Sambista, coquista, forrozeiro… As muitas identificações do “rei do ritmo”
Cláudio Henrique Altieri de Campos
Cláudio Henrique Altieri de Campos é músico, professor e pesquisador. Doutor em Música/Etnomusicologia PELO Instituto de Artes – UNESP; defendeu tese focada na trajetória artística de Jackson do Pandeiro e nas relações de sua música com a obra de artistas contemporâneos da MPB. Tem diversos artigos publicados e realizou conferências sobre esta temática em universidades no Brasil, Portugal e Espanha.
17 de janeiro de 1953. Recife/PE. Estreia da Revista Carnavalesca A Pisada É Essa!
O auditório da Rádio Jornal do Commercio fervia de expectativa, com lotação esgotada para assistir ao show de variedades que trazia as principais atrações do elenco da emissora. Faltando aproximadamente um mês para o carnaval daquele ano de 1953, o público, que estava ansioso para conhecer os sucessos que animariam a folia na capital pernambucana e no restante do país, explodiu em gargalhadas ao perceber a surpresa com que aquele sambista com figurino de malandro carioca, parecendo uma encarnação de Zé Pelintra, recebeu uma umbigada de sua parceira de palco. O baixinho cafuzo, de terno branco e gravata colorida, já havia subido ao palco contrariado com aquela situação. “Onde já se viu! Ter que cantar um coco, acompanhado de conjunto regional, enquanto todos os demais artistas se apresentariam com a orquestra”, reclamava ele. Ainda mais depois de ter ensaiado um samba e uma marcha que estavam fazendo sucesso no Rio de Janeiro/RJ e que ele acreditava que lhe renderiam algum destaque – e, talvez, um dinheirinho extra – naquele carnaval.
Os versos “Você pensa que cachaça é água? / Cachaça não é água, não / Cachaça nasce no alambique / E água vem do ribeirão” (Cachaça, composição de Lúcio de Castro, Heber Lobato, Marinósio Filho e Mirabeau Pinheiro) estavam na ponta da língua e, pela repercussão que já atingiam na capital carioca, seriam sucesso na certa! Mas, ali estava ele, no palco, sendo alvo de riso do público, desconcertado com a peça que sua colega, a atriz de rádio Luiza de Oliveira, acabara de lhe pregar… E tudo porque o produtor do show, Amarílio Nicéas, instantes antes havia lhe ordenado que desistisse do repertório escolhido e cantasse um “coquinho, daqueles lá do tempo da sua mãe, daquele povo todo…”. “E revista de carnaval lá é lugar para cantar coco?!”, pensava o sambista, contrariado. Mas aquele malandro não ia deixar barato. “Deixa ela vim de vorta agora que eu vô lascá ela na umbigada!”, pensou. Esperou a chegada novamente do refrão “A, E, I, O, U, Ypsilone!” e foi para o revide: “De quando ela veio de lá, eu me preparei de cá, bati o pé no chão, castiguei a mulher na umbigada! Aí meu camarada… o negócio… virou frege, viu? Todo santo dia, durante 29 dias de Revista, nós cantávamos Sebastiana 3, 4 vezes! Certo?!” (Jackson do Pandeiro – MPB Especial [1972], 2012, 10min23seg). Foi assim que a trajetória de Jackson do Pandeiro (1919 – 1982) sofreu uma reviravolta impensável.
A dança diferente de ``Sebastiana``
O sucesso inesperado com a música Sebastiana (1953), uma composição de seu parceiro Rosil Cavalcanti, mudou os rumos que vinha trilhando até então. Jackson era, na época, pandeirista contratado pela orquestra da Rádio Jornal do Commercio e vinha se estabelecendo como “cantor de sambas ritmados” no norte do país, de acordo com artigo publicado no Jornal do Commercio – do mesmo grupo de comunicação da rádio –, em dezembro de 1949, conforme apuraram seus biógrafos Moura e Vicente (2001, p. 144). Era especialmente ligado ao samba de breque, inspirado nas interpretações do cantor carioca Jorge Veiga, conhecido como o “Caricaturista do Samba”.
A partir daquele evento, seu repertório profissional passou a incorporar toda a diversidade de gêneros musicais e manifestações culturais característicos da região Nordeste do Brasil, como o coco, o baião, o xote, o arrasta-pé e a embolada, entre outros. Começava a se configurar a imagem do artista que se consagrou na história da Música Popular Brasileira (MPB) como um dos maiores expoentes da “música nordestina tradicional”, ao lado de Luiz Gonzaga (1912- – 1989), o “Rei do Baião”.
