Erasmo Carlos e um “convite para nascer de novo”
Carlos Eduardo Pereira de Oliveira
Carlos Eduardo Pereira de Oliveira é doutorando em História do Tempo Presente, pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisador de história da música e tem no rock sua paixão e especialidade. Trabalhou com a cena de rock dos anos 1980 em Florianópolis, durante seu mestrado. Atualmente no doutorado, pesquisa a história da MTV Brasil.
A ideia de nostalgia perpassa o tempo presente. Voltar nossos olhos ao passado, desejar estar presente em um período que não aquele vivido e beber de referências desse tempo são algumas (poucas) formas de experimentar uma sensação nostálgica. Se pararmos para pensar, muito da trajetória de nossas vidas é permeada por ela: sua calça jeans é inspirada naquelas dos anos 1980; você escuta músicas dos anos 1960 e brada o quão bom deveria ser viver naquele tempo. Mas, para além desses rasos exemplos, como conseguimos enxergar e conviver com a nostalgia no nosso cotidiano? Erasmo Carlos nos dá algumas pistas, pincelando seus diferentes tempos no recente álbum Amor é isso (2018), lançado pela Som Livre.
Desde A Pescaria, seu álbum solo de estreia, temos mais de 50 anos dedicados à música, com 31 discos de estúdio – a maioria com o rock ‘n roll sendo sua principal fonte de inspiração. É figura carimbada quando falamos do gênero no Brasil, sempre citado quando o assunto vem à tona, e está no panteão dos grandes roqueiros tropicais. Sem sombra de dúvidas, trata-se de um dos maiores artistas brasileiros. Mesmo com todas essas credenciais, a figura do cantor era nebulosa para mim. Passei a conhecê-lo melhor a partir de Amor é Isso, o que me deixa em uma encruzilhada: como falar de um artista que conheço na superfície? Entretanto, esse mesmo movimento poderia oferecer uma vantagem, uma vez que não carrego as afeições de um fã. A aproximação e o distanciamento com o objeto é ponto de discussão incessante na historiografia, sendo adensada quando trabalhamos na ligação entre música e história. A primeira carrega diferentes estruturas sentimentais, que podem despertar diferentes emoções ao ouvir, e que a segunda, em grande medida, tenta nos privar. Ligando a essas diferentes estruturas de afeto que a música pode nos causar, a escuta de Amor é Isso perpassa pelo diálogo com a trajetória de Erasmo Carlos e da música brasileira.
Quando colocado em perspectiva histórica, Amor é Isso conduz ao deslocamento entre diferentes temporalidades. A narrativa do álbum é ousada, assim como Erasmo Carlos: contar às novas e velhas gerações o que é o amor. Como um oráculo da paixão, o artista nos conduz, ao longo das doze músicas, uma visão apaixonada pelo ato de viver e redescobrir, no alto de seus 77 anos, o que é amar e ser amado. Sentimentos que transitam pela vida humana, com diferentes intensidades a depender do tempo. A vida de Erasmo não foi diferente. Ele lidou com amores, excessos, mortes e redescobrimentos. Uma trajetória recheada de gente aberta e mundos desertos, para descobrir que era preciso dar um jeito, amigo. Entre os discos Sonhos e Memórias (1972), Mulher (1981) e Gigante Gentil (2014), Amor é Isso surgiu como um grito de vida, onde o artista explora outras vertentes musicais e dialoga com as suas temporalidades.
Passagem do tempo
Porém, o que são temporalidades? Vivemos em um período de sobreposições de tempo. Ela insere sujeitos que dialogam individualmente e coletivamente com o sentimento de passagem do tempo. Em outras palavras, conseguimos perceber o tempo passando, e temos diversas formas de senti-lo, de identificar esse fenômeno. Podemos senti-lo através das formas mais corriqueiras de nosso cotidiano, como no atraso causado pelo trânsito, e a sensação de estar perdendo tempo; quando estamos entediados ou esperando alguém, e o tempo parece não passar nunca. Exemplos rápidos, mas que dão conta dessa dimensão de percepção do transcorrer temporal. Nessa linha de análise, as temporalidades dialogam tanto com uma esfera afetiva quanto histórica, tornando um via de análise potente para os usos da música na história.
