As misturas de um compositor plural
Francisco Vital Okabe
Francisco Vital Okabe é bacharel em Música (Produção Sonora) e mestre em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Paraná. Conviveu com Waltel Branco durante seus últimos anos morando em Curitiba e fez um estudo de sua trajetória e obra na dissertação intitulada “Waltel Branco – obra e experiência musical”. Possui três álbuns de música autoral lançados pelo selo independente Onça Discos. Tem experiência em música popular, composição, arranjo e produção musical.
Waltel Branco (1929-2018) nasceu em Paranaguá (PR), filho do maestro Ismael Branco. Ao longo de seus 89 anos, viajou o mundo para trabalhar com música e trouxe um pouco de cada cultura que conheceu para suas composições e arranjos. Depois de passar por países como Uruguai, Cuba e Estados Unidos, e tocar na rádio e em shows em Curitiba (PR), Waltel partiu para a capital do Rio de Janeiro incentivado pelo maestro Radamés Gnatalli. Lá conheceu, entre tantos outros, João Gilberto, com quem teve longa parceria. Foi também no Rio que gravou seus primeiros álbuns, entre eles, o LP Guitarras em Fogo (1962) que conta com o jovem Baden Powell no violão de acompanhamento. Em meados da década de 1960, iniciou seu trabalho na Rede Globo de televisão e na gravadora Som Livre, onde teve contato com incontáveis músicos e trabalhou em gravações dos mais variados gêneros e estilos musicais. Waltel também escreveu trilhas sonoras para a emissora e chegou a trabalhar para o compositor norte-americano Henry Mancini na trilha do filme A Pantera Cor de Rosa (1963).
O caminho de Waltel pelo mundo permitiu que ele conhecesse músicos como Paco de Lucía, Astor Piazzolla, Andrés Segovia e Igor Stravinsky. No Brasil, ele trabalhou em discos de Cazuza, Tim Maia, Alceu Valença, João Bosco, Elizeth Cardoso, Elis Regina e muitos, muitos outros. Sua trajetória é repleta de histórias surpreendentes que revelam o quanto sua participação na música brasileira foi extensa e diversificada – tanto em áreas de atuação (compositor, regente, arranjador, instrumentista, professor) quanto em gêneros/estilos musicais, localidades e culturas. E sua discografia reflete essa diversidade: gravou álbuns de música de câmara, de bossa nova, de funk e também projetos que englobam e misturam vários estilos. É o caso do CD Kabiesí, lançado pelo selo Leblon em 1994, alguns anos após sua saída da Rede Globo.
Kabiesí: Uma viagem pelos mundos de Waltel
Após cerca de duas décadas trabalhando para TV Globo e para outros artistas, o experiente Waltel pôde dar mais ênfase na sua produção autoral. No álbum Kabiesí, compôs e arranjou todas as músicas, o que não havia feito em nenhum projeto anterior. Além de tocar seu violão em todas as faixas, em algumas até três violões superpostos, gravou também teclados. Sua intenção de criar algo novo a partir da mistura dos tão diversos estilos musicais com os quais havia se envolvido está bem clara na descrição das faixas no encarte: “Feira da Lua – fusão de modinha e fandango” e “As Cores do Leme – fusão de samba, choro e fandango, em 3×4”, são alguns exemplos. O álbum leva o ouvinte de um universo musical a outro em grandes saltos, tal como na trajetória de Waltel. É como se o compositor nos contasse algumas de suas histórias durante uma viagem a bordo de seu violão e sua criatividade – as únicas constantes de Kabiesí.
A capa faz referência ao orixá Xangô (na parte de cima, forma simplificada do machado com duas lâminas) e à bandeira do Brasil (na parte inferior), ilustrando a faixa de abertura do álbum Kabiesí Brasil. Trata-se de uma composição feita para a batida do Alujá, ritmo preferido de Xangô na tradição do candomblé Ketu. Já anunciando o tom eclético do álbum, a segunda faixa é a milonga Rua das Flores, nome dado ao calçadão no centro de Curitiba, cidade em que Waltel iniciou sua carreira como músico e retornou depois, nos anos 2000.
Na sequência, Feira da Lua traz o tom melancólico da modinha tocada ao violão solo, Maha Mantra para Christian nos leva à tradição religiosa do hinduísmo e Ninho de Cobra mistura o choro com a música de Johann Sebastian Bach, seu compositor favorito. A fantasia Ao Cair da Tarde nos faz flutuar por mais de 7 minutos entre melodias e contracantos do violão e do violoncelo (outro instrumento que Waltel também tocava e para o qual escreveu várias composições e arranjos). As Cores do Leme soa como um estudo de violão que se desenvolve num tema virtuoso e se solta numa sessão de improviso. O samba-jazz Rondó dos Namorados, também chamada de Feijão com Arroz ou O Anjo e o Vampiro (todos os nomes constam no encarte), inspira espontaneidade e descontração, especialmente nas curtas passagens em que se transforma num funk antes de retornar ao tema principal. Também descrita como um “improviso sobre um tema composto por Waltel”, conta com a participação de Raul de Souza no trombone.