Sucesso nacional
O destaque trazido pelas performances do coco Sebastiana na revista carnavalesca atraíram a atenção da indústria fonográfica. Jackson, aos 34 anos de idade, foi contratado pela gravadora Copacabana, com sede no Rio de Janeiro/RJ, para gravar seu primeiro lote de músicas da carreira. Ficou a cargo do cantor escolher o repertório. As primeiras músicas registradas por ele foram lançadas em discos compactos de 78 rpm. Entre o final de 1953 e o início de 1954, o público carioca recebeu com entusiasmo o disco que continha as gravações do rojão Forró em Limoeiro (Edgar Ferreira) e de Sebastiana, que ganharam espaço na programação das principais rádios do período, como a Nacional e a Mayrink Veiga, de modo a serem divulgadas para todas as regiões do país por meio das cadeias de retransmissoras associadas.
De acordo com Moura e Vicente, as vendas deste primeiro compacto de Jackson alcançaram a “casa das 50 mil unidades já nas primeiras semanas. Ângela Maria, a maior estrela da gravadora, havia chegado aos 20 mil discos.” (2001, p. 175). Jackson do Pandeiro passava de um sambista de atuação regional, no Nordeste, para um artista de sucesso em âmbito nacional – status atingido paradoxalmente ao ser significado como representante de uma cultura musical considerada “regional” no mercado musical brasileiro.
Em 1955, a gravadora Copacabana lançou o primeiro LP do artista, intitulado Jackson do Pandeiro com Conjunto e Côro, reunindo uma seleção de músicas anteriormente registradas em discos compactos de 78 rpm. Para a Copacabana era uma estratégia comercial interessante, faturando com um produto “novo” que teria baixíssimo custo, uma vez que as gravações estavam todas prontas em seu catálogo. Para Jackson, era mais uma forma de divulgar sua música e de se firmar no mercado musical. Este LP é representativo da carreira de Jackson do Pandeiro não apenas por ser seu primeiro álbum, com um total de oito músicas, mas principalmente por apresentar parte significativa da diversidade de gêneros musicais e de identificações culturais que marcaram toda a trajetória fonográfica do cantor – um dos elementos fundamentais para a consolidação de sua imagem, na história da MPB, como “Rei do Ritmo”.
Lado A: Processo e gênero
No lado A, está a música Forró em Limoeiro, uma composição de Edgar Ferreira, que foi um dos principais parceiros de Jackson do Pandeiro nos anos iniciais de sua carreira fonográfica – como fica evidenciado pela inclusão de três composições de Edgar neste LP. Nesta composição, cantada em primeira pessoa, o personagem narra os acontecimentos em um forró que se realizou na cidade de Limoeiro/PE, onde a animação promovida pela música da sanfona deu lugar a uma confusão que terminou em briga.
A música foi classificada como um “rojão”. A caracterização de “rojão” enquanto gênero musical é controversa, e o termo costuma estar ligado às músicas em que a performance do canto exige grande habilidade de pronúncia das sílabas poéticas em ritmo acelerado, portanto, simbolicamente associado à ideia de “alta velocidade”. O termo “rojão”, então, parece aproximar-se mais da noção de “processo musical” do que de “gênero musical”. Tanto assim que, por vezes, músicas com esta classificação são também identificadas como “coco” ou “embolada”. Jackson recebeu desde a infância a influência cultural dos cocos, por meio de sua mãe, a coquista Flora Mourão, e assimilou os juízos de valor que orientam os praticantes de algumas das modalidades destas manifestações de cultura popular, sintetizados em expressões como “competência”, “virtuosismo”, “habilidade”. Ele é considerado por artistas como Gilberto Gil, Alceu Valença, João Bosco, Lenine, e muitos outros, como um virtuose na interpretação vocal, e esta característica pode ser observada nesta gravação de Forró em Limoeiro, onde a divisão rítmico-melódica de Jackson ganha destaque.
As outras duas músicas de Edgar Ferreira que fazem parte do LP são o xote Cremilda e o rojão 1 X 1. Nesta, Jackson canta um dos temas de maior interesse em sua vida e muito presente na cultura brasileira desde o século XX: o futebol. São muitas as músicas gravadas por ele que abordam este assunto. Em 1 X 1, Jackson interpreta um torcedor de futebol aficionado por seu clube, que avisa: “Esse jogo não pode ser um a um!/ Se o meu clube perder é zum-zum-zum!”. Em uma seção desta música, Jackson cita cores que representam times de futebol, cantando em um estilo próximo ao dos coquistas e emboladores: “É encarnado e branco e preto/ É encarnado e branco!/ É encarnado e preto e branco/ É encarnado e preto!”. Neste caso, a palavra “encarnado” é sinônimo de “vermelho”. É interessante notar que o virtuosismo vocal de Jackson, que produzia deslocamentos inesperados nas acentuações das sílabas poéticas e das melodias, levou o cantor e compositor Alceu Valença a propor uma analogia entre o estilo interpretativo do artista paraibano e as atuações do jogador de futebol Garrincha (Manuel Francisco dos Santos, 1933 – 1983) – famoso por seus dribles habilidosos e surpreendentes.
