Independência ou morte: Um exemplo de produção musical independente no Brasil dos anos 1980
Icaro Bittencourt
Icaro Bittencourt é doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná, com graduação em História pela UFSM e mestrado em História pela UFRGS. É professor no IFC – Campus São Francisco do Sul. Atualmente é membro dos grupos de pesquisa Arte, Memória e Narrativa (UFPR) e Música, Cultura e Sociedade (Unespar), desenvolvendo pesquisa sobre a produção musical independente do cantor e compositor Chico Mário.
Em 1982, uma nova cena musical começava a ganhar visibilidade no Brasil: foi o ano do lançamento do primeiro álbum da Blitz e, de alguma forma, o início de um processo de visibilidade de diversos artistas que gravitavam, no Rio de Janeiro, entre as ondas da rádio Fluminense FM e os palcos do Circo Voador (ALEXANDRE, 2012, p. 99-105).
Naquele início de década, as principais gravadoras que atuavam no Brasil estavam atrás de novos artistas que garantissem sucesso comercial rápido e tirassem a indústria fonográfica do marasmo que a acometeu desde o declínio das vendas da fase discoteca e da crise do petróleo. Era um momento complicado, no qual a aposta em projetos artísticos que gerassem desconfiança dos empresários do disco se tornava quase sempre inviável e descartada precocemente (BARCINSKI, 2015, p. 158-159).
Desafiando esse contexto adverso, muitos artistas começaram a produzir seus próprios discos, evitando entrar na competição acirrada que marcaria a cena do pop e do rock brasileiro e que muitas vezes exigia uma adaptação de suas criações artísticas aos moldes da música comercial. Para isso, desenvolveram estratégias de financiamento e visibilidade de seus trabalhos que ajudaram a conformar um circuito de produção musical independente, em que pese a diversidade de propostas estéticas dos músicos que se auto-intitulavam “independentes” ou “alternativos” (VAZ, 1988, p. 7-16).
Uma dessas estratégias produziu um lançamento especial naquele mesmo ano de 1982: o elepê MPB Independente, produzido e distribuído pelo Pasquim com uma revista e um pôster encartados e que apresentava repertório com uma interessante amostra da produção musical independente brasileira.
O repertório do disco
Com produção e direção artística do cantor e compositor Belchior, o repertório do disco incluiu diversos artistas da produção musical independente daquele momento, concentrando-se, no entanto, apenas em discos lançados no Rio de Janeiro e em São Paulo. Naquela época, o compositor cearense estava se aventurando como produtor musical de artistas independentes: foi também responsável pelo álbum de estreia de Aguilar e a Banda Performática, grupo que foi incluído no elepê ora analisado (MEDEIROS, 2017, p. 126).
Além deles, aparecem na obra outros músicos da cena ligada ao Lira Paulistana; o já experiente em discos independentes Antonio Adolfo; figuras consagradas que tentavam novo fôlego através da produção alternativa, como Paulinho Boca de Cantor e Arnaldo Baptista (respectivamente ex-integrantes dos Novos Baianos e dos Mutantes); além da inserção de quatro temas que fizeram parte dos Discos de Bolso lançados pelo Pasquim em 1972. A coletânea trazia nos lados A e B faixas já lançadas em discos independentes, com exceção da música Garotos da Rua, de Sérgio Mello, faixa inédita do repertório.
Pelo menos mais uma faixa estava prevista para o repertório: uma composição de Arrigo Barnabé. No entanto, a execução de Orgasmo Total foi vetada pela censura federal, que continuava atacando durante a propalada “abertura”, e a música deixou de constar no elepê (Correio Braziliense, 06 jan. 1983, p. 28).
A seguir, listo todas as doze composições do disco, comentando rapidamente cada uma delas.
Lado A
Feito em Casa (Antonio Adolfo)
Faixa-título do disco considerado por muitos como o pioneiro da produção independente no Brasil, lançado em 1977 pelo selo do próprio artista, Artezanal. Não é à toa, portanto, que conste como a primeira música do elepê, reforçando uma certa autoridade do músico na trajetória da produção independente do País.
Monsieur Duchamp (Aguilar e Banda Performática)
Composição de Paulo Miklos e José Roberto Aguilar, o artista plástico e agitador cultural fundador da trupe que contava ainda com a participação de outro futuro membro dos Titãs, Arnaldo Antunes. Uma música ousada (na forma e no conteúdo) sobre uma suposta “visita” de Marcel Duchamp ao Rio de Janeiro.
