Do fio da canção
Luiz Henrique Assis Garcia
Luiz Henrique Assis Garcia é graduado, mestre e doutor (2007) em História pela FAFICH/ UFMG. É professor do curso de Museologia e do PPG em Ciência da Informação da ECI/UFMG. É um dos coordenadores do grupo de pesquisa ESTOPIM e membro da seção latino-americana da IASPM. Edita o blog Massa Crítica Música Popular. É também compositor e escreve letras de canções, algumas já gravadas por seus parceiros.
1970, Ditadura Militar, AI-5 vigente, chumbo grosso, luta armada, ano do Tri, Pra frente, Brasil. “Só morrer é seguro”, canta Milton Nascimento a letra de Márcio Borges para música de seu irmão Lô em Alunar, penúltima faixa do LP Milton (EMI-Odeon, 1970). Eis um disco talhado para o combate, sob o signo do enfrentamento, embora guarde seus momentos de delicadeza. Começando pela arte da capa dupla. Ao desdobrarmos o álbum revela-se o vulto, Milton Nascimento transfigurado na efígie de um guerreiro africano pelo desenho de Kélio Rodrigues. Imagem esta reproduzida em série na parte interna, sem os detalhes coloridos da vestimenta que se destacam na capa. Isso recorda que, embora figure no título apenas o primeiro nome de seu grande protagonista, é, como sempre será quando falarmos em Clube da Esquina, um trabalho coletivo.
Neste long play, propriamente, estão as participações de Dori Caymmi (orquestrando Alunar), Lô Borges (entre outras coisas fazendo trinca com seu irmão Márcio e o próprio Milton na basilar Clube da Esquina) e Naná Vasconcelos mais uma vez nas “bagunças” e “poliritmias”. E é, sobretudo, o disco com o Som Imaginário, banda então formada por Wagner Tiso, Zé Rodrix, Tavito, Fredera, Luiz Alves e Robertinho Silva. Um timaço que a História da música popular brasileira haveria de consagrar, já mostrando a que vinha ao propor mesclas musicais que iam do interior de Minas aos clubes noturnos da Swinging London, de apitos de caça a solos eletrificados de guitarra.
Vale lembrar que Milton Nascimento era, àquela altura do campeonato, o laureado cantor e compositor de Travessia (1967) e já tinha gravado três LPs, sendo um deles Courage (1968), tornando-se com este “o primeiro compositor de sua geração a gravar nos Estados Unidos e ser lançado para um público estrangeiro” (AMARAL, 2018, p.198). Mas era também, como irei mostrar melhor adiante, um artista em movimento, junto com colaboradores à sua altura, procurando responder aos desafios impostos aos criadores mais ousados num contexto turbulento.
Em 1970, passadas a “implosão” tropicalista e o grosso das querelas sobre a guitarra na música brasileira, “já deixara de ser problemático o uso de instrumentos eletrificados e mesmo o repertório iê-iê-iê. Até Elis Regina, ferrenha defensora do nacionalismo na MPB, se rendeu às inovações roqueiras com medo de ‘cansar o público’” (GARCIA, 2007, p.190). Sob a sombra do AI-5, Gil, Caetano e Chico, entre outros, exilados, procuravam adaptar-se, inclusive à indústria fonográfica de seus respectivos pousos.
Os principais compositores da geração que emergiu na “Era dos Festivais”, desde sua formação tiveram que lidar com “os dilemas da criação envolvidos nos trânsitos culturais e encontraram, a partir daí, diferentes modos de hibridação destes elementos (…)” (GARCIA, 2017, p.13).
Sou do mundo, sou Minas Gerais
O disco de 1970, desse modo, representa um marco muito importante no gesto de abertura e incorporação cada vez mais largo que traça “um caminho sonoro totalmente próprio” que caracteriza a obra do Clube da Esquina (VILELA, 2010, p.21), ainda que eu não considere que se trate de uma ruptura. Pesquisando a repercussão do lançamento do disco, encontrei uma resenha bastante reveladora, publicada em 25/03/70 na revista Veja: “Milton Nascimento, o sereno criador de ‘Travessia’, parte agressivamente no L.P. em diversas direções musicais com férteis e agradáveis resultados (…)” (GARCIA, 2000, p.124). As resenhas, às vezes, revelam muito também pelo que desconhecem. Com maior atenção ao repertório dos discos antecessores, para além de uma superficial apreciação da “sonoridade em geral”, nota-se uma série de canções que evocam a morte e a mudança, os conflitos sociais e políticos, o desenho de um cenário conflituoso e mesmo a alusão ao embate violento. A crítica, no contexto dos festivais da canção da segunda metade da década de 1960 esperava que, do mesmo modo que a Bossa Nova modernizara o samba, o cordato mineiro Milton fosse modernizar gêneros regionais como a toada (GARCIA, 2000, p.64-66). Ledo engano.
