RAÍZES LOCAIS: A CELEBRAÇÃO DE NEIDE MARIARROSA EM SEU ÚNICO ÁLBUM
Virginia Calazans Ribeiro Acosta
Virginia Calazans Ribeiro Acosta é historiadora graduada pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), musicista pela Universidade Claretiano, pós-graduada em Antropologia e História da Arte pela Faculdade de Ensino de Minas Gerais (Faceminas) e mestra em História também pela UDESC.
Neide Mariarrosa, cantora negra nascida em Florianópolis, Santa Catarina, em 11 de abril de 1936, faleceu em 1994 em decorrência de câncer. Assim, no dia 4 de setembro de 2024, completaram-se 30 anos de seu falecimento. Mariarrosa iniciou sua carreira aos 14 anos, participando de um programa de calouros da Rádio Guarujá, a primeira emissora de rádio de sua cidade natal (Medeiros; Vieira, 1999). Sua voz e interpretação rapidamente a tornaram conhecida na região, e ela se destacou como locutora e radioatriz, embora tenha optado por seguir sua trajetória na música.
No início da década de 1960, conheceu a renomada cantora Elizeth Cardoso, com quem desenvolveu uma estreita amizade. Reconhecendo o imenso talento de Neide, Elizeth, já considerada uma das vozes mais bonitas do país, tornou-se sua madrinha e a levou ao Rio de Janeiro. Em 1964, durante o início da ditadura militar, Neide estabeleceu-se definitivamente na cidade, dando início à carreira em âmbito nacional. No Rio de Janeiro, a cantora rapidamente se destacou como uma grande intérprete. Tornou-se a voz de renomados compositores, entre os quais estão Pixinguinha, Cartola, Zé Kéti, Edu Lobo, Hermínio Bello de Carvalho, Gilberto Barcellos e Capinam, entre outros. Além de realizar numerosas apresentações em prestigiadas casas de espetáculo, como o Copacabana Palace, a Sala Cecília Meireles na Lapa e o Café Teatro Casagrande no Leblon, Neide participou de diversos festivais, sendo classificada para as finais em grande parte deles e recebendo prêmios em algumas edições. Os principais festivais dos quais participou foram o II Festival Internacional da Canção (RJ), em 1967; o Festival de Música de Juiz de Fora (MG), em 1968; e a I Bienal do Samba (SP), no mesmo ano. (Coronato, 2010).
Um aspecto que se destaca no repertório de Neide é a diversidade. Se por um lado, a cantora interpreta canções de vários estilos, incluindo samba, samba-canção, bossa nova, bolero, tango, jazz e rumbas, por outro, os temas representados em sua obra são igualmente variados. Embora muitas de suas canções sejam românticas, também há um número significativo de composições que tratam de questões como racismo, desigualdades sociais e política. Em uma pesquisa sobre sobre seu repertório, constatou-se que cerca de 30% aborda contextos históricos vivenciados pela artista, refletindo suas experiências de vida e evidenciando sua atenção às questões sociais que a cercavam (Acosta, 2024).
Neide Mariarrosa teve um número limitado de gravações oficiais e grande parte de sua obra pode ser encontrada na Casa da Memória de Florianópolis. Isso se deve ao compositor Zininho, amigo e conterrâneo de Neide, que registrou e arquivou diversos momentos da trajetória profissional da artista. Após o falecimento de Zininho, todo o material foi doado à instituição. Oficialmente, a artista gravou alguns compactos e seu único álbum, intitulado Eu Sou Assim, lançado em 1988, que reflete aspectos significativos de sua vida e preocupações.
SONORIDADES LOCAIS
O álbum Eu Sou Assim, de Neide Mariarrosa, foi realizado entre agosto e setembro de 1988 no Estúdio RPK, em Florianópolis. Trata-se de um álbum muito especial, pois reflete não apenas quem Neide foi, mas também suas raízes e a convivência com os seus músicos, além de sua atenção à cena local. A produção ficou a cargo da Fundação Franklin Cascaes, com direção artística, produção executiva, pesquisa e fotos da capa feitas por Norberto Depizzolatti. A direção de estúdio, gravação e mixagem foram de Carlos Charlone, enquanto o projeto gráfico e a arte final foram elaborados por Sylvio Mantovani, utilizando fotos de encarte fornecidas pelo Arquivo de Neide Mariarrosa. O projeto contou com o patrocínio da Souza Cruz, da Empresa RBS e da Prefeitura de Florianópolis.
