ATRAPALHANDO O TRÁFEGO, INCOMODANDO O PÚBLICO:
“CONSTRUÇÃO” (1971) – CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
Luís Felipe Machado de Genaro
Luís Felipe Machado de Genaro é mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente realiza o doutorado acadêmico no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Sob os holofotes do cenário novelesco que virou a Terra Brasilis, Chico Buarque de Hollanda encerrou a sua turnê Que tal um samba? no primeiro semestre de 2023, acompanhado de Mônica Salmaso, uma das grandes pérolas que a Música Popular Brasileira vem paulatinamente iluminando. Mônica e Chico formaram uma dupla divina, maravilhosa. Sucesso de público e crítica, a turnê resgatou a fortuna crítica do cantautor com pinceladas ácidas sobre a recente e atordoante realidade brasileira, encerrando já em momento vitorioso, com esperança em um porvir menos indigno e mais justo para os brasileiros de todas as estirpes. Chico compreendeu isso como poucos.
Em um de seus espetáculos finais no Tókio Marine Hall, em São Paulo – que tive a honra de assistir bem próximo ao cantor –, sorriu tão sinceramente acalantado, já no desfecho do show, dando-se por satisfeito. Nós, espectadores, compreendemos que estávamos agora em um outro momento da história. Em minha última resenha para o portal A Música De, a respeito de seu último álbum gravado, Caravanas (2017), citei um trecho da obra de José Wisnik sobre o cantautor, que reitero aqui: “Não é difícil perceber que, às vezes, Chico Buarque faz como se virasse, com uma canção, a página da História” (Wisnik, 2004, p. 243).
No álbum Caravanas, Chico compôs canções que conversavam diretamente com as temáticas e valores de nosso tempo, abordando o campo dos afetos, dos ódios políticos, das conflituosas relações de raça e de gênero, sem perder a ternura e o lirismo que lhe são característicos. Fruto de sua época e de sua realidade, Buarque marcou diferentes momentos da história da canção popular brasileira e suas composições tornaram-se verdadeiros artefatos culturais, abordados hoje com ares de “cult” ou “clássico”, resultando no escrutínio de diferentes pesquisadores dos mais variados campos das ciências humanas. Algo não muito distinto ocorreu nos efervescentes anos de 1970.
CONSTRUÇÃO E CENSURA
O álbum Construção, de 1971, seguiu à risca as palavras de Wisnik. Produzido por Roberto Menescal e gravado pela gigante Phillips, com o disco, Chico não apenas marcava território e delimitava algumas balizas temáticas de sua obra, como impôs-se – ou foi pressionado a impor-se – no cenário artístico e político como um dos antagonistas mais odiados pela ditadura militar brasileira, em seu período mais cruento e autoritário. Os tempos eram sombrios, e sim, era necessário cantar em tempos sombrios. Nas dez canções que compõem o álbum, a beleza rítmica, sonora e instrumental se enlaçam a um constructo poético-político de inestimável grandeza.
Detido uma vez, censurado e proibido de cantar algumas outras, após o Ato Institucional Nº 5, as coisas ficariam realmente complicadas. De acordo com Regina Zappa, “Chico ia para os shows e cantava músicas proibidas. Ou não cantava, porque a música estava proibida, e deixava o público cantar. De um jeito ou de outro, era chamado a depor – “virei freguês”, comentava” (Zappa, 2016). À época da composição, produção e gravação de Construção, Chico ficaria 14 meses exilado na Itália, entre 1969 e 1970, e depois retornaria fazendo barulho ao Brasil, como havia aconselhado o amigo Vinicius de Moraes. A palavra-cantada de Construção seria criada no clima de medo e tensão permanentes, momento em que a Música Popular Brasileira passava a ser um dos principais antagonistas do regime: a inimiga cultural número um da ditadura militar.
DEUS LHE PAGUE
A canção inaugural, Deus lhe Pague, tornou-se espécie de apêndice para os shows em que Chico cantava a faixa Construção – uma das obras-primas do compositor. Porém, ela própria guarda significados profundos daquele momento. Aliás, como parte de um pot-pourri surpreendente nos últimos espetáculos de Que tal um samba? (2022-23), a canção se fez presente para a alegria dos espectadores. Deus lhe Pague seria a continuação da historieta trágica de um operário da construção que vive a agonia de um cotidiano de dores e sofrimentos, opressões e pressões as mais diversas.
A velocidade das batidas e dos acordes, a rapidez com que passam os versos da canção, dão ao ouvinte a sensação de agonia com que a vida do pedreiro se desenrola:
“Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir/ Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir/ Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair/ Deus lhe pague/ Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir/ Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir/ E pelo grito demente que nos ajuda a fugir/ Deus lhe pague”.