Em seguida, Aprendizado Amoroso é mais uma fantasia, com andamento lento e caráter romântico e sonhador. A canção A Vida, que contém citações de Bach no violão de acompanhamento, embora possa soar como a faixa mais convencional do álbum, é mais um exemplo de como Waltel diminui as distâncias de espaço e de tempo. Consta no encarte: “Os versos foram escritos pelo paraibano Odilon Mendonça, no Acre, em 1918; música composta pelo paranaense Waltel, no Rio, em 1990”. Passando por mais uma milonga, um cânone à oitava (novamente a influência de Bach) em ritmo de choro, uma valsa jazz, um forró e um choro atonal, o álbum encerra a longa viagem retornando à Vila Eterna Vila, uma sonata inspirada pela melodia de Feitiço da Vila (Noel Rosa e Vadico).
Presentes musicais
Sempre muito generoso, Waltel fez várias homenagens por meio de sua música. Em Kabiesí, os títulos das faixas revelam as dedicatórias a amigos (Maha Mantra para Christian e Forró do Lucas) e a locais (Rua das Flores e Paranaguá). Ouvindo é possível perceber as referências (e reverências) a compositores como Bach (Ninho de Cobra e Caprichoso) e Noel Rosa (Vila Eterna Vila). Além disso, o choro Ninho de Cobra é dedicado ao conjunto de mesmo nome e a valsa jazz Estrela é dedicada a Estrela Leminski, filha de Paulo Leminski, que era primo de Waltel.
Mas existem presentes mais escondidos, como as músicas feitas a partir de nomes. Um exemplo disso é a faixa Aprendizado Amoroso, dedicada a Geraldo Casé, produtor, escritor e diretor de TV natural do Rio de Janeiro, pai da atriz Regina Casé. Waltel tinha uma técnica de composição que ele chamou de Melonome: para cada letra do alfabeto, uma nota musical é atribuída, relacionando a sequência das letras em ordem alfabética com uma sequência (ascendente ou descendente) de notas musicais. Feita a relação entre letras e notas, cada nome gera uma melodia e essa melodia serve de ponto de partida para a composição. Durante minha pesquisa de mestrado, Waltel contou que conheceu essa técnica por meio da partitura de Tonadilla, de Mario Castelnuovo-Tedesco, feita a partir do nome de Andrés Segovia.
Muitos presentes musicais foram feitos utilizando o Melonome. No álbum Kabiesí, também a faixa Choro Empacotado, descrita como um choro atonal, surgiu do Melonome do amigo Edwaldo Pacote. Por seguir uma lógica diferente da musical, um Melonome pode gerar uma sequência de notas inusitada e fora da zona de conforto do compositor, tornando-se também um instigante desafio.
Compositor plural
Waltel aprendeu teoria musical e canto gregoriano em um seminário franciscano em Curitiba. Na capital paranaense, integrou-se ao ambiente artístico e começou a tocar na rádio e em grupos de música instrumental, no início dos anos 1950. No Rio de Janeiro, participou de gravações e estudou violão e violoncelo. Em Cuba, trabalhou como músico e arranjador em big bands que se apresentavam em cassinos e boates. Nos Estados Unidos, estudou guitarra de jazz e música para cinema, além de dar aulas de violão clássico em uma universidade. De volta ao Rio, gravou seu primeiro álbum como guitarrista, atuou como multi-instrumentista e trabalhou como arranjador de muitos discos ligados à estética da Bossa Nova. Tudo isso em cerca de uma década, antes de iniciar seus trabalhos na maior emissora de televisão do país.
Com tantos diferentes contextos em sua trajetória, Waltel aprendeu a ter um olhar universal sobre música, acima das barreiras de gêneros, estilos e/ou culturas. Kabiesí é o trabalho em que o compositor mais expressa isso: tem fandango, milonga, choro, samba-jazz e também música de câmara. Começa com batuque de tambores e improvisos do violão e termina com um ensemble de violoncelos tocando uma sonata. Waltel aproxima pólos como tradição e inovação, ritmos bem marcados e andamentos livres, globalização e identidade nacional, solos e grandes conjuntos, música “erudita” e “popular”. E faz questão de ressaltar os contrastes com a ordem das faixas. Um álbum que nos apresenta, pela primeira vez em sua discografia autoral, um Waltel compositor declaradamente plural.