Na parte frontal da capa, há uma foto de Neide segurando um pequeno violão, que parece ter sido utilizado de forma descontraída para a imagem, uma vez que, conforme a ficha técnica, ela não participa como instrumentista no álbum, tocando apenas pandeiro em uma das faixas. O verso da capa apresenta um pouco da história da artista e uma sinopse do trabalho, redigida pelo músico e amigo da cantora, Osvaldo Ferreira Melo. Além da ficha técnica, há várias pequenas fotos dos músicos durante as gravações, bem como imagens da própria cantora ao longo do processo.
O projeto inclui um encarte de uma folha impressa frente e verso, contendo todas as canções, letras, compositores, músicos e arranjadores. Nele, é evidente a preocupação de Neide em narrar, através de cada música, um pouco da história de seu compositor, ressaltando que todas as canções foram criadas por profissionais locais, de Florianópolis ou da Grande Florianópolis, ou por aqueles que, mesmo não sendo nativos, já tinham uma forte ligação com a cidade. Segundo o diretor artístico e produtor executivo, Norberto Depizzolatti, “(…) Ela tinha total liberdade na escolha de músicos, arranjadores e repertório” (2008 ) . Isso demonstra o desejo da cantora de valorizar os talentos locais, tentando evidenciar que a cidade abriga grandes profissionais. Infelizmente, muitos deles enfrentam dificuldades para adquirir reconhecimento nacional, uma situação que persiste até hoje, já que Florianópolis frequentemente fica à margem nesse aspecto, levando músicos, cantores e compositores a se mudarem para o Rio de Janeiro ou São Paulo, onde há mais oportunidades de crescimento e difusão.
O encarte também traz fotos da cantora que mostram a trajetória da artista em programas de calouros, no rádio cantando ou atuando, bem como fotos dos tempos da carreira no Rio de Janeiro. Ainda há uma dedicatória na qual a artista expressa sua gratidão pelo amigo Norberto Depizzolatti, que teve grande participação neste trabalho, pois foi com a persistência dele que a obra se concretizou (Perez, Bertoldi, 2008).
CANTOS DE CASA
O elepê traz dez canções; no Lado A começa com Floripa, canção de Silvia Beraldo e
Rafael Bastos. A letra mostra uma homenagem a Florianópolis, falando das praias, da gastronomia e da natureza da cidade, numa versão bem jazzística. A música nos transporta a uma atmosfera de muita calma. A segunda faixa, Num Cantinho Qualquer, de Cláudio Alvim Barbosa (conhecido por Zininho), foi criada durante o programa de rádio Bar da Noite, da rádio Diário da Manhã. A letra retrata uma típica história de bar e de desilusão amorosa, onde alguém busca consolo na bebida. Essa canção se tornou uma das mais conhecidas do compositor e, na interpretação de Neide, conquistou a maioria dos fãs.
A terceira música, Rancho do Amor à Ilha (hino de Florianópolis), também de Zininho, já havia sido lançada em um compacto anos antes, mas Neide fez questão de incluí-la novamente neste álbum. A quarta canção, Boi de Mamão, está ligada ao folclore catarinense, especialmente à cultura de Florianópolis, onde o Boi de Mamão é muito valorizado. Essa música, que é bastante antiga, conta com a participação da cantora tocando pandeiro.
No Lado B, a faixa de abertura é a que dá título ao álbum, Eu Sou Assim, composta também por Zininho para Neide interpretar em um programa de rádio no início da década de 1960. Em seguida, temos Meu Segredo, de Gustavo Neves Filho, uma canção romântica que aborda um amor oculto. A terceira faixa é Florianópolis, de Aníbal Nunes Pires e Osvaldo Ferreira Melo, que destaca os pontos emblemáticos da cidade. A quarta canção, Saudade da Seresta, é de Antônio dos Santos Miranda, conhecido como Mirandinha, e foi dedicada a um amigo falecido, Daniel Pinheiro, considerado o maior seresteiro da Ilha de Santa Catarina.
