A reinvenção das rotas do Atlântico negro
Carlos Eduardo Amaral de Paiva
Carlos Eduardo Amaral de Paiva é professor de Sociologia no Departamento de Sociologia e Ciência Política do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, na Universidade Federal do Mato Grosso. É pesquisador da área de estudos culturais, relações étnico-raciais, pensamento social brasileiro e sociologia da música. Também é músico instrumentista e supervisor do Cineclube Coxiponés da UFMT.
As décadas 1960 e 70 foram marcadas pela ascensão de uma nova forma de se pensar a relação entre cultura e política. A expressão contracultura buscou captar esse movimento que envolveu uma política do corpo, transformações comportamentais e reinvenções das formas de enfrentamento do poder no cotidiano. Os movimentos hippie, black power e flower power são expoentes desse momento, assinalando novas coordenadas de ação na juventude do período.
Em sintonia com esse movimento, Gilberto Gil sintetizou o sentimento de sua geração no álbum Refavela, gravado em 1977. Trata-se do segundo LP da trilogia RE (Refazenda, Refavela e Realce) em que o compositor apresenta uma nova perspectiva sobre a negritude nos grandes centros metropolitanos do Brasil. Se no disco anterior, Refazenda, o cantor apresentava sua origem rural e nordestina, em Refavela, o compositor ressalta sua descendência africana e se aproxima da luta por reconhecimento negro. “Não mais o Jeca, mas o Zeca total”, diria Gil em seu manifesto Refavela, fazendo referência à canção Jeca Total do antigo álbum Refazenda.
O disco explora uma multiplicidade de gêneros musicais africanos e afrodiaspóricos que representam a experiência negra nos grandes centros metropolitanos das Américas e África: o afoxé, o samba, o baião, o funk, a soul music, o afrobeat, a juju music e o reggae se sobrepõem dando forma às experiências musicais negras e híbridas.
O álbum traduz as formações culturais daquilo que o crítico Paul Gilroy (2001) denominou como o Atlântico negro. Uma comunidade imaginada formada pela diáspora africana que encontra na música uma forte expressão simbólica e comunicativa. Trata-se de uma verdadeira contracultura negra formada não apenas pelo repertório artístico e cultural, mas principalmente por um discurso filosófico contestador da modernidade eurocêntrica. Uma forma de compreender o desenvolvimento da modernidade do ponto de vista daqueles que não foram incorporados pela historiografia nacionalista, trazendo para a esfera pública um debate sobre as formas de expressão do corpo negro, bem como o processo de discriminação e exclusão a que foram submetidos.
A ``Refavela`` revela
A ideia do álbum surgiu em sua viagem à Lagos, Nigéria. Gil, junto com uma delegação de artistas brasileiros, participou do II Festac (Festival Mundial de Artes e Culturas Negras Africanas). Foi essa experiência de encontro com a África que inspirou grande parte do disco. A música de abertura, que também dá nome ao disco, foi inspirada na vila de artistas onde a delegação se hospedou, muito semelhante aos blocos de BNH, o que inspirou o neologismo do título da canção.
Refavela é uma canção manifesto que congrega a intensão musical do álbum. Nas palavras de Gilberto Gil: é um “baiãozinho” que discorre sobre a nova condição do negro no contexto de urbanização (GIL, 2018). Assim, os versos: “A refavela revela o salto/ que o preto pobre tenta dar/ quando se arranca/ do seu barraco/ prum bloco do BNH” expressam a tentativa de ascensão social e luta por reconhecimento do negro no contexto urbano.
O compositor retrata o surgimento de uma nova geração negra e suas práticas culturais nos seguintes versos: “A Refavela revela o salto de samba paradoxal/ Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional/ A Refavela revela o passo com que caminha a geração/ do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão”. A homenagem ao movimento Black Rio apresenta o movimento entre o dado local e o internacional. É o sotaque “brasileirinho” que se impregna nos gêneros afrodiaspóricos norte americanos, quais sejam, a soul music e o funk.
