiro, na Bahia, e com um ano de vida se mudou com os pais para a capital Salvador. Apaixonou-se por música através das Rádios Nacional e Mayrink Veiga, ambas locadas no Rio de Janeiro, lar de grandes nomes como Vicente Celestino, Carmélia Alves, Emilinha Borba e Francisco Alves. Sua verve artística está intimamente ligada a cultura musical do rádio no Brasil, principalmente a das décadas de 1940 e 1950, que moldaram seus gostos na infância e adolescência. Nesse período, fazia apresentações em casa, imitando seus ídolos a partir da imaginação. Mesmo sem artistas na família, foi influenciado diretamente pela paixão de seu pai por música, um exímio apreciador de grandes artistas da época, e por sua mãe, que cantarolava as canções que ouviam costumeiramente. Em entrevista para o Pasquim, em 1974, Jaguar questiona Edy sobre sua preferência: Marlene ou Emilinha? “Eu sou Emilinha! Tomei surras por causa de Emilinhas! Oh! Eu fugia de casa para ver Emilinha. Apanhava pra chuchu, desaparecia de casa, só voltava no outro dia. Era uma imagem” (STAR, 1974, p.6).
A influência desse período é marcante em Sweet Edy, principalmente na regravação de Esses Moços, composição de Lupicínio Rodrigues. A proximidade com o compositor e cantor gaúcho certamente veio da época do rádio. A música foi gravada pela primeira vez por Francisco Alves, um dos ídolos de Edy e de seu pai, em 1948. A parceria entre Lupicínio Rodrigues e Francisco Alves rendeu diversos frutos, como a canção Nervos de Aço (1947), projetando-os nacionalmente e aproximando essas musicalidades do repertório de Edy. Com uma interpretação cadenciada, a música, no conjunto do álbum, aparece em um momento de calmaria, em meio ao estridente das canções que a precedem e a antecedem. Em Sweet Edy, ao cantar que “esses moços / pobres moços / ah! Se soubessem o que sei”, Edy Star alerta sobre as dores do amor, assim como Lupicínio e Francisco Alves, ao mesmo tempo em que constrói outra camada de significado, dialogando com seu percurso marcado pela transgressão em anos de chumbo.
Entre o circo e o cabaré
A trajetória de Edy Star é marcada por fissuras e quebras de expectativas construídas sobre ele. Aos 20 anos ingressou na Petrobrás como auxiliar e técnico de produção, tendo confortável situação financeira em um contexto marcado por crises políticas e econômicas no país. Falou “chega” após um ano de trabalho. Nas idas e vindas entre o campo petrolífero e a capital baiana, revisitou sua paixão pela representação, entrando em um circo itinerante, ou “mambembe”, como ele mesmo afirma em entrevista a A música de. Ao contar à família, seu pai foi categórico: “na minha família nunca deu artista de circo”. Edy prontamente respondeu que estava “na hora de começar”. Portanto, a memória de seu passado é permeada por rompimentos desde o início de sua carreira artística no interior baiano, até as performances em cabarés da Lapa, já no Rio de Janeiro, nos anos 1970. Recebeu a alcunha de “Rei dos Andróginos” pelo Pasquim em matéria de 1974 – com a palavra andrógino sendo censurada -, pelos seus shows em boates como a Number One, que reunia strip-tease, nudismo, números com travestis e anões, chamando a atenção da classe artística e do regime militar.
Sweet Edy
A capa de Sweet Edy traz um pouco de sua experiência nos palcos cariocas. A arte é de autoria do próprio Edy, com fotografia sua no centro, sentado em uma cadeira, ostentando botas brancas com salto alto, um casaco de pele sobre os ombros, com muito brilho nas pulseiras, colares e cinto, além do peito desnudo. Cabe destacar o trabalho artístico de Antônio Guerrero, um dos mais conceituados fotógrafos brasileiros no período, e que assina as fotos do disco. Guerrero era o responsável pelos cliques de famosos que estampavam a coluna social do jornal Correio da Manhã nos anos 1960, assim como um dos percursores da fotografia de moda no país. Além disso, assina mais de 70 discos, entre eles Índia, de Gal Costa, lançado em 1973, com o recorte do corpo de uma mulher, em uma das principais capas da história da música brasileira. O casamento entre a figura de Guerrero e Edy Star se deu no âmago das expressões artísticas transgressoras no período, com o fotógrafo captando a pluralidade de Edy a partir de suas inúmeras faces destacadas na capa e contracapa.
