Clara Nunes e seu canto de amor à nação
Silvia Maria Jardim Brügger
Silvia Maria Jardim Brügger é historiadora, mestre e doutora pela Universidade Federal Fluminense, onde também fez seu pós-doutorado, com o projeto “O canto do Brasil ,estiço: Clara Nunes e o popular na cultura brasileira”. É professora associada da Universidade Federal de São João del Rei. Autora do livro Minas Patriarcal: Família e Sociedade (São João del Rei – Séculos XVIII e XIX). Coordena o Programa de Extensão “Memorial Clara Nunes”, responsável pela manutenção do acervo da cantora e desse espaço de memória em Caetanópolis, Minas Gerais.
Ao receber o convite para participar do portal A música de com uma resenha crítica de um dos álbuns de Clara Nunes, a dúvida imediata foi: qual deles? Poderia escolher o LP de 1971, que marcou a virada em sua carreira, com o projeto de aproximação em relação ao universo popular brasileiro, em especial, ao chamado “samba de raiz”. Ou quem sabe o LP Claridade, de 1974, que bateu recorde de vendagem, quebrando o tabu de que cantoras não eram boas vendedoras de discos. Ou ainda, Brasil Mestiço, de 1980, que inspirou o show Clara Mestiça (1981), maior espetáculo da carreira da cantora. No entanto, minha escolha foi outra: o LP Nação, lançado em 1982.
A opção talvez se justifique por um motivo pessoal: a memória de uma menina de 13 anos que, durante o mês de março de 1983, descobriu “a força de uma canção que tem o dom de encantar”, ao ouvir quase todos os dias, pela Rádio Nacional, a voz de Clara a entoar Ijexá, composição de Edil Pacheco. A música acompanhava o clima sensacionalista que marcou a cobertura na mídia dos 28 dias com a cantora até sua partida para o Orum, em dois de abril daquele ano.
Mas à memória afetiva da menina unem-se os argumentos da historiadora que anos mais tarde tomou a vida e a obra da cantora como objeto de pesquisa. Nação não foi apenas o último LP gravado por Clara Nunes. Foi, como ela definiu, um disco “denso, político”, feito num contexto em que se vivia a esperança no processo de redemocratização do país. Explicitar esse sentido político é o caminho que sigo neste texto.
Ijexá, o ritmo dos terreiros na música brasileira
Clara indicou, em matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 23 de setembro de 1982, que o disco poderia chamar-se Brasil, “pois acha que esse é o seu disco ‘mais negro, mais terra’”. Ela associa, portanto, a sua ideia de Brasil a uma identidade negra. De fato, dos 16 LPs gravados entre 1966 e 1982, Nação é o que possui o maior número de faixas ligadas ao universo afro-brasileiro: três tratam de aspectos religiosos (Nação, Ijexá e Afoxé para Logun), duas abordam manifestações culturais negras, como a capoeira e o carnaval/samba (Menino Velho e Serrinha), e uma explicita a filiação cultural do Brasil à África (Mãe-África).
Essas classificações temáticas são limitadas; no mais das vezes os temas se entrelaçam e se abrem a outros aspectos. Mas são também uma chave para pensar sobre as canções. Assim, Ijexá, composição de Edil Pacheco, é uma homenagem aos grupos de afoxé da Bahia, que tocam o ijexá, ritmo das danças de Oxum e de Logun-Edé. Em sua letra, afirma-se a beleza de um povo sofrido, que tem no passado sua fonte de riqueza, o que remete à importância dos ancestrais para a cultura negra. O ritmo da canção coaduna-se com a letra: é um ijexá. Esse é também o ritmo de Afoxé para Logun, de Nei Lopes, que homenageia o orixá de cabeça do compositor. Menino Velho, de acordo com um de seus compositores, Toninho Nascimento (em parceria com Romildo), tematiza a noção de tempo e a relação entre a vida e a morte. O amor, presente na letra, é a própria vida que se pretende prender através do jogo de búzios e da capoeira. E o fim do futuro é se refugiar no pó.
O ritmo da música é uma chula de capoeira misturada com ijexá. Serrinha, de Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro, homenageia a Escola de Samba Império Serrano, fundada no Morro da Serrinha, tradicional comunidade jongueira do Rio de Janeiro, onde Clara costumava frequentar o terreiro de umbanda de Vovó Maria Joana Rezadeira. Mãe-África, de Sivuca e Paulo Cesar Pinheiro, entoa, em ritmo de baião misturado com ijexá, a filiação do Brasil ao continente africano, a quem o país deve pedir a bênção. O baião, ritmo nordestino, se faz presente também na faixa Cinto Cruzado, de Guinga e Paulo Cesar Pinheiro, que denuncia as dificuldades causadas pela seca e pela exploração do patrão ao homem do sertão. A saída apontada é o pedido de proteção a Padim Ciço e de união aos cangaceiros, para mostrar aos coronéis “como se dança o baião”.
O gênero musical aí representa a própria luta social. A referência ao nordeste – uma constante nas gravações de Clara – se apresenta também em Vapor do São Francisco, samba de Romildo e Toninho Nascimento. A força do rio no cotidiano dos moradores da região serve de metáfora aos movimentos da vida, mas também pode ser interpretada como contraponto às agruras da seca do sertão, apresentadas em Cinto Cruzado.
O São Francisco – conhecido como rio da integração nacional, por passar por diversos estados brasileiros, unindo suas culturas -, remete à força das águas doces cuja entidade, no candomblé, é Oxum. Ora, o ritmo desse orixá – o ijexá – é recorrente no LP Nação. Coincidentemente ou não, Clara foi consagrada a Oxum, nas águas do Rio Capiberibe por Pai Edu, em 1972, embora posteriormente tenha se reconhecido como filha de Ogum com Iansã.
Face romântica
Oxum é também a deusa do amor, temática presente em duas faixas do disco: Novo Amor, de Chico Buarque de Holanda, e Amor Perfeito, de Ivor Lancellotti e Paulo Cesar Pinheiro. A primeira é a fala de uma mulher ao novo amor de seu amado, afirmando saber do relacionamento entre eles, “posto que o olhar de uma mulher não engana uma outra mulher”. Ao fim da canção, ela afirma que seu amado voltará um dia para ela. A música carrega uma das marcas de Chico Buarque: a composição no feminino. E a interpretação de Clara, alongando algumas sílabas, reforça sua dramaticidade. Em Amor Perfeito, uma pessoa apaixonada afirma ao ser amado seu sentimento, dizendo que o amor faz brotar nela, versos, prosas, trovas e canções. Sendo o letrista da canção, Paulo Cesar Pinheiro, marido de Clara, pode-se supor tratar-se de uma declaração de amor entre eles.
Aqui aparece um lado de Clara pouco enfatizado na memória e na história da música brasileira: o de intérprete romântica. Se ela não foi como previa o encarte de seu primeiro LP, de 1966, “uma das maiores cantoras românticas do Brasil” – ou, pelo menos, não é dessa forma que ela é comumente lembrada –, a temática amorosa foi quantitativamente a mais representada em seu repertório: 112 faixas de todos os seus LPs a tiveram como tema principal ou secundário, nos mais diversos gêneros musicais. Como me afirmaram muitas pessoas que conviveram com Clara, os afetos não eram meros detalhes em sua vida, eram centrais. Isso talvez explique seu querer cantar o amor. Ou ainda, a recorrência dessa temática pode-se dever à compreensão da importância que ocupa no universo popular brasileiro.
Denso e político
Aqui cabe, porém, destacar que o amor, a capoeira, a escola de samba, as religiões afro-brasileiras, as agruras do nordeste são entoados num LP que se intitula Nação e que, segundo a cantora, poderia se chamar Brasil, um disco “denso, político”. Tem-se aí a complexidade do Brasil de Clara Nunes. Propositalmente, deixei para abordar por último, a primeira faixa do LP, a que lhe dá título: Nação, de João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc. Essa música já foi considerada por um grande intelectual brasileiro como hermética, indecifrável. Já foi vista também, de forma pertinente, como uma releitura de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso.
Em minha interpretação, a chave para compreender o samba é Oxum-maré, divindade Jeje, incorporada pelos iorubás ao seu panteão. É o orixá do arco-íris, da fertilidade, do ciclo da vida, a união entre vida e morte. O verde e o amarelo da bandeira brasileira são as cores desse orixá, que é metade do ano homem e a outra metade mulher. Assim, vejo na nação-Oxumaré, a afirmação da diversidade e da mestiçagem: o arco-íris com suas sete cores e as zonas de intercessão entre elas. A grafia Oxum-maré, na letra da canção, parece remeter também a Oxum (referência importante no LP) e ao movimento, a maré. Vale lembrar que na umbanda Oxumarê é uma qualidade de Oxum.
