O aroma dos sertões de Inezita Barroso no CD Viola perfumosa
Haroldo de Resende
Haroldo de Resende é doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP e professor da Universidade Federal de Uberlândia.
A paulistana Inezita Barroso foi a mulher que, com seu trabalho de pesquisa musical, com sua voz de contralto, com seu canto e com sua personalidade, perfumou a viola brasileira com o hálito feminino. Com uma carreira que perfaz um arco temporal que vai de 1950 até 2015, computando 65 anos de uma trajetória marcada pelo afinco à profissão e dedicação às manifestações musicais dos vários sertões brasileiros, Inezita Barroso deixou um imenso legado que deve ser revisitado sempre, como uma forma de lembrarmos quem somos e de onde viemos. Sua obra é um tipo de expressão musical que provoca a lembrança do que faz o povo brasileiro ser o que é, assim como a preservação de sua música significa resistência para continuar sendo o que se é, não se deixando colonizar por modismos e imposições de mercado.
Lui Coimbra, Ceumar e Paulo Freire se unem formando um trio, para juntos renderem uma homenagem a essa mulher precursora da música caipira brasileira como profissão, numa profissão de fé na arte popular. Do imenso repertório de Inezita Barroso, os três elegem onze canções que traçam um panorama bastante significativo do cancioneiro sertanejo, a partir de sua obra. O álbum é todo ponteado pela viola caipira de Paulo Freire que estabelece um delicado e, ao mesmo tempo, sofisticado diálogo com o violoncelo de Lui Coimbra, entabulando a conversa com o violão de Ceumar.
Além desses instrumentos que preponderam no CD, há a participação da percussão criativa de Marcos Suzano e do poderoso contrabaixo de Pedro Aune em algumas faixas, além de Lui Coimbra mostrar sua versatilidade no violão, no charango e na rabeca. O som que se ouve no álbum é limpo, claro, transparente. De certa forma, econômico, sem desperdícios ou exageros ruidosos. O som da madeira é combinado com o das cordas e, especialmente, com o cristal da voz de Ceumar. Não há, por exemplo, os excessos de baterias enfurecidas que marcam uma única cadência ou guitarras roqueiras que gritam no pop “sertanejo” atual, chamado de universitário.
A formação do trio, elegendo basicamente seus instrumentos de origem, demarca a geografia que cartografa as coordenadas que delimitam os sertões por onde Inezita passou e os caminhos seguidos pelos três no encalço dos passos da homenageada no pó da estrada, no barro pisado pelo gado, na roça plantada pelo colono, na fartura da colheita, no breu das noites de assombrações, no clarão da lua, nas folhas de buritis das veredas, nos igarapés das matas amazônicas, nos céus de asas e liberdade, no calor de fogueiras e fogões, na bebida de alambiques, no gosto das comidas, no pau a pique das moradas ou, simplesmente, no modo de vida brejeiro.
O que autentica esse mapa com todas as suas variações e os seus matizes é, sobretudo, a viola de Paulo Freire que coloca tudo nos seus devidos lugares para que Lui Coimbra entre com toda a sofisticação que pode um violoncelo conferir às canções que perfilam esse repertório palmilhado nos caminhos da menina Ignêz para que o espaço seja ocupado por Ceumar. Ela traz também, além da delicadeza majestosa de sua voz, seu violão para harmonizar com seus parceiros nessa estrada e juntos criarem uma linguagem que traduz de forma muito contemporânea esse conjunto de canções. Mais que uma bela homenagem à Inezita Barroso, ele é um convite para redescobrir sua obra, e quem sabe, de modo inverso ao que ela fez; ao invés de recolher o folclore, a música do povo, as manifestações culturais populares, chegar ao povo pela sua música e recolher de seus anseios e desejos o que ainda falta para devolver-lhe a autoria da ação para atuação na sua própria vida, nas suas próprias escolhas.
A voz de Ceumar é o elemento que dá o brilho cristalino às canções, ainda que os outros dois integrantes do trio, Lui Coimbra e Paulo Freire, bastante conhecidos pela virtuose em seus instrumentos, respectivamente violoncelo e viola caipira, também se lancem na interpretação de algumas músicas, não deixando nada a desejar naquilo que as composições pedem para o seu entendimento nesse universo sertanejo.