Indefinível, se espraiou por diversas expressões artísticas, com a atuação e a música fazendo parte de seus shows. Na Number One, em Ipanema, conquistou um público cada vez mais cativo, que frequentava a casa atrás de suas performances. Em apenas 45 minutos, e na maioria das vezes após as 2 horas da madrugada, Edy apresentava grande domínio da plateia, e o espetáculo se tornou um dos principais da casa. Foi lá que João Araújo, presidente da gravadora Som Livre, assistiu uma de suas apresentações e lhe ofereceu um contrato. Para a gravadora, era a chance de ter um artista próximo ao glam rock, que estava em evidência no Brasil através do sucesso de Ney Matogrosso e da banda Secos e Molhados, assim como de Rita Lee & Tutti Frutti. Aliado a isso, o fato de Edy figurar nas colunas sociais com grande frequência ajudaria a alçar o sucesso comercial pretendido. No próprio Pasquim, a chamada de sua entrevista, em 1974, dava o tom de seu impacto:
Ninguém subiu mais depressa no show business que Edy Star. De pontas no teatro rebolado e em cabarés da Praça Mauá, em menos de um ano se transformou no “enfant gaté” do público endinheirado da Zona Sul. (…) Tem gente que viu seu show na Number One mais de 30 vezes. Agora vai lançar elepê, e quem já ouviu garante que vai estourar nas paradas (Pasquim, 1974, p.6)
O direcionamento da gravadora para o glam rock resultou em Sweet Edy, mas o próprio Edy Star afirma que o disco não tem essa identidade: “eu sou cabareteiro, não sou glam. Isso são rótulos que me deram depois do meu disco” (STAR, 2019). A quebra de um modelo pré-estabelecido aparenta ser o ideal que persegue, sendo apresentado na música Claustofobia. Apenas sua voz ecoa nos primeiros segundos de execução, já colocando o tom do que viria dali para frente: “E dou vexame / porque preciso de espaço / quero respirar / se não acabo no bagaço / atravessando o compasso”. O cartão de visitas desse disco, portanto, é uma de suas marcas, convidando o público a olhar bem na sua cara e experimentar outra realidade. A música abre espaço para entrada das inúmeras personas de Edy Star que gritam por passagem em uma realidade marcada pela restrição dos costumes. O fim de Claustofobia remete à O Vira, de Secos e Molhados, tecendo aproximações entre esse filão da música brasileira dos anos 1970. Em outra vertente, mas igualmente inserida no espectro amplo do rock, estão os compositores desta canção, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com carreiras consolidadas no período, após o boom da Jovem Guarda nos anos 1960. A musicalidade presente em Carlos, Erasmo (1971) e Sonhos e Memórias (1972), de Erasmo Carlos, assim como as produções de Roberto no fim dos anos 1960, são marcantes nessa canção.
Arte e sociabilidade nos anos 1970
Sweet Edy também pode ser analisado através da ótica de outras influências sobre o cantor. A maioria das canções foi composta por grandes artistas do período, em pedidos feitos pelo próprio Edy, que recorreu desde suas mais antigas amizades, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, passando por Jorge Mautner, Leno, Renato Piau, Moraes Moreira, entre outros. Trago novamente Claustofobia para exemplificar a visão sobre o artista. Através do olhar de Erasmo e Roberto, temos Edy Star como um sujeito impossível de ser delimitado, sem amarras que prendam sua persona. A fobia de lugares fechados, que traz a sensação das paredes se comprimindo, poderia ser causada pelo clima da época, mas também pelas tentativas costumeiras de colocar as performances de Edy em uma definição, seja pela imprensa ou pelo público que as assistia. E tudo isso era esbravejado através de um grito, estridente e curto, logo após o pedido de “parem de me sufocar / que eu quero tocar bonito / porque senão eu grito”.