Ainda no lado “A”, está O Galo Cantou, de Edgar Moraes. A escolha desta música para participar do LP é bastante significativa por ressaltar a ligação de Jackson com as religiões afro-brasileiras. A canção faz referência, por exemplo, ao “Pai Ogum” e ao “Rei Orixá”, além de citar a expressão “sacudir o despacho na encruzilhada”. Como em muitas outras músicas de seu repertório que abordaram esta temática religiosa, O Galo Cantou foi classificada pelo artista como “batuque”, provavelmente muito mais pela ligação com os sons ancestrais dos terreiros do que por uma tentativa de nomenclatura relacionada com alguma forma de gênero de música popular.
Lado B: Coco, forró e samba
No lado “B” do LP estão quatro clássicos do repertório jacksoniano. O primeiro deles é Forró em Caruaru, de Zé Dantas, que trata novamente do ambiente de festa do forró, desta vez na casa de “Sá Joaninha / Em Caruaru”, e de uma briga que terminou em tragédia, como cantou Jackson: “Matemo dois sordado, quatro cabo e um sargento”, em um pequeno trecho que novamente faz lembrar o estilo vocal dos coquistas. Em seguida, vem o coco A Mulher do Aníbal, de Genival Macedo e Nestor de Paula, com uma interpretação vocal bastante sincopada, deixando perceber a influência do samba no estilo de Jackson, assim como uma de suas características mais fortes, que foi a mediação entre elementos da cultura musical do Nordeste e do Sudeste do Brasil. É sintomático disto que, muito anos depois, em 1998, o sambista Zeca Pagodinho e Chico Buarque tenham regravado esta música do repertório de Jackson.
O lado “sambista” de Jackson do Pandeiro fica de fato evidenciado na faixa Falsa Patroa, de Geraldo Jacques e Isaias de Freitas. Jackson canta esta música incorporando o personagem do “malandro carioca”, que faz uso de sua esperteza para tentar escapar de uma enrascada com o delegado de polícia. A música é um samba, com acompanhamento de conjunto regional, cuja sonoridade remete às gravações dos grandes intérpretes do gênero durante a chamada “Era de Ouro” do rádio brasileiro, por volta das décadas de 1930 a 1950. Ao final da música, em uma última tentativa do “malandro” de se livrar da cadeia, ocorre um “breque” no acompanhamento – uma pausa abrupta do conjunto regional – e o personagem faz uma súplica de forma falada seguida da narração do desfecho: “Dotô mandô ir-me embora, nêgo véio!…”. Nesta gravação, como em outros momentos de sua carreira, Jackson deixou aflorar por inteiro seu lado sambista, que constituía parte fundamental de sua identidade cultural e artística, mas que era mantida sob a sombra de sua imagem de ícone do forró no mercado musical.
Fechando o LP, Jackson traz o coco Sebastiana, que lhe abriu as portas para o sucesso, redirecionou sua trajetória profissional e lhe permitiu tornar-se um dos grandes artistas da história da MPB. Esta música alcançou tamanha relevância no campo da MPB que ainda hoje se pode ouvir o ressoar da voz de Jackson do Pandeiro cantando que a “comadre Sebastiana” gritava: “A, E, I, O, U, Ypsilone!” enquanto fazia sua dança diferente… Se fechar os olhos, dá até para imaginar o público caindo no riso com o susto que ele levou com aquela umbigada.
Referências
CAMPOS, Cláudio H. A. “Jackson do Pandeiro e a Música Popular Brasileira: liminaridade, música e mediação”. São Paulo, 2017. 322f. Tese de doutorado em Música/Etnomusicologia. Instituto de Artes, UNESP, São Paulo, 2017.
MOURA, Fernando, VICENTE, Antonio. Jackson do Pandeiro: O Rei do Ritmo. São Paulo: Ed. 34, 2001.
SOARES, Inaldo. A Musicalidade de Jackson do Pandeiro. Camaragibe: IGP (Gráfica), 2011.
Disco
JACKSON DO PANDEIRO. Jackson do Pandeiro em Conjunto e Côro. LP de 10 polegadas. Copacabana, 1955.
Vídeo
Jackson do Pandeiro – MPB Especial [1972]. Direção original: Fernando Faro. Direção do DVD: Marcelo Fróes. [S.I.]: Discobertas, 2012. 1 DVD (50min).