A madrinha do samba abre alas para o Cacique de Ramos
Bruna Aparecida Gomes Coelho
Bruna Aparecida Gomes Coelho é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas sobre o mundo do samba na ditadura militar.
O ano era 1978. O Brasil vivia sob um regime militar, que estava desgastado e começava a dar sinais de seu fim. O general Ernesto Geisel enfrentava problemas em seu governo e por isso escolheu um sucessor que pudesse dar continuidade ao processo de abertura política. A missão do novo presidente, eleito indiretamente, começou com a revogação das leis de exceção e a sanção da Lei de Anistia. Muitos exilados começaram a retornar para suas casas, reencontrando aqueles que conseguiram sobreviver à ditadura. Foi também o ano do primeiro desfile de escolas de samba na Avenida da Marquês de Sapucaí. O Brasil chorava a morte de Orlando Silva, o “cantor das multidões”, e de Candeia, importante cantor, sambista e compositor brasileiro. Contudo, a música popular brasileira continuava seguindo seu ritmo e suas transformações.
A censura dos militares começou a diminuir em 1978, favorecendo uma explosão musical, e teve seu fim em 1985 quando José Sarney assumiu a presidência do país. Isso possibilitou que as músicas vetadas pudessem ser gravadas: palavras e frases de duplo sentido foram substituídas por trechos diretos que confrontavam os ditadores. Vários artistas, consagrados ou ingressantes no cenário musical, foram as vozes dessas canções que inundaram a cena cultural do Brasil e Beth Carvalho estava entre eles como uma das representantes do samba (MARTINS, 2015).
A história das escolas de samba faz parte dessa música popular que surgiu nas ruas da capital carioca. Suas comunidades passaram a ser o berço de vários sambistas que entravam para o mercado fonográfico como compositores ou intérpretes. Este quadro mudou a partir de 1968, quando gravadoras começaram a lançar LPs dos sambas de enredo antes do carnaval. Ter uma música nesse disco aumentava as chances de sucesso durante os bailes, blocos e desfiles de carnaval. Até então a escolha do samba de enredo era um processo mais interno nas escolas, porque elas tinham seus próprios grupos de compositores. Esse processo de competição muda ao longo dos anos de 1970, porque compositores que não tinham nenhuma relação com as escolas de samba entram nas disputas com o objetivo de ter um samba gravado. Não é por acaso que sambistas, como Candeia, inauguram a Escola de Samba Quilombo, que era uma espécie de reduto para aqueles que queriam salvar a raiz do carnaval carioca. O portelense de coração, junto com outros importantes personagens desse universo, denunciava a mudança nas escolas, que foram invadidas pelo luxo e personagens externos, tirando das mãos das comunidades a criação e construção dos desfiles (CANDEIA & ARAÚJO, 1978). Na década de 1970 as escolas de samba alcançaram grande destaque no cenário nacional e internacional, passando a ter a presença marcante dos bicheiros como patrocinadores. Há também a mudança no samba, que passa a ser mais acelerado se aproximando da marcha. O panorama que se delineava neste momento era a expulsão do tradicional – incluindo seus compositores – para algo mais majestoso.
As mudanças nas escolas geram um movimento em outros núcleos, dentre eles o bloco carnavalesco Cacique de Ramos fundado na década de 1960, que começaram a dar voz aos sambistas que não tinham mais espaço nas competições dos sambas de enredo. Desde os tempos de Tia Ciata que a palavra pagode era uma forma de caracterizar afetuosamente o samba e, por isso, as rodas de fundo de quintal do bloco eram uma nova forma de se fazer o samba, inserindo ou abandonando instrumentos, mudando a melodia das músicas e não deixando morrer as rodas que o carioca tanto gostava. Muitos sambistas – compositores e cantores – ao frequentar o Cacique fugiram do padrão das escolas de samba e conseguiram construir suas carreiras. Beth Carvalho abriu passagem para muitos deles.
Passado, presente, futuro
Imagine uma pequena cidade, no interior de Minas Gerais, em que o carnaval era um evento de muita brincadeira entre as crianças. Durante os dias de folia havia um momento reservado para a “velha guarda” que cantava apenas sucessos do samba, marchinhas de carnaval e músicas que marcaram sua geração. Por ser uma cidade de interior os pais e avós costumavam ouvir muita moda de viola, nas quais cantores do sertanejo narravam os grandes feitos do caipira em sua vida difícil, mas feliz. Havia outro clima naqueles dias e a rádio municipal sempre tocava sambas que fascinavam os mais jovens, por se diferenciarem do cotidiano sertanejo. Vozes femininas interpretando hinos que estavam na boca do povo, nas ruas e nos blocos, pois todos sabiam cantar aquelas canções. Foi assim o meu primeiro contato com Beth, que marcou a minha infância através de sucessos como Vou festejar e Coisinha do pai. A madrinha do samba era ovacionada em todos os carnavais pelos cantões do Brasil e faz parte da memória de muitos brasileiros.