Nesse particular, deve ser destacada a destreza cabocla com que Paulo Freire desenvolve a faixa Pedro Paulo, dele próprio em parceria com Augusto Borges e João Bá. Trata-se de um típico causo, em que com a desenvoltura de um contador de histórias sertanejas, Freire conta a fabulosa vida de dois irmãos, cujos nomes foram fundidos e confundidos, fazendo dos dois Pedro Paulo, ao mesmo tempo. A faixa que encerra o disco também vem em forma de causo contado por Paulo Freire, tendo como fundo musical instrumental a canção Chitãozinho e Xororó, composta em 1939 por Athos Campos e Serrinha. A prosa, desta feita, de autoria de Renata Grecco, apresenta uma biografia da homenageada, cujo título é Menina Ignêz, e traça, ainda que rapidamente, pelo próprio espaço limitado de uma faixa do CD, a trajetória daquela menina que se torna uma mulher e dedica sua vida, à mercê da vontade paterna, ao mundo da música, seja na pesquisa do folclore, na atuação como atriz, na apresentação de programas televisivos, no toque da viola ou no entoar de modas e cantigas diretamente ligadas aos diferentes sotaques interioranos dos vários sertões brasileiros, fazendo dela uma diva caipira.
Brasil profundo
Todo o CD penetra pelas brenhas de um Brasil profundo e interiorano com suas tradições arraigadas, com sua cultura incrustada na sabedoria popular e na beleza da relação do homem com a natureza de forma ainda quase primitiva, essencial, fundamental, de modo que a cultura não é, necessariamente, associada à civilização urbana, mas às relações humanas na natureza e com a natureza.
Há no repertório, por mais especificamente caipira que seja – e talvez, por isso mesmo –, traços que mostram forte conexão da trajetória de Inezita Barroso com diferentes vertentes, para não dizer estilos, da música brasileira. É possível, por exemplo, perceber uma ligação da ainda tropicalista Gal Costa através da canção Índia, uma guarânia paraguaia composta por José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero e versionada por José Fortuna que Inezita já havia gravado entes e que deu título ao LP, de 1973, da cantora baiana, ainda no rescaldo do movimento da Tropicália. Da mesma forma, Fafá de Belém, que tem seu disco de estreia, gravado em 1977, intitulado Tamba-tajá, homônimo da canção do paraense Waldemar Henrique, composta em 1949 e antes gravada por Inezita Barroso em 1961. A emblemática Moda da pinga é lembrada na composição que a roqueira Rita Lee, conterrânea de Inezita, fez em parceria com Roberto de Carvalho para Ney Matogrosso gravar em 1982. No dueto entre os dois compadres caipiras, encarnados por Rita e Ney num bem humorado “forró-denúncia”, lá pelas tantas, Rita Lee repete o finalzinho da história narrada em Moda da pinga, na qual depois de muitos percalços vividos pela embriaguez na festa, a mulher ainda cambaleante, mas completamente senhora de si, vai embora para casa de braço dado com dois sordado, sendo que o desfecho dessa história fica por conta da imaginação do ouvinte.
Além disso, o repertório se comunica com a música nordestina representada por Luiz Vieira, João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense que reverberam, de maneira indireta, a onipresença de Luiz Gonzaga quando o assunto é sertão nordestino. Pelas veredas de Minas Gerais, é João Chaves, da cidade de Montes Claros que marca presença com a dolente e romântica modinha seresteira Amo-te muito, assim como também Hervê Cordovil passa calangueando pelos cafezais para observar o cotidiano de trabalho, fé e alegria das catadeiras de café nas lavouras mineiras com a composição Oi calango ê. Sem falar na conexão café com leite formada pela dupla Alvarenga e Ranchinho, este do interior de Minas e aquele do de São Paulo, comparecendo com a bem humorada e espirituosa moda Horóscopo, com um conteúdo político implícito na jocosidade e lançada pela dupla em 1937 com o nome de Moda dos meses.
Outra reverberação inconteste no universo de Inezita Barroso e que o trio reverenciando, faz referência, é a do modernista Heitor Villa-Lobos, maestro que transpõe a fronteira entre a música erudita e popular, ao ressaltar uma linguagem musical genuinamente brasileira através da criação de obras que trazem elementos culturais do regionalismo brasileiro, recolhendo canções do folclore e de tradições populares e indígenas. Dessa forma, nas escolhas feitas por Lui Coimbra, Ceumar e Paulo Freire aparece na faixa em que Paulo Freire narra o causo dos irmãos Pedro e Paulo, a citação de Cantiga do Caicó, ária de nº 4 das Bachianas Brasileiras, composta pelo maestro Villa-Lobos, assim como Prelúdio nº 3, também das Bachianas, que introduz a canção Luar do sertão, que abre o CD e que Inezita gravara pela primeira vez em 1959, tendo sido regravada em outros álbuns subsequentes.