É preciso compreender que o disco de 1970 não existe no vácuo, em sim na História. Depois do lançamento, sob a perspectiva da crítica especializada, Milton “de repente” transformara-se e mostrava “voz agressiva” e “roupas berrantes” no show com seu repertório Milton Nascimento ah…e o Som Imaginário, sucesso de público por 8 meses e contabilizando 5000 cópias vendidas do álbum. Dessa temporada de shows, relata-se em O Pasquim (n º 90, em 1971) um gesto de Milton para demarcar uma diferença em relação à “linguagem performática do tropicalismo (…) quando retirou o figurino metálico para cantar de peito nu, optando depois por manter um visual ‘afro’ e ‘primitivista’” (GARCIA, 2000, p.125).
Para Lennon e McCartney (L. Borges, M. Borges e F. Brant) é praticamente uma carta de intenções do que vem adiante: ser universais e locais, modernos e tradicionais, artesanais e industriais, dar, da periferia do planeta, o seu recado em pé de igualdade, mesmo que o centro não os escute. Não por acaso a canção escolhe como destinatários ideais a dupla de compositores dos Beatles que “não sabem do lixo ocidental”. Lô, notório admirador dos quatro rapazes de Liverpool, usa na harmonia o movimento de baixo descendente nos acordes em Lá menor, que os Beatles usaram em várias canções como And your bird can sing ou Something. Há também uma citação melódica bem orgânica de I should have known better, “eu sou da América do Sul” (“You’re gonna say you love me too”), notada por VILELA (2010, p.21). Para não falar do arranjo de banda, com guitarra-base marcante, riff acompanhando o refrão, solo distorcido de guitarra. Estava dado o recado, para além das dicotomias: “Mas agora sou cowboy/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais”. Vale notar que esse personagem, decalcado das referências cinematográficas que fascinavam aquela geração, retorna em Durango Kid (T. Horta/F.Brant), arranjo que embaralha o pop nas ventanias harmônicas de Toninho Horta. Discutir o lugar do Brasil no mundo, naquele momento, era uma tarefa tanto estética quanto política.
Brota em guerra e maravilha
Outra peça importante desse quebra-cabeça é Pai Grande. Notadamente um raro caso de regravação, já figurara no disco que precede Milton. A decisão de fazer a faixa outra vez diz muito. A chave aí é o trabalho de percussão, liderado por Naná Vasconcelos, acompanhado por apitos de caça, ocarina, timbres que os músicos do Som Imaginário, recriando fantasticamente uma floresta de sons da diáspora africana, cuja crônica é o insumo da letra, significativamente escrita pelo próprio Milton: “Meu pai grande/quisera eu ter sua raça pra contar/a história dos guerreiros/trazidos lá do longe (…)”. Reforço as observações de outros autores (ANHANGUERA, 1978; VILELA, 2010) quanto à pesquisa de sonoridades trazidas da África, diversas das que informam o samba. Tradição e vanguarda se combinam na experimentação polirítmica entre voz e violão, cada um num tempo diferente sobre o mesmo pulso que Milton emprega nesta faixa e desenvolveu na trilha de Os deuses e os mortos, de onde ele pinçou para o disco Maria três filhos, um nó rítmico em nossos ouvidos, e Canto latino (com letra de Ruy Guerra).
Como aponta Chico AMARAL (2018, p.201), Canto Latino é uma canção seminal, uma suíte em três partes com acordes e procedimentos harmônicos que Milton reutilizaria posteriormente. Esse tipo de construção, mais comum para a música de concerto, é preenchida por uma letra apropriadamente épica e extensa, conclui com uma conclamação à luta armada: “a primavera que espero/por ti irmão e hermano/só brota em ponta de cano/em brilho de punhal puro/brota em guerra e maravilha/na hora, dia e futuro/da espera virar…” e a palavra guerrilha preventivamente omitida para evitar a sanha da censura. Chave de leitura do álbum, fechando o lado A e ficando no “miolo” da obra, é sucedida por Durango Kid abrindo o B, o que acentua a escolha das figuras cuja aproximação não se faz sem contradições e que compõem um imaginário de embate violento: o guerrilheiro e o cowboy.