Nego Dito (Itamar Assumpção)
Expoente dos músicos que circulavam na Lira Paulistana, Itamar Assumpção havia lançado em 1980 seu disco de estreia pelo selo do Lira, produzido por Wilson Souto Júnior. Beleléu Leléu Eu, com a banda Isca de Polícia, trazia como faixa de encerramento a ousada “apresentação” de Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo “Nego Dito”.
Garotos da Rua (Sergio Mello e o Parasol)
Também produzida por Belchior (que participa dos vocais), essa é a única faixa inédita do disco. A composição de Sergio Mello e Caramez, no entanto, não teve uma repercussão positiva para alguns críticos, que chegaram a considerá-la um “equívoco total” (MORAES, 1983, p. 29). A despeito disso, o título da música influenciou outros artistas, dando nome inclusive a uma banda de rock gaúcha, fundada em 1983 e comandada pelo músico Bebeco Garcia.
Águas de Março (Tom Jobim)
O primeiro registro fonográfico do sucesso internacional de Tom Jobim foi feito com produção de Sergio Ricardo para o primeiro exemplar dos Discos de Bolso, lançado pelo Pasquim em 1972. Depois do sucesso da versão da música em dueto com Elis Regina (no álbum Elis & Tom, 1974), a canção na sua forma original é incorporada no elepê como um registro histórico de relevância nas iniciativas discográficas do Pasquim.
Agnus Sei (João Bosco)
A dupla João Bosco e Aldir Blanc estreou em disco também sob a produção de Sergio Ricardo para o Disco de Bolso, como o lado B de Águas de Março. Dez anos depois, a gravação inicial voltou também como marco histórico da produção musical pasquiniana, dando destaque à importância do jornal em reconhecer talentos na música popular brasileira.
Lado B
Hoje de Manhã Eu Acordei com o Sol (Arnaldo Baptista)
Faixa do primeiro disco independente do ex-Mutante Arnaldo Baptista, Singin’ Alone (1982), lançado pelo selo Baratos Afins. Na música, um retrato sombrio de questionamentos existenciais, expressão de desilusões que imprimiram caráter autobiográfico em diversas músicas do citado disco do artista.
Sonora Garoa (Eliete Negreiros)
Composição de Passoca em interpretação impecável de Eliete Negreiros. A música é do repertório do primeiro disco da artista, Outros Sons (1982), lançado pelo Lira Paulistana e produzido por Arrigo Barnabé.
Longos Prazeres de Amor (Tetê Espíndola)
Com seu timbre especial, nesta canção (composta por Celito Espíndola) Tetê apresentou toda a versatilidade de sua interpretação vocal. A faixa fez parte do seu primeiro disco independente, Pássaros na Garganta (1982) lançado por outro selo alternativo, o Som da Gente.
Rock Mary (Paulinho Boca de Cantor)
Composição de Antonio Luiz da Silva Martins, a faixa fez parte do disco independente de Paulinho Boca de Cantor, Valeu (1981), produzido por Júlio de Queiroz Neto. A faixa também não foi muito bem vista pelo crítico Menezes de Moraes (1983, p. 29), o que talvez indique certa resistência a um repertório mais “rock” associado à sigla MPB.
A volta da Asa Branca (Caetano Veloso)
O trecho de uma gravação ao vivo de Caetano interpretando composição de Luiz Gonzaga e Zé Dantas foi o primeiro registro fonográfico do artista após seu retorno do exílio. Saiu no Lado A da segunda edição do Disco de Bolso.
Mucuripe (Fagner)
A parceria entre Belchior e Fagner saiu no lado B do Disco de Bolso ao lado de Caetano. A reprise do fonograma no MPB Independente também poderia indicar que, do circuito alternativo, poderiam sair artistas com grande potencial artístico e comercial.
Uma obra multifacetada e seus discursos
O lançamento do elepê foi reforçado por outros materiais encartados ao disco: uma revista (editada por Haroldo Zager, Jaguar e Ricky Goodwin) e um pôster. Em anúncio do próprio Pasquim (na edição semanal entre 30/12/1982 e 05/01/1983), o caráter multifacetado do lançamento era destacado de forma bem humorada.
A tiragem da obra foi de trinta mil exemplares e um show no Teatro Carlos Gomes foi realizado para o lançamento do disco e da revista. No evento, segundo reportagem do Pasquim (23 a 29 dez. 1982, p. 29), apresentaram-se Sergio Ricardo, Antonio Adolfo, João Bosco, Aldir Blanc, Eliete Negreiros, Passoca, Fagner e Sergio Mello.
No pôster encartado na edição, o cartunista Mariano fez uma releitura do quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo. No centro do desenho, D. Pedro I é substituído por Antônio Adolfo e, montados em outros cavalos, aparecem os demais artistas do repertório do disco.
É interessante notar, nesse caso, como o discurso veiculado pela imagem atribui protagonismo ao músico que mais divulgou seu trabalho e batalhou pela identificação da produção independente no final dos anos de 1970, apesar do pioneirismo da iniciativa ser atribuído e/ou disputado por outros artistas. Músicos como Lula Côrtes, Zé Ramalho, Ana Mazzotti, Tim Maia e Noel Devos (para ficarmos apenas na década de 1970), por exemplo, lançaram discos independentes antes do Feito em casa (1977), de Adolfo.
Sendo assim, o lançamento de MPB Independente de alguma maneira confirmava a maioria das narrativas que circulavam na imprensa da época que atribuíam o pioneirismo daquele momento específico dos independentes (entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980) ao músico Antonio Adolfo.
No entanto, nessa narrativa a respeito dos marcos cronológicos dos independentes, a obra inseria mais uma referência: o lançamento pelo próprio Pasquim dos Discos de Bolso, iniciativa promovida em 1972 sob a produção de Sérgio Ricardo e Eduardo Athayde. Os compactos traziam, de um lado, um artista já consagrado e, de outro, artistas no começo da carreira.
A inscrição do pioneirismo do Pasquim nesse lançamento aparece pelo menos de duas maneiras muito incisivas na obra: uma delas no próprio suporte fonográfico, posto que o disco inclui as quatro músicas anteriormente lançadas nos Discos de Bolso e outra na revista encartada, que inclui um editorial, um texto de Sérgio Cabral e uma reportagem/entrevista com Sérgio Ricardo e Eduardo Athayde, todos mencionando a importância daquele exemplo pregresso de lançamentos fora das grandes gravadoras.
Além dos textos mencionados, há uma diversidade de materiais que constam na revista: um guia prático da produção independente assinado por Antonio Adolfo (que seria reproduzido posteriormente na obra Como fazer um disco independente, de Chico Mário, em 1986); desenhos de Mariano ilustrando as etapas necessárias para o sucesso da auto produção discográfica (que também foram utilizadas no livro de Chico Mário); quadrinhos de Reinaldo sobre a massificação da sonoridade da música pop no Brasil (fazendo menção específica ao arranjador e produtor Lincoln Olivetti); entrevista com Tom Jobim; uma fotonovela com atuação de Jaguar, Ricky Goodwin e Neusinha Brizola e um catálogo com centenas de lançamentos independentes pelo Brasil afora.
Além de tudo isso, a revista traz os perfis de todos os artistas do repertório do disco e as letras das canções, constituindo um importante material de divulgação para os músicos. Por estarem no circuito de produção alternativa, encontravam diversas dificuldades para custear, além da produção do próprio disco, os esquemas complicados de divulgação e distribuição das obras.
Na contracapa da publicação, no entanto, uma surpresa: um anúncio da empresa Shell, com o slogan “Estimular a cultura é também papel de uma grande empresa”. Dada a dificuldade de financiamento de seus trabalhos artísticos, é curioso notar que uma empresa do porte da Shell tenha patrocinado a iniciativa.
Apesar disso, a distribuição do elepê não teria sido satisfatória, pois circulou para venda apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, talvez repetindo os mesmos problemas que aconteceram com os Discos de Bolso. Sem uma distribuição ampliada, a visibilidade e continuidade desses projetos foi ameaçada e interrompida em uma (MPB Independente) ou duas edições (Discos de Bolso). De qualquer forma, o material é uma raridade e referência incontornável sobre a produção musical independente no país.
Referências
ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 1980. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2012.
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos – 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. São Paulo: Três Estrelas, 2015.
MÁRIO, Chico. Como fazer um disco independente. Petrópolis (RJ): Vozes/IBASE, 1986.
MEDEIROS, Jotabê. Belchior – Apenas um rapaz latino-americano. São Paulo: Todavia, 2017.
MORAES, Menezes de. Poética da Radicalidade: os independentes se encontram. Correio Braziliense, n. 7302, 26 fev. 1983, p. 20.
MPB Independente começa a deslanchar! Pasquim, n. 704, 22 a 29 dez. 1982, p. 29.
O disco do Pasquim e o que vai pelo país. Correio Braziliense, n. 7253, 06 jan. 1983, p. 28.
VAZ, Gil Nuno. História da Música Independente. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Como citar este texto
BITTENCOURT, Icaro. Independência ou morte: Um exemplo de produção musical independente no Brasil dos anos 1980. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 2, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/mpb-independente-1982-varios-artistas/. Acesso em: 20th novembro 2024.