O trânsito do multiartista possibilitou que seu disco de estreia (e único de sua carreira musical em mais de 40 anos) tivesse diversas histórias. A participação de amigos, colegas e pessoas próximas na música serviu para realizar uma espécie de bricolagem de sua personalidade. De Salvador, e da época dos encontros na Galeria Bazarte, veio a amizade com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, entre outros nomes da música brasileira que circulavam nesse espaço. A Bazarte, inclusive, era um dos principais pontos de encontro de muitos artistas nos anos 1960, e servia de espaço para circulação musical no período, como aponta Edy: “era lá que íamos com Caetano pra discutir sobre Godard, sobre essas coisas aí”. A amizade entre Edy, Gil e Caetano ficou marcada em Sweet Edy através de duas canções: Edith Cooper e O Conteúdo.
Edith Cooper nasceu do pedido de Edy Star para Gilberto Gil um pouco antes de sua ida para Londres em 1972. A canção aparece pela primeira vez em um show-protesto realizado na Escola Politécnica da USP, em 1973, por conta da repressão militar no período ditatorial, precisamente após a morte de um estudante. Com mais de duas mil pessoas presentes, Gil entoou diversas de suas principais músicas, conversou com o público e dialogou sobre aquele momento. Em um pequeno discurso, ele evoca a figura de Edy ao dizer que iria “cantar um rockinho que fiz pra um amigo meu, uma bicha baiana maravilhosa (…). Um dia ele chegou pra mim e disse assim ‘quero que você faça uma música pra mim, assim parecida com Alice Cooper’. (…) Então, quando eu tava pra embarcar, eu fiz essa musiquinha pra ele” (GIL, 1973).
O “anjo barroco” cantado em Edyth Cooper é marcado pelas bochechas e as asas, traços que remetem a um perfeccionismo angelical. Apesar disso, a personagem faz “representações de coisas proibidas”, como a “cena do balé dos anões”, traço notável nas apresentações de Edy nos cabarés da Lapa do início dos anos 1970. Além disso, traz a figura do barroco, do ateliê, e de instrumentos de pintura, como “gesso, cola, tintas, telões”, dando foco a uma das intervenções artísticas de Edy. Em meio a isso, chama atenção o terceiro verso da canção: em Sweet Edy há “nada mais de anjo barroco”, enquanto na música executada por Gil na Politécnica – assim como na gravação de seu disco Cidade do Salvador, de 1974 – está “nádegas de anjo barroco”.
A relação de Caetano e Edy, vista em O Conteúdo, é diferente daquela com Gil. A canção aparenta caminhar com aquele que a interpreta, passando por inúmeros lugares e se deparando com diversas pessoas, algo próximo da realidade vivida por Edy naquele período, com muitos trânsitos no Rio de Janeiro. Se “a íris do olho de Deus tem muitos arcos”, nos remetendo aos Arcos da Lapa, região de trabalho do cantor, ao mesmo tempo, ressalta uma inevitável fama que ele possui por onde passa. A música lembra que “se fugires, (…) te perderás”, e que, ao criar fama e deitar-se na cama, a figura de Edy estava em evidência e sem a possibilidade de “fugir ao sossego”. A profecia de Caetano se concretizou durante os anos 1970 e 1980. Contratado pela TV Globo, passou por alguns programas, como Globo de Ouro e Fantástico, mas enfrentou dificuldades em ser colocado no ar. A posterior saída da televisão se deu em parte pela censura, como também pela modernização da televisão, pautada no “padrão Globo de qualidade”. Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento apontam para a particularidade da trajetória da Rede Globo nesse período, com um ambicioso plano de se transformar na primeira rede de televisão do país, aliado à infraestrutura tecnológica preparada pelo governo militar (RIBEIRO & SACRAMENTO, 2018). O próprio Edy ressalta: “eu, [Maria] Alcina e Ney [Matogrosso] ficamos um tempo sem fazer programa nenhum. Sem aparecer na Globo e em programa nenhum”.