Na canção Ilê Ayê, o mundo negro é apresentado por meio das expressões de valorização vinculadas ao movimento Black’s Beautiful e Black Power. A canção, composta por Paulinho Camafeu, faz uma homenagem ao Ilê, autodenominado como primeiro bloco afro do Brasil, e que teve sua estreia no Carnaval da Bahia em 1975.
Há, na interpretação de Gil, um interessante jogo de palavras, quando, no refrão, o cantor vocaliza a expressão “Black Pau”, sintetizando a dialética local/ internacional presente na obra. “Pau” torna-se uma corruptela de “Power”. A expressão antropofágica traz um empoderamento da comunidade negra baiana, colocando aquela juventude na rota internacional das lutas afrodiaspóricas.
As rotas do Atlântico negro
Outras duas canções traçam o diálogo intercultural das rotas do Atlântico negro: Balafon e Abapala. Em Balafon, Gil nos apresenta o instrumento nigeriano que dá nome à canção. Acompanhada por um balafon, a música traça uma narrativa de justaposição musical entre África e América Latina pela rota sul atlântica. A canção se assemelha à Juju Music, gênero difundido nas regiões urbanas da Nigéria que mescla arranjos de guitarras com ritmos das religiões de matriz ioruba. Além disso, os compassos polirrítmicos reforçam essa aproximação da musicalidade africana com os gêneros musicais latino-americanos.
Em Babá Alapalá o compositor se filia ao afrocentrismo invocando certa ancestralidade. A canção apresenta um retorno geracional até chegar a Aganju Xângo, orixá e pai e fundador de uma linhagem mitológica ancestral nagô. Como relata o autor, Aganju era o orixá do terreiro da ilha de Itaparica, primeiro candomblé visitado por Gil, e que despertou seu interesse sobre a relação entre a religião afro e a Bahia (Rennó, 2003).
A rota atlântica ganha forma estética em Balafon e Babá Alapalá expressando uma memória musical para além das fronteiras nacionais. Porém, este transbordamento dos limites da representação nacional na prática musical não significa necessariamente a filiação à ideia de raízes étnicas africanas. Gil reelabora a ideia de negritude e de africanidade. Não se trata de um discurso essencialista, mas de uma invenção da tradição ancorada em sua experiência de contato com uma África contemporânea, como afirmaria em sua entrevista ao Jornegro:
Eu queria mesmo que ficasse uma coisa assim. Uma intenção, um sonho, uma necessidade de tornar minha música cada vez mais tribal, comunizante, negra, no sentido de incorporar elementos desse modo alegre e típico das expressões africanas de artes (… ) Eu não sou só negro, não sou africano. Fora da África toda a negritude é coisa conseguida com muito esforço, empenho. Não há mais o ser negro naturalmente, sem pensar nisso. Quer dizer, o problema da negritude fora da África é um problema de cuca. E através da cuca já fica muito complicado; é através do empenho, pelo econômico, político e social. Não é como se dissesse: de agora em diante sou preto e acabou. É difícil porque a sociedade não é preta, tá entendendo? (GILBERTO GIL, 1979).
Gil sabe que as tradições são inventadas. O compositor não tem uma relação de reverência passiva com o passado, ao contrário, sua relação com a tradição é de conquista, esforço e reelaboração. O prefixo “Re”, mote da trilogia, traz uma perspectiva de retorno e revisão. Como afirma Gil (2018), é uma marcha ré, mas no sentido de busca das origens que aponta para uma retomada. Trata-se de pensar a tradição como uma “figura da modernidade”, onde o ideal comunitário, o artesanal, a memória e outros signos caracterizados como tradicionais orientam uma tentativa de modernidade mais inclusiva e tolerante.