Esse sentimento de passagem do tempo é algo próprio do ser humano, e abre a possibilidade de compreender a sua existência enquanto um sujeito histórico e em constante deslocamento. Erasmo Carlos é um ser em trânsito. A sua maneira, dialoga com suas formas de perceber o tempo, mesmo que tente manter sua fama de mau. A primeira música do álbum, Convite para Nascer de Novo, nos mostra essa faceta. Compreendemos a progressão afetiva do cantor, se deslocando de “um tempo em que eu chorava quase todo dia”, para “uma plenitude mansa que acendeu a chama”, terminando com um simples “foi assim”. A canção sem refrão – logo, sem uma parte que remeta a repetição – auxilia nessa ideia de caminhar, como em uma progressão de sentidos. As notas graves do piano ao final de cada frase, no início da música, e seguido pela entrada gradual de outros instrumentos, como contrabaixo e bateria, também nos remetem a esse deslocamento. Podemos compreender essa narrativa de Erasmo Carlos, Marisa Monte e Dadi Carvalho (compositores de Convite para Nascer de Novo), enquanto um exercício de passagem do tempo, em que as articulações de padrões musicais e poéticos conferem uma percepção temporal.
Ao longo do álbum, Erasmo Carlos caminha por seus próprios tempos e formas de percebê-lo. Adensando nessa perspectiva, o artista tende a articular uma série de referências, seja no padrão musical ou no poético, de sua trajetória. Ou seja, ele dá indícios da percepção do passado, em uma narrativa do presente, esculpindo suas identidades ao relacioná-las com o tempo. O ato de narrar as reconfigura, em que esse movimento confere ao interlocutor um conjunto de identificações, calcadas, também, pela memória. Narrar é atualização de memórias, que as desenham e dão sentido no presente. O passeio musical pretendido pelo artista é permeado pela sua trajetória, chocando diferentes temporalidades e memórias, a fim de elaborar uma narrativa que as conforme. Novo Sentido, quinta canção do álbum, traz algumas sensações que dialogam com essa particularidade. No transcurso de escuta, ela aparece como um convite para caminhar pela musicalidade do Erasmo da Jovem Guarda, uma faceta que sempre esteve junto ao artista, por vezes deixada de lado, mas nunca esquecida.
Período rico da história da música brasileira, a Jovem Guarda nos brindou com Roberto Carlos, Wanderléia, Erasmo Carlos e mais uma série de outros artistas, alcançando grande sucesso em meados da década 1960 – marcada também pelos primeiros anos de Ditadura Militar no país. Nas telas da TV Record, o iê-iê-iê ditava o que tínhamos de mais popular no rock brasileiro, além de influenciar o comportamento de uma parcela da população jovem no país. Em um momento de endurecimento em diferentes esferas, a comportamental aprecia como uma das principais atuações do regime militar. A intensificação da repressão, após o Ato Inconstitucional nº5 em 1968, veio em mesmo momento de queda da popularidade do show televisivo. Inserido em um cotidiano de controle, o fim do programa parecia marcar o encerramento de uma experiência. Entretanto, vimos outros movimentos musicais surgirem, com seus próprios anseios e problemas. Erasmo, no turbilhão de sentidos pós-68, entra na década de 1970 com Erasmo Carlos e os Tremendões, se afastando da estética e musicalidade jovem guardista, e flertando com outras acepções do rock. Mesmo assim, conseguimos enxergar fraturas nessa narrativa, como, por exemplo, canções que resguardam diálogos com sua experiência.
Seu próprio apelido é uma marca temporal. O mito de nascença da conta de sua grife de roupa no período de Jovem Guarda: enquanto a de Roberto Carlos era Calhambeque, e de Wanderléia, Ternurinha, a dele era Tremendão. A circulação de produtos com sua cara e esse nome, conferiram a Erasmo um apelido. Mesmo com o fim do programa, ele permaneceu no imaginário das pessoas, sempre se referindo a ele dessa forma. Hoje, Tremendão remete a um homem marcado por suas experiências, que teve no rock uma de suas vozes. Mesmo se afastando em Amor é Isso, a verve roqueira de Erasmo não se perdeu. O início de Convite para Nascer de Novo, inclusive, me remeteu ao início de Nothing Else Matters, da banda estadunidense Metallica. Em Novo Sentido, composta em conjunto com Samuel Rosa, vocalista do Skank, a base roqueira também se faz presente.