Nascida na Gamboa, em 1946, Beth Carvalho cresceu na zona sul e começou a trabalhar como professora de violão para complementar a renda familiar após seu pai ter sido perseguido pela ditadura militar. Frequentava a casa de Tom Jobim, com quem compartilhava a preferência pelos vocais, iniciando sua carreira na Bossa Nova. Na Era dos Festivais defendeu o seu primeiro sucesso, “Andança”, que gravou pela Odeon junto com uma de suas raras composições, “Guerra de um poeta”. Participou também do movimento da toada moderna, que era influenciado por ritmos nordestinos. Mas desde o seu primeiro disco a cantora gravou sambas.
Para conseguir se consagrar no mundo do samba a cantora teve de abdicar do contrato com a imponente Odeon e se transferir para a Tapecar – uma pequena gravadora que estava investindo nesse gênero musical. Trocou o violão pelo cavaquinho: porque além de ser um instrumento marginalizado a cantora o considerava feminino (SOUZA, 2016). Um ato nada aleatório, que inspirou outras mulheres a se dedicar ao instrumento. Beth sempre teve esse lado forte de defender as mulheres dentro do samba e tinha Clementina de Jesus como uma importante referência, por isso recebeu a homenagem de Beth no primeiro disco que continha apenas sambas, em 1973, “Canto por um novo dia”. Fez parcerias com importantes nomes, como Nelson Cavaquinho e Cartola, criando parcerias profissionais e laços de amizade. A visibilidade que ela deu a estes compositores contribuiu para a valorização deles na cena musical. Aos poucos Beth foi se tornando uma referência para os sambistas que queriam ter seu espaço na indústria musical. A relação com o Cacique de Ramos também se dá nesses termos.
Beth Carvalho era conhecida por frequentar os locais em que nasciam as canções, por isso sempre ia nas escolas atrás de novas músicas e parcerias. Ela compreendeu quando estes lugares deixaram de ser palco para novos artistas se lançarem. Assim, passou a comparecer nas rodas do Cacique de Ramos e conheceu um grupo intitulado Fundo de Quintal. Desses encontros ela retirou muitas músicas para o seu repertório e gravou Jorge Aragão, Almir Guineto, Sombrinha, Luís Carlos da Vila… As rodas do grupo passaram a ser um nicho de novos sambistas que queriam mostrar seu trabalho para a famosa cantora: quem conseguisse passar pela exigente peneira poderia ter uma chance com a artista.
O disco
O divisor de águas na carreira de Beth Carvalho foi o disco De Pé no Chão. Os membros do Cacique trouxeram inovações musicais, principalmente no que tange a melodia e o ritmo: começaram a tocar o banjo, tantã e um novo repique; enquanto o agogô, tamborim e o reco-reco foram deixados de lado (DINIZ, 2006). Todas essas mudanças feitas pela geração do bloco instauraram a polêmica se o pagode seria um novo gênero musical. Fato é que o pagode feito por membros do Cacique de Ramos nada mais era do que uma forma de se fazer samba. Para Beth, o grupo trouxe de volta “o batuque na mão” para o samba, algo “mais tribal” que tinha sido perdido (SOUZA, 2016). A cantora adotou um novo modelo em seus discos após 1978, que foi seguido por outros intérpretes de sambas. Ganhou também o título de Madrinha do Pagode: agora seus afilhados passariam a vir de um outro núcleo, mas nem por isso eram menos talentosos.
A capa do disco demonstra a relação da cantora com as rodas de samba, com o famoso pagode feito pelo Cacique. Já avisa que o disco tem um tempero diferente. Com um belíssimo vestido amarelo, de estilo ciganinha, ela aparece cantando e dançando rodeada por sambistas e outras pessoas no meio da batucada. A imagem remete a alegria dessa gente esperta, que gosta de um samba que para ser bem dançado só mesmo de pé no chão. O lindo figurino foi reproduzido em 2018 para o show de Beth com o Fundo de Quintal, na cidade do Rio de Janeiro, comemorando os 40 anos de parceria entre a artista e o Cacique de Ramos. Deitada, devido a complicações por uma doença na coluna, Beth interpretou as canções do disco De Pé no Chão, dentre outros sucessos, emocionando todos os presentes.
O disco foi dedicado ao mestre Cartola. Reflete o contexto histórico do mundo do samba na época: Beth se tornou a voz da velha guarda, mas ao mesmo tempo trouxe o novo que surgia em contraste às mudanças das escolas de samba. Contando com alguns importantes instrumentistas, como Dino do violão 7 cordas, este LP contém a forma que o Cacique tinha de fazer música, que caiu no gosto popular e foi bem aceito pela crítica. Isso é notável e indiscutível. Contudo, do outro lado há também os sambistas clássicos que se imortalizaram na memória dos brasileiros.