O posicionamento político no enfrentamento do autoritarismo, das injustiças e desigualdades permeia todo o trabalho do Clube da Esquina e revela a forte sinergia entre o trabalho dos músicos e seus parceiros letristas. Em Milton figura a trinca Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, além do já citado Ruy Guerra. Seja no tom introspectivo e autoconfessional que Bastos imprime ao inquieto buscador de Amigo, amiga, no posicionamento assertivo de Brant ao afirmar o poder da palavra em Durango Kid “esse jornal é o meu revólver” ou ao denunciar as agruras da “negra voz de velha só” em Maria três filhos, ou finalmente na postura desafiadora e rebelde de Borges em Alunar, botando abaixo as certezas da geração de seus pais, do mesmo modo que sua levada deixa dúvida se é um rock ou uma moda de viola.
Mesmo a única canção fora da panela, digamos assim, a que fecha o disco, A felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, se encaixa como luva no tom geral de engajamento social: “a felicidade do pobre parece/a grande ilusão do carnaval/a gente trabalha o ano inteiro/por um momento de sonho”. O arranjo e interpretação transcriadoras de Milton lhe dão forma mais propriamente triste, com o andamento mais lento, e sublinhando ainda mais sua intensidade emocional ao reiterar o verso “cai como uma lágrima”, suspendendo a conclusão. Depois de o ouvinte ter sido levado à lua com a energética e jovial Alunar, a queda a conta-gotas assenta o final da audição permitindo que ele respire aterrado e absorva minimamente o impacto de um disco que certamente ainda hoje desafia quem o escuta.
De novo na esquina os homens estão
Deixei para o final, propositadamente, a canção Clube da Esquina, de cuja composição com aspecto de lenda já tratei tantas vezes (GARCIA, 2000; 2007). É a canção que realiza, em sua própria materialização, o “lugar” metafórico da esquina, ponto de encontro e despedida, seja para as pessoas na cidade, seja para os músicos que se agremiaram em um certo “clube”. À harmonia reiteradamente repetida por Lô Borges, sucedeu-se a melodia feita por Milton Nascimento, construída em pequenos intervalos que literalmente delineiam a serra do Curral D’El Rei, resto da cidade colonial que foi sucedida pela republicana capital mineira, Belo Horizonte. Mas não foi na notória esquina do bairro de Santa Tereza, mas no centro da cidade, na escadaria do Edifício Levy, que Milton conheceu a família Borges e foi lá também que o irmão Márcio, à luz de velas, por causa de uma queda de energia, concluiu a letra de Clube da Esquina.
É nesse registro noturno, aludindo a uma serenata para a própria lua, com arranjo despojado em que voz e violão tem um discreto acompanhamento de caixa tocada com escova, em tom melancólico, que a voz solene e misteriosa de Milton, dando corpo ao desafio que é próprio do estilo de Márcio Borges, tira literalmente das pedras algum alento para o futuro. A esquina democrática ressoa como um refúgio, no qual é possível encontrar outros mortais com quem dividir os revezes e ganhar forças para “vencer a manhã”.
Milton, assim, já representa em si uma parada na esquina do mundo, onde os homens estão. Isso, num tempo em que mais de duas pessoas reunidas na rua poderiam ser consideradas participantes de um ato subversivo, quer dizer muito. É, a seu modo, um álbum conceitual, conceito amarrado desde a capa até a última faixa, um inventário das formas de luta contra a opressão e a Ditadura Militar em seu período mais duro. Sua música reúne, num arco abrangente e generoso, inesperada e misteriosamente, a intensidade do rock e a sutileza da Bossa Nova, a fixidez dos cantos religiosos tradicionais e a liberdade do free jazz, o céu e a raiz, prenunciando um adensamento da produção dessa constelação de artistas que se faria ouvir em Clube da Esquina, álbum duplo de 1972. Tais predicados colocam Milton no rol dos discos clássicos, aqueles que a cada audição poderão revelar ainda algo que não se sabia sobre eles e sobre o mundo, como este resenhista acabou de confirmar ao concluir estas linhas.
Referências
AMARAL, Chico. A música de Milton Nascimento. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2018.
ANHANGUERA, James. Corações futuristas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1978.
GARCIA, Luiz H. A. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2000 (dissertação de mestrado).
GARCIA, Luiz H. A. Na esquina do mundo: trocas culturais na música popular brasileira através da obra do Clube da Esquina (1960-1980). FAFICH/UFMG, 2007 (tese de doutorado).
GARCIA, Luiz H. A. ‘Só ponho bebop no meu samba…’: trocas culturais e formação de compositores na formulação da MPB nas décadas de 1960-70. El oído pensante, vol. 5, n°1, p. 1-25, 2017.
VILELA, Ivan. Nada ficou como antes. Revista USP, São Paulo, n.87, p. 14-27, setembro/novembro 2010.
Como citar este texto
GARCIA, Luiz Henrique Assis. Do fio da canção. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 2, 2020. Disponível em: https://amusicade.com/milton-1970-milton-nascimento/. Acesso em: 01 abr 2025.