Música e modernidade
Porém, talvez seja nos afastamentos que conseguimos enxergar com mais profundidade as temporalidades de Erasmo Carlos. Em Termos e Condições, o artista explora o esvaziamento de sentimentos da modernidade, colocando a relação entre humano e internet como a sua principal causa. Ao tratar de um tema da atualidade, o artista faz uso de jargões comuns no mundo digital. Entre gadgets, snaps e chats, Erasmo denuncia sua referência em tecnologia: “tudo é meio Jetsons”. A referência ao desenho animado dos anos 1960 (que remete a uma família em um futuro tecnológico, com carros voadores e robôs desempenhando funções básicas), diz respeito a própria experiência do artista frente a aceleração do tempo. Essa característica se faz percebida no decorrer da canção, mesmo em uma melodia mais calma e cadenciada, aproximando do soul. Composta em conjunto com Emicida, inclusive com o rapper fazendo uma participação, Termos e Condições se torna uma denúncia a aceleração temporal, porém sem pressa de falar sobre. Tranquilamente, Erasmo alerta que “putz, o tempo passou”.
Esse jogo de palavras, que abarca noções temporais, é evidente nas músicas de Amor é Isso. Talvez seja para um historiador do tempo presente, que tem por preocupação analisar os diferentes estratos de tempo que saltam aos olhos. Passado, presente e futuro são articulados por Erasmo Carlos, tecendo um diálogo com suas memórias, deixando as suas experiências nuas, com a vontade de deixar claro sua própria concepção de amor. Afinal, o artista se considera um apaixonado pela vida, tendo “tanto amor que deveria pagar para viver”, como canta em Pagar para Viver. Ou, também, ao lembrar que “o tempo parecia que não ia mais passar pra gente”, início de Parece que foi Hoje. Alguns indícios de que Erasmo articula, em sua narrativa, diferentes formas de sentir a passagem do tempo.
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O sentimento de nostalgia pode saltar aos nossos olhos em dois momentos: Novo Love, nona canção do álbum, e Não Existe Saudade no Cosmos, a penúltima. A primeira nos remete às músicas dos anos 1950, cadenciadas e com vozes agrupadas. Em entrevistas, Erasmo deixa claro que esse tipo de música fez parte de sua escola na arte, e trazê-la nesse momento confere uma âncora com o passado. Além disso, a canção é originalmente composta por Tim Maia (em inglês, e adaptada ao português por Erasmo), um de seus grandes amigos, e seu professor de violão no Rio de Janeiro do final dos anos 1950 e início dos 1960. O tom professoral da canção traz essas experiências, como em uma referência ao passado, narrando no presente.
No que diz respeito à segunda, remeto às suas canções pós-Jovem Guarda, em suas produções mais profícuas nos anos 1970, como Erasmo Carlos e os Tremendões, Sonhos e Memórias e Carlos, Erasmo. Composta em conjunto com o músico baiano Teago Oliveira, vocalista da banda Maglore, e um dos novos artistas em crescimento na cena brasileira, a canção pode ser compreendida como uma ponte entre o passado e o presente. Remetendo a musicalidade dos anos 1970, Erasmo traz um jovem artista, para dar a ela outros substratos temporais. Essa confluência resulta em uma conversa sobre a saudade, tema caro ao artista nesse disco.
Após Pagar para Viver, última canção do álbum, a sensação que a escuta deixa, em um primeiro momento, é a de um sujeito apaixonado pela vida. Aprofundando esse exercício, compreendemos diversas facetas do artista. Erasmo Carlos é um sujeito múltiplo, em diálogo constante com seu passado e seu futuro, transformando, no presente, a narrativa que coloca sobre ele mesmo. Um indivíduo marcado pela passagem do tempo. Em consonância com a história da música brasileira, com seus estratos temporais próprios, a trajetória do cantor opera em conjunto, marcando-a e sendo marcada. Nostálgico, alegre, roqueiro e conversador, Erasmo conforma as características de um homem singular, que tem na canção a sua forma de narrar o tempo. Mas, sempre, sem perder a fama de mau.