Lado A: Abrindo caminhos
A primeira faixa do álbum é a famosa canção que abriu passagem para membros do Cacique de Ramos na cena musical. Vou festejar é uma composição de Dida, Neoci e Jorge Aragão. Os dois últimos, com outros músicos, criaram o grupo Fundo de Quintal. Por isso conseguimos distinguir elementos fortes do bloco de carnaval. A música tem uma marca tribal (africana), algo característico do Cacique e que está presente em outras músicas do disco. Começa com aquele cavaquinho, convocando os outros instrumentos para iniciar um pagode, que é reforçado pelas vozes, o barulho de “confusão” e a conversa de rua que são comuns nesses eventos: há uma alegria por trás desses sons que é captado na gravação e transmitida para o ouvinte. Escutando esse samba conseguimos imaginar a cena na capa do disco se desenrolando na rua, com Beth sendo o mestre de cerimônias. Tornou-se um dos principais hinos do carnaval e foi adotada, de maneira espontânea, durante as campanhas pela anistia política, além de ter sido cantada em recepções festivas dos exilados, que começaram a voltar em 1979 (MARTINS, 2015).
Visual, é um partido alto composto por Neném e Pintado, que expressa as mudanças nos desfiles de carnaval. Grupos invadem as escolas de samba nos anos de 1970, transformando sua dinâmica de criação e execução que passa do simples ao luxo, se tornando inacessível para a comunidade que vivia o carnaval o ano inteiro. Parece ser um prenúncio do que aconteceria com a criação da Cidade do Samba, que tirou o sustento de muitos moradores dessas comunidades. É uma música que já nasce importante por ser uma advertência do que estava acontecendo, além de fazer um prognóstico de quem mais perdeu e sofre com tais decisões.
Ô, Isaura de Rubens da Mangueira já começa com o toque de terreiro, tendo a marca da música africana. Misturando o religioso com o profano, a canção trás um pouco da magia da macumba carioca de forma sugestiva e consegue contagiar naturalmente as pessoas.
A canção que tem o pique dos blocos de carnaval é Marcando bobeira, de João Quadrado, Dão e Beto Sem Braço. Este foi autor do sucesso do Cacique de Ramos de 1978, “Cara no Mundo”. A letra remete ao malandro carioca que sempre frequentou os pagodes, mas que passou a “marcar bobeira”, aparentemente para trabalhar, e acabou sumindo.
Não poderia faltar uma canção de Nelson Cavaquinho, amigo e ídolo da cantora. Ele escreveu Meu caminho em parceria com Guilherme de Brito. É um samba ao estilo de Nelson e da velha guarda, formada por outros importantes nomes como Cartola e Candeia. Mais sofisticado, com a presença forte da flauta e do violão 7 cordas. Samba de roda mais clássico, que fica maravilhoso na voz de Beth.
Goiabada cascão é outra música do disco que se tornou um sucesso. Escrita por Wilson Moreira e Nei Lopes, um partido alto que cita muitos nomes importantes dentro do mundo do samba, para indicar que eles eram coisa “rara, boa e difícil de achar” igual goiabada cascão. Tornou-se um jargão chamar alguém por esse título para fazer referência ao talento, mérito e importância do artista.
Lado B: O samba não vai morrer
Você, eu e a orgia foi composta por Candeia e Martinho da Vila especialmente para a voz de Beth. Tem uma poesia que lembra os sambas do Estácio, porém com um gosto de despedida do nobre Candeia.
Monarco assina duas músicas no disco. A primeira é Lenço, parceria com Francisco Santana, que conta o fim de uma história de amor com um toque de cavalheirismo e muita sinceridade.
Membros da Portela marcam presença nesse álbum. Chatim, compositor e ritmista, compôs esse primor que é Passarinho. Segue a melodia presente em Lenço, mas com uma letra inversa por ponderar sobre a liberdade e, talvez, um futuro amor.
Linda borboleta foi escrita por Monarco e Paulo da Portela, no mesmo ritmo de Lenço e Passarinho. As músicas dos portelenses trazem essa toada mais calma do samba. A canção tem a lembrança de rancho, com uma letra mais delicada.
Cartola contribui para o álbum ao oferecer a canção Que sejam bem-vindos para Beth gravar. O ilustre sambista tem o dom de tocar os sentimentos mais profundos de nossa alma. É essa a sensação que temos ao ouvir essa música. O autor diz “não sei se devemos chorar ou rir”, pois parece ter a consciência que irá nos causar ambos os sentimentos com seus versos.
Agoniza mas não morre, de Nelson Sargento, fecha o disco de forma brilhante. É um resumo das mudanças que o universo do samba vivia, mas também da resistência daqueles que mantinham sua tradição. O novo estava chegando, teria seu espaço, mas a realeza ainda sobreviveria. O disco começa alegre ao som de Vou festejar, mas termina com um clamor da velha guarda e uma única certeza: o samba nunca irá morrer.
Acervos consultados
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB)
Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional
Referências
CANDEIA FILHO, Antonio e ARAÚJO, Isnard. Escola de Samba – Árvore que esqueceu a raiz. Rio de Janeiro: Editora Lidador/Secretaria Estadual de Educação e Cultura, 1978.
DINIZ, André. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República Volume II – de 1964 a 1985. 1ª edi. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
SOUZA, Tárik de. Beth Carvalho: pilar do samba de raiz. In: MPBambas – Histórias e Memórias da Canção Brasileira, Volume 1. São Paulo: Editora Kuarup, 2016.