Na canção, o trágico passa ao cômico com estranha facilidade, o trabalhador passa a agradecer pela miséria diária, por aquele espólio de existência e dignidade que ainda possui, justamente por não possuir mais nada além das moscas bicheiras, a mulher carpideira e a paz derradeira – da morte – que lhe aguarda, precocemente.
TODO DIA, TUDO SEMPRE IGUAL
Na faixa que segue, Cotidiano, a agonia que o tempo corrido das asperezas despertou no ouvinte após Deus lhe pague, é reavivada na relação batida que um sujeito nutre pela esposa, que “todo dia faz tudo sempre igual”, seguindo as batidas do relógio, de manhã, de tarde e de noite. O mesmo sujeito, por certo, faz tudo “sempre igual”, é sacudido, sorri e a beija, vai ao trabalho, pensa em parar, acabar com tudo, cala-se ao jantar feito pela amada – que não parece ser tão “amada” como imaginamos.
O sujeito, apesar de próximo e de guardar traços de intimidade evidentes com a mulher ao seu lado, sente-se, de algum modo, preso, encarcerado pelo calendário, pelos dias intermináveis que passam, repetindo-se sucessivamente – mesmo o sorriso de ambos é sempre, e para sempre, pontual. As marcas indeléveis e roedoras do tempo acabam mostrando suas facetas mais sombrias na canção.
Na terceira faixa, Desalento, o sujeito encontra-se desolado. Sentindo-se vencido pelos dias e arrependido pelas desgraças que cometeu, está sozinho. Se aos outros diz que morreu, para a sua amada almeja, de certa forma, renascer: “Diz que eu estive por pouco/ Diz a ela que eu estou louco pra perdoar/ Que seja lá como for, por amor/ Por favor, é pra ela voltar, sim”. Pede para que contem a ela, sim, que bebeu, caiu, que quase morreu, mas que se sente culpado. Mesmo na desolação, quer reatar o compromisso, o vínculo que parece desfeito. Ao final, não sabemos exatamente o que acontece, já que o sujeito desolado “entrega os pontos”, de uma vez por todas.
Construção, a quarta faixa que dá título ao álbum, é considerada uma das canções mais conhecidas e analisadas de Chico. Ela pode ser enquadrada no período específico descrito por Marcelo Ridenti: “onde o fatalismo deu lugar à esperança”, momento que tornou algumas canções autênticos “documentos de seu tempo” (Ridenti, 2014). Também podemos inseri-la no vasto repertório de canções engajadas que marcaram a América Latina da década de 1970. Canções que apresentavam a necessidade de mudança do presente, quer por meio de uma crítica radical quase sem perspectiva de futuro, quer por intermédio da proposta de um futuro libertador e vingativo, mesmo sob os escombros da incredulidade e da falta de perspectiva no presente autoritário.
A canção aborda o cotidiano de desalento de um pedreiro da construção de alguma megalópole tropical: sujeito comum, ordinário, mais uma peça da enorme engrenagem capitalista – a “tralha chamada Brasil” sobre a qual Chico brincaria anos depois ao compor Linha de Montagem (1980). Seria muita pretensão (e o espaço é curto) analisarmos cada verso que se ergue como uma muralha político-poética em que a argamassa é o sangue e as aflições do operário.
A ARTE E A VIDA
A década de 1970 veria massivas greves de operários da construção civil nas mais diferentes regiões do país, os mesmos que ergueram, nos braços e nas costas, as “estranhas catedrais” (Campos, 2014) do período ditatorial. Na faixa Construção, com métrica e rítmica inigualáveis, Chico imortalizou a existência laboral do trabalhador como nenhum outro compositor latino-americano, aproximando-se, talvez, de grandes nomes da cantautoria do continente, aqueles que trouxeram à baila o sujeito operário como protagonistas da canção popular, como o chileno Victor Jara e o uruguaio Daniel Viglietti.
No entanto, o operário não ganha protagonismo por ser personagem ativo de algum processo revolucionário, como em Jara e Viglietti, mas por ser mais um indivíduo atordoado pelo cotidiano acachapante que lhe é outorgado. O desfecho? Todos conhecemos: “morreu na contramão, atrapalhando o público”. Estranho e incômodo que surjam, vez ou outra, fotografias de cadáveres de trabalhadores assassinados pela polícia nas periferias das grandes cidades, muitas vezes estirados nas ruas, ao lado de crianças, em frente a estabelecimentos comerciais à luz do dia e “atrapalhando” o tráfego humano nas calçadas, dada a barbárie naturalizada da máquina de moer gente chamada Brasil.