A quinta faixa, Evocações, é mais uma composição de Osvaldo Ferreira de Melo, expressando um saudosismo em relação a tempos passados na cidade e lamentando as mudanças em Florianópolis. A última música do lado B é Você, de Sebastião Vieira, fundador e primeiro regente da Orquestra Sinfônica de Florianópolis, que compôs a canção em homenagem ao seu filho, que faleceu na infância (Acosta, 2024).
ENTRE NOTAS E LUTAS: A MÚSICA DE NEIDE MARIARROSA
Como podemos observar, o álbum é uma homenagem deixada pela artista à cidade e aos seus nativos habitantes. De maneira inevitável, ela expressa sua ligação e amor contínuo por Florianópolis. Cada música evoca a história, a cultura e o povo florianopolitano. Percebe-se que o objetivo era criar uma obra autenticamente local, na qual os compositores, músicos e arranjadores fossem nativos da cidade ou tivessem uma forte conexão com ela. Houve uma preocupação genuína em destacar o talento local, destacando a sua cena musical como significativa e mostrando a riqueza da sua musicalidade.
O álbum Eu Sou Assim, de Neide Mariarrosa, representa um momento importante na história da música popular brasileira, especialmente dentro do contexto do samba e da MPB. Neide, uma artista que começou sua carreira no início dos anos 1950, traz uma fusão de influências que refletem a diversidade cultural do Brasil. Historicamente, o final da década de 1980 foi um período de transição no Brasil, marcado pelo fim da ditadura militar e a redemocratização do país. Esse contexto favoreceu a busca por novas vozes e expressões artísticas que pudessem refletir as experiências e a identidade do povo brasileiro. Eu Sou Assim se insere nesse movimento, com letras que abordam temas de identidade, amor e a vivência cotidiana.
Musicalmente, o álbum destaca-se pela mistura de ritmos e estilos, e explora a versatilidade de Neide como cantora. A obra é uma celebração da cultura popular, com arranjos que valorizam tanto as tradições do samba quanto as novas tendências. Além disso, Neide Mariarrosa foi uma das artistas que contribuíram para dar visibilidade às mulheres catarinenses na música brasileira, um aspecto que se torna cada vez mais relevante em um cenário dominado por homens. O álbum reforça a ideia de que as vozes femininas são essenciais na narrativa da música popular e na construção da cultura nacional.
Eu Sou Assim é um reflexo do contexto social e político da época, uma celebração da diversidade cultural e uma afirmação da presença das mulheres na música, consolidando Neide Mariarrosa como uma artista significativa dentro do panorama musical brasileiro e principalmente do Sul do país.
Referências
ACOSTA, Virginia Calazans R. Neide Mariarrosa, Vida e voz por resistência e ancestralidade em Florianópolis (1950 – 1994). Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Florianópolis, 2024.
CORONATO, Vívian de Camargo. Neide Maria Rosa (Mariarrosa), uma (bio)grafia entre Neides, Marias e Rosas. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes. Florianópolis, 2010.
DEPIZZOLATTI, Norberto. Ai que saudades de Neide. Entrevista concedida a Fernanda Perez e Taise Bertoldi. Florianópolis, 2008.
MEDEIROS, R. VIEIRA, L.H. História do Rádio em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 1999.
PEREZ. F., BERTOLDI.T. Ai que saudades de Neide. TCC – Curso de Jornalismo. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008.
Como citar este texto
ACOSTA, Virginia Calazans Ribeiro. Raízes Locais: a celebração de Neide Mariarrosa em seu único álbum. A música de: História pública da música do Brasil, v. 7, n. 1, 2025. Disponível em: https://amusicade.com/eu-sou-assim-1988-neide-mariarrosa/ Acesso em: