Uma obra prima, ou O caso do disco em que todas as músicas são excelentes
Jorge Luiz Marques de Moraes
Jorge Luiz Marques de Moraes é doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor efetivo do Colégio Militar do Rio de Janeiro e professor efetivo titular do Colégio Pedro II. É autor de Finas flores: Mulheres letristas na canção brasileira, entre outros estudos.
Na segunda metade da década de 1970, a questão feminina estava definitivamente em voga. Para ficar apenas no contexto nacional, basta lembrar a pujança de iniciativas da grande mídia, que na ocasião levava ao ar programas como TV Mulher, Malu Mulher e Mulher 80. Definitivamente, “mulher” era uma marca consolidada e de considerável aceitação entre o grande público. Além disso, a sociedade brasileira da época avançava nos aspectos relativos aos costumes, como pode comprovar a aprovação da lei do divórcio, em fins de 1977, por exemplo. Não deixa de ser espantoso que esse estado de coisas tenha se dado em plena vigência do estado de exceção (embora, progressivamente, a ditadura estivesse perdendo força, como anunciavam eventos como a Lei da Anistia).
A canção popular brasileira refletiria essa realidade e, não por acaso, em 1979 haveria uma explosão de nomes femininos na MPB. A confluência de cantoras/ compositoras que nesse ano seriam lançadas no mercado fonográfico ou lançariam trabalhos que consolidariam suas carreiras faria com que Tárik de Souza, já na época um crítico musical respeitado, denominasse 1979 como o “Ano Internacional da Mulher na MPB”, em referência direta ao Ano Internacional da Mulher, instituído pela ONU quatro anos antes. Dentro do conjunto das novas artistas que então surgiam, um fator chamava atenção: o fato de várias delas serem autoras das palavras que cantavam. Ora, se a tradição de cantoras na música nacional já tinha uma longa trajetória de prestígio e respeitabilidade, certo é também que poucas tinham sido as mulheres que até então cantavam o que escreviam. As exceções, como Dolores Duran e Maysa, nos anos 50, além de nomes hoje completamente esquecidos, como Bidu Reis e Dora Lopes, apenas servem para confirmar a regra vigente até aquela época.
Portanto, nada mais natural que, em tempos de consolidação das conquistas feministas, surgisse, de forma sistematizada, uma geração de compositoras que marcaria para sempre a história do cancioneiro popular do Brasil, na medida em que extravasariam os desejos e os anseios femininos. Vale a pena lembrar: anos antes, ao travar a famosa guerra musical de amor e mágoas com Herivelto Martins, Dalva de Oliveira tivera de recorrer a homens para que eles elaborassem as canções reveladoras das amarguras do relacionamento terminado. Era uma construção sentimental terceirizada, no final das contas. Ter um número expressivo de compositoras no final dos anos 1970 constituía uma mudança significativa na representatividade da condição feminina, visto que as mulheres agora passavam a falar em primeira pessoa. Elas tinham a voz, a palavra, a canção.
Voz de mulher, palavra de mulher
É nesse contexto que surge a figura de Fátima Guedes. Uma das mais jovens compositoras de sua geração, Fátima já participava de festivais colegiais desde 1973. A gravação de Elis Regina, em 1978, da música Onze Fitas apresentou a compositora ao grande público. Nada mais natural que, na onda das diversas figuras femininas que então surgiam, no ano seguinte ela tivesse seu primeiro LP lançado pela Odeon.
Em seu álbum de estreia, Fátima Guedes revelava-se uma compositora madura e de referências musicais sólidas. Em plena vigência da era da discoteca, não deixava de ser inusitado que uma jovem de voz anasalada quase infantil trouxesse em seu primeiro trabalho um repertório composto, em sua maioria, por boleros e sambas-canções. Talvez sem querer, Fátima Guedes conseguiu tecer o fio que costura a geração anterior às compositoras dos anos 1970. Nesse sentido, em sua obra, as referências das antecessoras Maysa e Dolores Duran convivem de maneira totalmente integrada com os temas caros às mulheres do período pós-revolução sexual. São desejos explicitados e feridos, dores de amor que latejam na carne e que se misturam aos anseios femininos. Não à toa, a imprensa musical da época carimbaria na compositora o epíteto “Chico Buarque de saias”, artifício elaborado por um meio que ainda não conseguia louvar as evidentes qualidades de Fátima sem que usasse como parâmetro uma referência masculina. Se é motivo de consolo, porém, ela não era a única: a cantora Joanna, grande aposta da indústria fonográfica da época, recebeu a alcunha de “Roberto Carlos feminina”, em função das fortes influências românticas que marcavam sua produção.