Pioneirismo
É de se notar que, além dos nomes da cantora e instrumentista Ceumar, de Renata Grecco, autora do texto-causo que resume a biografia de Inezita Barroso no encerramento do CD, da compositora de Bolinho de fubá, Edvina de Andrade e da própria Inezita, a ficha técnica, propriamente musical, não apresenta nenhum outro nome feminino. Embora a intérprete Inezita Barroso privilegiasse bastante composições femininas. Em 1948, por exemplo, ela lança o álbum Inezita Apresenta (Babi de Oliveira, Juracy Silveira, Zica Bérgami, Leyde Olivé e Edvina de Andrade), inteiramente dedicado a composições de mulheres, cujos nomes poderiam ter se perdido na poeira do tempo, mas que, pelo registro de suas canções por Inezita, ficaram na história com suas músicas em forma de documento autenticado pela pioneira da música caipira.
É certo que Inezita não foi uma militante feminista, não empunhou nenhuma bandeira de defesa da causa da mulher no Brasil, em termos de filiação a alguma entidade ou movimento social, porém é também correto dizer que com sua música e as escolhas que a guiaram, teve um papel político absolutamente importante na afirmação do lugar da mulher na sociedade e de seu papel como intelectual capaz de colher e recolher da tradição das culturas populares um material rico que fala da identidade brasileira, especialmente de manifestações escondidas nos grotões longínquos, distantes da mass media que só as procura como formas pitorescas de vida, sem entender e mostrar que se trata daquilo que nos constitui como cultura, como nação.
A música Moda da pinga, talvez seja emblemática nesse sentido, pois se trata de uma composição cujo tema, além de seu próprio ritmo, foi tradicionalmente atribuído ao universo masculino, mas que Inezita, já em 1955, dela se apropria e a leva para a sua militância musical, fazendo da canção uma de suas marcas registradas. Da mesma forma, Ceumar, ao lado de Lui Coimbra e Paulo Freire assume a canção, reafirmando a força da mestra e realçando sua importância na história da música brasileira na voz de uma mulher, seja ela considerada caipira, sertaneja, regional ou tradicional.
Se música é perfume, como sugere Maria Bethânia, outra cantora cuja obra também reverbera os sertões de Inezita Barroso, o que o CD Viola perfumosa faz é exalar cheiros guardados na memória sertaneja do Brasil, espalhando notas amadeiradas e terrosas, doces e tenras, encorpando notas de coração que formam o aroma essencial da nossa cultura popular e que Inezita Barroso elegeu como o elemento para depurar sua arte filtrando essas manifestações genuinamente fincadas na terra brasilis.
Além do mais, o trio composto por Lui Coimbra, Ceumar e Paulo Freire faz lembrar que a obra de Inezita Barroso, grande guardiã da cultura caipira brasileira, constitui um imenso repositório da música sertaneja. Trata-se de um acervo extremamente fértil, de verdadeiro manancial para alimentar outros projetos musicais com inúmeras possibilidades de abordagens, sejam temáticas, autorais, regionais ou cronológicas, assim como pesquisas de natureza mais acadêmica e/ou teórica.
Por isso, é possível apontar um vazio, uma espécie de lacuna aberta pela edição de Viola perfumosa. Ora, o que falta ao CD é um desdobramento, algo como um Viola perfumosa II, para que o trio possa ampliar essa mostra do repertório da diva caipira Inezita Barroso e mostrar que o perfume da viola da menina Ignêz tem várias fragrâncias colhidas na seiva mais original que o Brasil possui e que alimenta sua alma cabocla. Trazer de volta o perfume guardado na obra de Inezita Barroso é limpar o ar, é despoluir a respiração, é praticamente um serviço de utilidade pública é uma ação de defesa civil, especialmente nesse momento decisivo da vida do país, em que a o povo deve ser ouvido e suas manifestações levadas em conta e a sério para que, de fato, haja uma nação brasileira.
Referências
http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/ver/inezita-barroso < acesso em 14/11/2018 >
http://dicionariompb.com.br/inezita-barroso < acesso em 14/11/2018 >
http://www.inezita.com.br/ < acesso em 14/11/2018 >
https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/ < acesso em 14/11/2018 >