Por outro lado, Refazenda também traz um elogio às potencialidades do desenvolvimento tecnológico. Afinal, é pela modernização da técnica comunicativa que as vozes dos povos periféricos são potencializadas, fazendo emergir o que o autor chama de “música pós-folclórica”. Uma experiência musical terceiro-mundista surgida do processo de expansão industrial nas sociedades periféricas, e que, por carregar formas de resistência à opressão, pode denunciar o lado opressivo da modernização.
``Samba do avião`` e adeus ao samba exaltação
Por fim, é importante destacar a releitura funk de Samba do Avião. Numa primeira audição a versão funkeada de um clássico da bossa nova causa certo estranhamento. A letra remete ao mundo da classe média alta carioca, porém, os arranjos rítmicos e harmônicos funkeados parecem se dissociar dessa imagem. O efeito não é de mera incompatibilidade entre letra e arranjos, o compositor cria um ambiente sonoro pop e negro internacional para inserir a sua versão do samba.
Há, sem dúvida, uma postura iconoclasta na releitura, porém, há também um movimento de reiteração da vocação internacionalista das práticas musicais brasileiras, bem como um realce do caráter negro da bossa nova. A interpretação de Gilberto retira certo sentido provinciano da bossa, resgatando suas potencialidades internacionais e sua filiação negra. Samba do Avião é um samba exaltação, assim, a regravação funkeada pode ser ouvida como uma despedida. Representa o fim da era da bossa nova e das construções consagradas de brasilidade.
Nesta leitura, a canção retrata outra importante intuição que perpassa o álbum, qual seja, o surgimento de uma nova forma de representação do negro brasileiro. Como sabemos, as narrativas sobre nossa formação nacional foram construídas a partir da ideia de miscigenação racial. Durante o regime militar esta representação mestiça de país foi incrementada pela ideologia da democracia racial, na tentativa de construção de uma imagem harmônica das relações raciais. Ao destacar a negritude brasileira e internacional, Gil traz uma nova forma de reconhecimento da contribuição das práticas culturais negras em nossa formação cultural.
Trazendo a experiência musical negra norte-americana para o cerne da música nacional, Gil afrontava esta ideologia integracionista. Além disso, o compositor ressoava a voz de uma juventude negra que buscou, em um primeiro momento, expressar a luta por reconhecimento étnico racial pela via cultural.
Refavela estava em sintonia com as orientações dos movimentos negros que viriam a se unificar em torno do MNU (Movimento Negro Unificado) em 1978, ressoando uma perspectiva não assimilacionista da negritude e uma politização da cultura negra em torno da luta por reconhecimento. Gilberto Gil deu forma estética musical às reivindicações políticas afro-brasileiras inspiradas tanto na luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, quanto nas lutas pela libertação das colônias na África.
Ao traçar o itinerário de sua formação musical negra, Gil reconstruiu uma rota da própria música afro-americana. Um caminho que muito embora tenha sido traçado pela expansão colonial e pelo tráfico humano, criou e integrou expressões culturais vigorosas que sobreviveram às tentativas de dominação colonial.
As temporalidades sonoras das três Américas e África subsaariana constroem redes sonoras entre Lagos, Bronx, Kingston, Salvador e Rio de Janeiro, apontando para mundialização da paisagem Refavela. Num momento de intensificação dos fluxos internacionais e tentativa de homogenização via indústria cultural, Gilberto Gil retomou uma rota encoberta pela hegemonia europeia branca, a rota do Atlântico Negro.
Referências
Canal Brasil. GILBERTO Gil e a Trilogia RE (Realce, Refavela e Refazenda). O som do Vinil com Charles Gavin. Youtube, 20 jun. 2018.
GILBERTO GIL é funk. Jornegro, São Paulo: 1979.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001.
HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
RENNÓ, Calos. Gilberto Gil: Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Como citar este texto
PAIVA, Carlos Eduardo Amaral de. A reinvenção das rotas do Atlântico negro. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 2, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/refavela-1977-gilberto-gil/. Acesso em: 20th novembro 2024.