As faces de Edy Star
A partir dessa nova realidade, procurou se estabelecer nos espetáculos de teatros e nos cabarés de Copacabana, com destaque para a peça The Rocky Horror Show (1975), produzida por Guilherme Araújo. Na sua trajetória, a fuga se deu na mudança à Madri, nos anos 1990, se estabelecendo em cabarés da capital espanhola e vivendo aproximadamente 18 anos longe do Brasil.
Outras músicas, como Olhos de Raposa, de Jorge Mautner, Bem Entendido, de Renato Piau e Sérgio Natureza, e Superestrela, de Leno, dialogam com as visões sobre Edy Star. Getúlio Cortes, em Coração Embalsamado, exige uma interpretação dupla: em um momento, remete aos cantores do rádio e suas vozes carregadas e fortes, traço marcante na memória de Edy. Em outro, uma levada rock, próxima, inclusive, àquela realizada pela Jovem Guarda. Cortês foi um dos grandes compositores desse período, escrevendo músicas para Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléia e Jerry Adriani, trazendo em Coração Embalsamado um diálogo com a musicalidade do grupo e também com a época.
Em meio a tantas visões, coube a do próprio artista sobre si mesmo. Edy assina duas músicas, Briguei com ela e Eu Sou Edy Star, cabendo à última encerrar o álbum. Ambas trazem a forma com que o artista se identifica, e de que maneira ele compreende sua atuação no mundo. Briguei com Ela já alerta no início que “amigo, eu não sei se você vai me entender”, com acompanhamento de instrumentos metálicos que cadenciam e escondem sua faceta, em uma sedução combinada com quem o escuta, independentemente do tempo. Ao colocar que “briguei com ela / briguei com ela / e ela me deixou”, sem remeter ao contexto de Edy, seria apenas uma música de fim de relacionamento amoroso. Entretanto, Edy, enquanto homossexual, e lembrando do alerta no início da canção, justifica tê-la deixado. O contexto do período não permitiria uma canção sobre o amor entre duas pessoas do mesmo sexo, cabendo a Edy brincar com as palavras, trazendo “muita angústia e tristeza” para essa canção.
Eu Sou Edy Star tem apenas 38 segundos, mas mostra a explosão e o choque que a sua figura poderia causar na sociedade do período, sendo essa uma das facetas mais exploradas nos shows. Fugaz, Edy brada “eu sou terrível”, assim como Roberto Carlos, mas também podia ser “danado de gostoso”, “divino” e “maravilhoso”. Edy Star poderia ser tudo aquilo que estava ao seu alcance. Sem amarras, desde suas experiências em Salvador, passando pelo Rio de Janeiro, chocando Madri e voltando ao Brasil, o papel de transgressor dos valores morais está posto e esgarçado. Ostenta até hoje pulseiras cintilantes e barulhentas que dão o tom de qualquer conversa ou apresentação em que ele esteja envolvido. Mesmo com Edy não gostando do disco, e somente voltando a ouvi-lo recentemente, a última frase se torna a epítome daquilo que todos deveriam ouvir: “Eu sou Edy Star”. E, como estrela, brilha na constelação da música brasileira.
Referências
STAR, Edy. Eu vou ser Edy Super Star. [Entrevista concedida a] Jaguar. O Pasquim, Rio de Janeiro, ano VI, n. 256-XCI, p. 6-9, 28/05 a 02/06/1974.
STAR, Edy. A música de Edy Star. 2019.
RIBEIRO, Ana Paula Goulart e SACRAMENTO, Igor. “A renovação estética da TV”. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (org.). História da Televisão no Brasil: do início aos dias de hoje. São Paulo: Contexto, 2018, p.109-136.