Reconhecimento tardio
Desde bem antes do álbum Kabiesí, Waltel já se interessava por criar novas misturas musicais. No início dos anos 1960, misturou samba com música cubana e foi um dos precursores do Sambalanço (SOUZA, 2016, p.109). Na década de 1970, misturou o funk e o soul com a música brasileira nos arranjos das trilhas sonoras de novelas da Rede Globo (SEBADELHE e PEIXOTO, 2016, p. 129). Sempre antenado, apoiava os novos artistas e traduzia com maestria suas ideias em arranjos ou orquestrações. E ia além, como conta Djavan, que não só foi encorajado por Waltel no início de sua carreira como ganhou dele um violão profissional que utilizou em shows e gravações por muitos anos.
No entanto, seu trabalho está ainda sendo descoberto e reconhecido. Assim como outros arranjadores, orquestradores, regentes e todos que atuam nos bastidores, seu nome e imagem pessoal não se tornaram conhecidos pelo grande público. Agravando a situação, ele conta no documentário Descobrindo Waltel (2005), de Alessandro Gamo, que em diversas ocasiões teve que assinar usando algum pseudônimo a pedido das gravadoras, que na maioria das vezes nem davam crédito para os músicos nos discos. Isso tudo sem contar o racismo estrutural, que certamente adicionou dificuldades extras em sua carreira.
Dentre as misturas que fez em Kabiesí, não estão no menu os gêneros musicais de maior sucesso comercial no início dos anos 90 no Brasil, como rock, sertanejo, axé e pagode. Com uma tiragem pequena e sem a distribuição de uma grande gravadora, este CD é até hoje pouco conhecido, mesmo quando comparado a outros trabalhos autorais de Waltel. Não acompanhou a era dos streamings e alcança altíssimos valores em sites de venda devido a sua raridade. Bem diferente de seu álbum mais conhecido, o LP Meu Balanço, de 1975, relançado pela Sony Music Brasil em 2016. A última edição desta pérola do funk brasileiro pode ser comprada em quase todo site ou loja que venda LPs no país, e costuma ser o primeiro contato que a maioria das pessoas tem com a obra de Waltel.
Além de ser admirado entre os fãs do vinil, suas músicas também são conhecidas entre os violonistas e chorões. Quarenta e quatro peças para violão, revisadas por Cláudio Menandro, foram publicadas no livro de partituras A obra para violão de Waltel Branco (2008), organizado e revisado por Cláudio Menandro, e mais quatro composições constam no Songbook do Choro Curitibano volume 1 (2012), organizado por Tiago Portella. No CD O violão plural de Waltel Branco, que, assim como o livro de partituras, foi idealizado e produzido por Alvaro Collaço, violonistas compositores como Guinga, Marco Pereira, Paulo Bellinati e Ulisses Rocha gravaram algumas de suas músicas, afirmando a relevância de Waltel no contexto do violão brasileiro.
Em seus últimos anos de vida, recebeu várias homenagens, muitas delas em Curitiba, e foi lembrado, tanto nos bares de música, como em grandes shows e concertos de orquestra. Na capital paranaense, Waltel recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela UFPR em 2012 e foi o tema da Corrente Cultural em 2013. No entanto, seu nome ainda é desconhecido para além dos nichos específicos citados anteriormente e permanece ausente na grande maioria das publicações sobre música brasileira. Estamos ainda descobrindo Waltel. Esta resenha, assim como cada publicação que não o esquece, é mais um pequeno e necessário esforço para que seu trabalho não fique apagado na história, especialmente este álbum que revela tantos lados de sua imensa criatividade.
Referências
BRANCO, Waltel; OLIVEIRA, Cláudio Menandro de (org.). A obra para violão de Waltel Branco. Curitiba: Alvaro Collaço Produções, 2008.
GAMO, Alessandro. Descobrindo Waltel. 2005. Curta-metragem/Documentário (15min). Disponível em: <http://portacurtas.org.br/filme/?name=descobrindo_waltel>.
OKABE, Francisco Vital. Waltel Branco: obra e experiência musical. Dissertação (Mestrado em Etnomusicologia), Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Música. 2018.
SEBADELHE, Zé Octávio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976: Movimento Black Rio. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016. 1ª. ed. 254p.
SOUZA, Tárik de. Sambalanço, a bossa que dança – um mosaico. São Paulo: Kuarup, 2016. 272p.
WALTEL BRANCO. Kabiesí. CD. Leblon, 1955.
Como citar este texto
OKABE, Francisco Vital. As misturas de um compositor plural. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 1, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/kabiesi-1994-waltel-branco/. Acesso em: 21st novembro 2024.