Ainda que outras compositoras daqueles anos também tenham investido nas reflexões acerca da condição das mulheres – basta lembrar de canções como Feminina, de Joyce, e Cor-de-Rosa Choque, de Rita Lee – , Fátima Guedes conseguiu dar um passo à frente, na medida em que dava voz, em suas composições, às classes desfavorecidas socialmente. Nesse sentido, ela parece antecipar artisticamente elementos que seriam caros às feministas da terceira onda, na medida em que evidencia haver uma pluralidade de condições que interseccionam às mulheres, vistas portanto não como seres unos, mas como singulares em seus desejos e carências, na medida em que são transversalizadas por condições diferenciadas, tais como condição sexual, etnia e classe social.
Se o primeiro LP de Fátima Guedes forjava uma cantora/compositora densa e autora de melodias inusitadas, o segundo álbum da artista, lançado em 1980, é singular por uma simples razão: absolutamente todas as canções são brilhantes. Trata-se da obra-prima da artista e, sem dúvida, um dos trabalhos mais bem elaborados que a canção popular brasileira já viu surgir em toda sua evolução. Em dez músicas, Fátima Guedes transita entre amores interditados, dificuldades vividas pela pobreza, arrependimentos e amarguras do amor. Tudo isso vinha embalado em um projeto gráfico que faria história: em um artifício que apenas era possível de ser estruturado na era dos LPs, o álbum emulava um caderno de menina-moça, com direito a espiral em sua lateral, repleto de ilustrações que remetiam aos adesivos típicos da época, e com as letras das canções escritas em uma caligrafia arredondada. A indústria fonográfica claramente investia em uma embalagem “feminina”, visto que a mulher era produto atraente ao mercado de consumo, conforme já mencionado. Em uma análise semiótica mais detida, porém, pode-se constatar o quanto as gravadoras estereotipavam o produto a ser colocado nas prateleiras das lojas de discos: feminilidade estava diretamente ligada à delicadeza, doçura, singeleza. Entretanto, as letras de Fátima entravam em choque com o invólucro que as acondicionava. Cortantes e desesperançados, versos como “Ele se escorrega de mim saciado” (de Dancing Cassino), “Pensa que eu vou voltar, me humilha” (de Paladar) ou “Mas não amar também me tira a paz e a emoção” (de Tanto que Aprendi de Amor) podem ser interpretados, no final das contas, como uma ironia à embalagem elaborada pela indústria. O resultado é que emerge desse produto paradoxal uma pérola do cancioneiro popular do Brasil.
Em pouco mais de trinta e cinco minutos de álbum, Fátima Guedes entregava ao público uma sucessão de canções que calavam fundo nos ouvintes. Se as canções não chegaram a tocar nas populares rádios AM, tiveram entrada garantida nas nascentes emissoras FM. Nada mais justo que cada música do LP seja analisada de modo detido, ainda que breve.
Lado A
Mais uma Boca
A posição da canção na abertura do álbum não foi à toa. Mais uma Boca concorreu no popular Festival MPB/Shell 80, veiculado pela TV Globo. A música garantiu a Fátima Guedes uma vaga na final, além de ter-lhe premiado como melhor intérprete na segunda fase do festival. Em tom de crônica de costumes, abordava a situação da mulher pobre sob um viés inusitado: uma vizinha ou amiga de uma recém-parturiente procurava pelo pai da criança num boteco da periferia. Ao mesmo tempo, a voz que cantava a narrativa era doce, ingênua, infantil. Uma bela construção antitética, que surpreendia os ouvintes da época.
Aldeia Modelo
A questão social continua presente no trabalho de Fátima, ainda que, agora, narrada sob o ponto de vista masculino. A compositora parecia querer mostrar ao grande público uma versatilidade de gênero, quer dizer, sabia ela também investigar a ótica masculina das situações sociais. Iniciativas como essa, sem dúvida, levaram a crítica musical da época a compará-la com Chico Buarque, que já era consagrado por fazer exatamente o oposto com relação à mundivisão das mulheres.
Traste
Ainda que, aqui, Fátima Guedes não saia do núcleo temático das condições sociais desfavoráveis, não deixa de ser importante ressaltar que sua produção jamais sequer resvala pelo panfletarismo. É o caso dessa Traste, que narra sob o ponto de vista feminino toda a insatisfação, frustração e falta de gozo que a pobreza impele aos indivíduos. A quarta estrofe da canção é exemplar: “Eu deito do seu lado/ E embora ainda fique/ Com o corpo em brasa/ Ele já chega morto/ De corpo em casa/ E guarda a sua alma/ Em algum bolso à toa”.
O Bloco das Mimosas Borboletas
Um dos pontos altos do disco, é adaptação musical de um conto pouquíssimo lido do hoje esquecido escritor Ribeiro Couto. Uma pérola escondida no meio do álbum, a canção não teve grande repercussão na época. A questão feminina aqui é abordada sob outro prisma, visto que as personagens são da classe alta da sociedade carioca. Entretanto, o Carnaval estraçalha paixões e recatos. Resultado: duas das damas que se divertiam, “seguidas bem de perto por suas famílias/ que atentas giravam suas ventarolas”, desaparecem das vistas de todos. O tema aqui presente, o desejo feminino represado pelo status quo, é uma constante dentro do corte geracional de Fátima Guedes, sendo desenvolvido e aprofundado por outras compositoras, como Joyce e Rita Lee.