Em Cordão, Chico expressará a incredulidade que sente perante o momento vivido, agora de forma mais ativa e menos tétrica. O compositor quer ser ouvido, quer cantar, gritar, seguir – quer, finalmente, sorrir. Talvez nessa faixa, de longe, Chico mostre a sua face mais otimista perante a realidade, já que a mesma vem acompanhada de um espírito coletivo que as outras não denotam: “Ninguém/ Ninguém vai me ver sofrer/ Ninguém vai me surpreender/ Na noite da solidão/ Pois quem/ Tiver nada pra perder/ Vai formar comigo o imenso cordão/ E então quero ver o vendaval/ Quero ver o carnaval sair”. Em união, de mãos dadas, formar-se-á um imenso cordão que romperá as correntes da incredulidade e do pavor, só assim conseguirá cantar e sorrir.
Nas faixas Olha Maria, Valsinha e Acalanto, Chico recupera elementos líricos e muito íntimos, fazendo e desfazendo relações afetuosas recheadas de destemperos, alegrias momentâneas e abissais tristezas, instantes de aflição e pavor, onde o período tempestuoso que vivia e compunha evidenciava-se com clareza – assim como a ânsia por um amanhã distinto e menos carregado de dissabores. As canções pendem sempre entre uma desesperança particular e o momento da catarse coletiva onde “toda a cidade vai se iluminar”. Ao gestar a palavra-cantada, misturam os mais diferentes planos da criação poética: o “pessoal e social, afetivo e histórico, sexual e político” (Meneses, 2000, p. 81).
Na conhecida Samba de Orly, composta em parceria com Vinícius e Toquinho, a temática do autoexílio dá a tônica aos breves versos recheados de ironia. O desterro ocorreria em razão de uma temporada de shows na Itália e que acabou estendendo-se indefinidamente: “Pede perdão pela duração/ Dessa temporada, mas não diga nada/ Que me viu chorando/ E pros da pesada diz que vou levando!”. Entre os batuques, o som da cuíca e fugindo do “frio” do Rio de Janeiro, o sujeito pede perdão ao amigo pela viagem repentina, pela omissão um “tanto forçada” daquela situação desagradável.
O PASSADO-PRESENTE DAS CANÇÕES BUARQUEANAS
Regina Zappa relata o clima daquele momento nos estertores da sua linha evolutiva da Música Popular Brasileira: “Geraldo Vandré fugiu para o exílio no Chile e na França, e, para voltar, em 1973, em plena ditadura, foi obrigado a gravar, após penosas negociações, uma declaração renegando a sua música e apoiando o regime militar. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos, interrogados, confinados na Bahia e depois exilados na Inglaterra. Edu Lobo deixou o país para estudar orquestração em Los Angeles. Chico, na Itália, foi convencido a adiar a sua volta” (Zappa, 2016, p. 100).
Na canção Minha História, Chico interpreta ao português a composição do italiano Lucio Dalla, de 1943, narrando a relação amorosa de uma mulher com um marinheiro – sujeito aventureiro e andarilho que após uma noite ardorosa de amor, engravidou-a, deixando a mulher “parada, pregada na pedra do porto/ Com seu único velho vestido, cada dia mais curto”. Abandonada, a paixão daquela noite resultaria em uma pequena criança que seria chamada “Jesus”, o “Nosso Senhor” – por amor ou ironia, como conta. O sujeito cresceria e viveria, assim como o nazareno, rodeado de figuras comuns, boêmios, bêbados: “ladrões e amantes”. Se o Jesus de Dalla e Buarque seria dotado de poderes sobre-humanos, não sabemos, mas que viveria exatamente como o judeu revolto das histórias bíblicas, isso parece não se distanciar das anedotas da religião.
Finalmente, esclareçamos que os elementos e valores engajados do álbum Construção apartam-se de uma militância panfletária, assim como o seu cantautor distanciou-se de atitudes e polêmicas desnecessárias durante sua trajetória de vida. Chico Buarque não parte da política para construir a sua crítica, a sua poética e a sua performance, mas desemboca nelas. Como em Caravanas, com a ascensão da extrema-direita, e a composição de um single que sintetizou as aflições brasileiras sob a boçalidade do bolsonarismo em Que tal um samba?, Buarque construiu-se como uma das maiores personalidades da história da canção popular brasileira e latino-americana com Construção, na década de 1970. Feito, no mínimo, admirável.
Referências
MENESES, A. B. de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Ed. Haucitec, 2000.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora UNESP, 2014.
WISNIK, José. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo, Travessa, 2004.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque para todos. Rio de Janeiro: Ímã Editora, 2016.
Como citar este texto
GENARO, Luís Felipe Machado de. Atrapalhando o Tráfego, Incomodando o Público: “Construção” (1971) – Chico Buarque de Hollanda. A música de: História pública da música do Brasil, v. 6, n. 2, 2024. Disponível em: https://amusicade.com/construcao-1971-chico-buarque/ . Acesso em: 27 mar 2025.