A letra da canção aproxima a narrativa grega sobre Ícaro e Dédalo do Brasil, ao referir-se às asas presas com mel e dendê. Aborda os trânsitos culturais, com referências a Caramuru e Anhanguera, inserindo os indígenas e os conflitos com eles na nação. Refere-se às riquezas do país (ouro, cobre, esmeralda), mas afirmam-se suas mazelas sociais (“floresta em calda”, “sete quedas em chama”, o sangue escarrado). E exorta-se a nação à luta: “Rebenta a louça Oxum-maré / Dança em teu mar de lama”. A dança – assim como em Cinto Cruzado – aparece a indicar o conflito social. E o mar de lama pode ser interpretado como os problemas sociais de uma nação que busca sair de uma ditadura e que “escarra o sangue”, em consequência das torturas praticadas. Mas a lama remete também à força da criação. Na mitologia dos orixás, foi da lama que Nanã-Burucu – mãe de Oxumarê, deusa das águas lamacentas – criou o homem. Trata-se, portanto, de uma nação com muitas mazelas e conflitos, mas com potencial criativo para superá-los.
Entendo que essa interpretação de Nação é compatível com o momento histórico em que foi gravada. Em 1982, ano do lançamento do LP Nação, foram realizadas as primeiras eleições estaduais diretas para governador, após a ditadura civil-militar. Momento de reconhecimento dos problemas da nação, mas de esperança em sua superação através da afirmação de um regime democrático.
O material gráfico do disco coaduna-se com a mensagem nele entoada. Elifas Andreato, responsável por sua criação, declarou que a foto do encarte interno literalmente lhe apareceu quando viajava pela rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, e viu no céu azul uma nuvem no formato do mapa do Brasil. Parou o carro e pediu ao fotógrafo que o acompanhava, Alexandre Sardá, para fazer o registro. Em relação à capa – um lindo desenho do rosto de Clara com seu cabelo volumoso em tom vermelho e uma arara pousada em seu ombro -, o artista ressaltou a intenção de reforçar o caráter tropical, sendo a ave, para ele, um símbolo de brasilidade.
A cor vermelha predominante no desenho da capa (cabelo e lábios de Clara e na arara) pode remeter ao sangue escarrado na letra da música Nação e/ou ao “mandacaru vermelho como o sol do sertão”, de Cinto Cruzado. Pode ainda ser entendida como uma referência ao amor, entoado em Novo Amor e Amor Perfeito. Na ilustração, o rosto da cantora meio de perfil com um olhar não direcionado ao observador da capa, mas a um vazio que se apresenta à sua frente, um olhar para o futuro. Um olhar altivo e de esperança, novamente condizente com a situação política do país. Assim, parece explícito o caráter político e denso do LP Nação, lançado por Clara Nunes, em 1982.
Não posso finalizar esse texto sem instigar o leitor a pensar sobre a frequência das referências a Oxum neste disco. Permito-me interpretar a associação da deusa do amor e da fecundidade à Nação, como um grito de amor de Clara pelo Brasil, por sua diversidade cultural, pela força de suas tradições populares, por sua religiosidade sincrética. Amor por uma Nação que saía do jugo do regime autoritário e encarava de frente suas mazelas sociais. Deixo aqui o convite para que voltemos a ouvir Nação, no momento histórico que vivemos, 36 anos depois de seu lançamento. Que saibamos “rebentar a louça” e “dançar em nosso mar de lama”, valorizando a história de construção de uma nação livre e plural, que tenha o amor e não o ódio como bandeira.
Referências
BRÜGGER, Silvia M. J. (org.) O Canto Mestiço de Clara Nunes. São João del Rei: UFSJ, 2008.
BRÜGGER, Silvia M. J. “‘O povo é tudo!’: uma análise da carreira e da obra da cantora Clara Nunes”. ArtCultura, vol. 10. Uberlândia, 2008.
CAMBARÁ, Isa. “Clara Nunes acredita nas raízes populares”. Folha de São Paulo, 23/09/1982.
CARVALHO, José Murilo de. “O Brasil de Noel a Gabriel”. In: CALVANCANTE, B.; STARLING, H.; EISENBERG, J. (org.). Decantando a República – Inventário Histórico e Político da Canção Popular Moderna Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
SOARES, Astréia. Outras conversas sobre os jeitos do Brasil: o nacionalismo na música popular. São Paulo: Annablume, 2002.