Paladar
Uma canção que poderia ser de autoria de Dolores Duran, trata de um amor mal-acabado. É música romântica da mais alta qualidade, que mistura dor, paixão, ressentimento, rancor, mágoa. “Pensa que eu vou voltar/ me humilha”, clama o eu-lírico. E o que seria melhor: atirar-se aos braços do amado e satisfazer a saudade que machuca? Manter o amor próprio e desperdiçar uma tentativa de reconciliação que parece tão próxima? É o tema da dor de amor revisitado a partir da representatividade da autoria feminina.
Lado B
Dancing Cassino
O clima de dancing é reafirmado nesta canção pela inclusão incidental da canção de Laura, famoso filme dos anos 50 que tem elementos comuns com o clima imprimido pela letra. Com relação à letra em si, podemos dizer que nele se conjugam dependência financeira e repressão à mulher. Assim, o elemento feminino não vive, mas “cumpre um destino”, a cuja sorte foi lançada quando a paixão do homem trouxe o alívio “de não precisar dormir durante o dia”. Entretanto, a vida pequeno-burguesa oferecida pelo parceiro não satisfaz a mulher que, em troca da caridade, é utilizada como mero objeto sexual, sem que suas necessidades próprias sejam supridas.
Condenados
Talvez mais conhecida pela gravação realizada pela cantora Simone no álbum Pedaços (1979), trata dos amantes que vivem o dilema de efetivar a fusão do par amoroso em um só ser ou manter viva a sua própria individualidade. Se o ouvinte mantiver uma postura idealizada, pode acreditar que, na “fase do amor em que se é um”, não deveriam mais existir metades, mas somente seres que “tiram mais proveito de prazer”. Entretanto, a compositora opta por desmitificar essa utopia. Isso se torna bastante evidente a partir da segunda estrofe, em que é notável o fato de a junção dos seres não ter ocorrido de forma definitiva, como corrobora o verso “Quanto dormimos juntos sonhos separados”. Não é possível também deixar de reforçar o fato de que a canção parece ironizar o amor romântico popularizado nos meios de comunicação de massa, através, por exemplo, de adjetivos como “safados”. A existência do desejo de encontrar a metade original não é garantia da efetivação da completude. O cotidiano, repleto de pequenas mesquinharias, parece constituir um dos grandes entraves para a efetivação da completude dos amantes.
Cheiro de mato
Música de maior sucesso do álbum, ainda hoje eventualmente aparece na programação radiofônica das FMs “para adultos”. Talvez seja a única canção que se coadune com o projeto gráfico singelo e delicado do LP. Aqui a voz anasalada investe claramente nos agudos para cantar uma natureza que se revela como refúgio para o eu-lírico e com o qual ele mantém inconteste identificação, “por ser indócil e livre como eu”. É importante ressaltar também que, no contexto da época, o sonho hippie, embora desmantelado, encontrava-se ainda tão próximo para ser completamente desconsiderado. Cheiro de Mato é o encontro com a natureza possível de acontecer dentro de uma visão de mundo que já não é tão utópica como o idealismo hippie concebia.
Tanto que Aprendi de Amor
Mais uma canção que fala da inconstância do amor, das suas desilusões, das suas armadilhas. Tanto que aprendi de amor mais uma vez investe em um eu-lírico feminino. É uma mulher falando de seus sentimentos, suas inconstâncias, suas inseguranças. Um fator importante a ser destacado é que Fátima Guedes dribla a todo momento qualquer armadilha do sentimentalismo. Sua dicção prefere o sabor amargo ou o azedume das desilusões, sem grandes arroubos apaixonados. Não deixa de ser uma herança do “chorar baixinho” de Dolores Duran.
Dor Medonha
Encerra o disco mais uma pérola da canção brasileira. Dor Medonha trata de fim de relacionamento, das mágoas, das dores, das cicatrizes. A interpretação contida dada pela cantora é coerente com todo o projeto sentimental que marca o álbum.
Insuperável
Ainda que, nos anos futuros, Fátima Guedes tivesse vindo a produzir outros trabalhos de inegável valor artístico (como os excelentes Pra Bom Entendedor…, de 1993, e Muito Intensa, de 1999), a verdade é que ela jamais conseguiu novamente emplacar outro álbum com apenas canções de sua autoria em que o nível tenha atingido padrão tão elevado. Não faz mal. Em 1980, ela assinava o melhor álbum de sua carreira e deixava como legado à Música Popular Brasileira um dos pontos altos de nossa canção.