“NA GALERIA DO AMOR É ASSIM”: OS ENTENDIDOS E O AMOR DISSIDENTE NA OBRA DE AGNALDO TIMÓTEO
Matheus Bomfim e Silva
Matheus Bomfim e Silva é graduado em História pela Universidade Federal do Ceará; pesquisa os artistas “cafonas” e a construção da ideia de MPB. É colaborador do IMMuB – Instituto Memória Musical Brasileira e membro do grupo de estudos História e Documento: reflexões sobre fontes históricas (UFC).
Agnaldo Timóteo – que infelizmente faleceu em 2021, por complicações causadas pela Covid-19, ao lado de artistas como Waldick Soriano, Nelson Ned, Odair José, entre outros – foi um cantor romântico e tinha uma “voz de trovão” que fez bastante sucesso na década de 1970, como os demais citados. Contudo, esse grupo de artistas tão famosos entre as camadas subalternas do nosso país foi classificado como cafona e alienado por parte da intelectualidade do período da ditadura civil-militar. Por muito tempo, esses artistas foram desprezados pela historiografia musical brasileira.
Na década de 1960 foi criado o Centro Popular de Cultura (CPC) pela União Nacional dos Estudantes (UNE), com o objetivo de participar dos debates públicos, como a questão do nacionalismo então em voga. Para esses universitários, de maneira geral, o povo era visto como uma massa alienada que precisava ser guiada rumo à revolução. Ou seja, a arte engajada teria o papel de despertar essa massa popular e qualquer ação política fora desse modelo era tratada como alienada.
Em 1965, o estrondoso sucesso de Roberto Carlos com Quero que vá tudo pro inferno agitou ainda mais as discussões sobre a música brasileira e seu papel, lembrando que o Golpe de 64 intensificou esses embates. Nesse mesmo período, tivemos a “Era dos Festivais” e, de acordo com Marcos Napolitano, foi a partir desses festivais que o termo MPB se cristalizou no imaginário do público A atuação do CPC e a Era dos Festivais não foram determinantes para a exclusão dos “cafonas” da sigla, mas ajudam a ter uma ideia dos embates que colaboraram para cristalizar uma determinada memória sobre a Música Popular Brasileira.
Um dos argumentos que se usava para taxar os já citados artistas românticos de alienados era que sua produção não discutia as questões sociais do Brasil. Entretanto, veremos que Agnaldo Timóteo discutiu um tema bastante pertinente em seu repertório, a homossexualidade.
ONDE A GENTE QUE É GENTE SE ENTENDE
Agnaldo Timóteo em 1975 lança o disco Galeria do Amor, o primeiro do que Paulo César de Araújo chamou de “Trilogia da Noite”, formada também por Perdido na Noite, de 1976, e Eu, pecador, de 1977. A faixa-título, composição do próprio Agnaldo, abre o disco:
Numa noite de insônia saí
Procurando emoções diferentes
E depois de algum tempo parei
Curioso por certo ambiente
Onde muitos tentavam encontrar
O amor numa troca de olhar
Na galeria do amor é assim
Muita gente à procura de gente
A galeria do amor é assim
Um lugar de emoções diferentes
Onde a gente que é gente se entende
Onde pode-se amar livremente
(A Galeria do Amor, 1975, Agnaldo Timóteo)
O eu lírico da canção está procurando experiências diferentes e se interessa por um lugar onde percebe que poderia encontrar o que busca. Originalmente o nome da canção e do disco seria Galeria Alaska, famoso reduto LGBTQIA+ do Rio de Janeiro, mas o departamento de marketing da gravadora EMI-Odeon achou melhor não usar o nome para evitar problemas com a censura e mesmo com o público. Vale lembrar que era comum a sociedade civil cobrar do governo censura em obras e produções culturais.
Durante a ditadura civil-militar a homossexualidade foi um tema que preocupou os militares. Para exemplificar, podemos citar o documento que mostrava o descontentamento do diretor do Serviço Nacional de Informação (SNI) com o programa de Flávio Cavalcanti por ter incluído a participação de “um travesti”. O diretor demonstrou repúdio ao “homossexualismo”, que o quadro no programa teria sido “chocante” por apresentar um “pederasta passivo”, como foi discutido por Jacqueline Ribeiro Cabral. O regime ditatorial perseguiu homossexuais por serem considerados como sexualidade dissidente e até entre os movimentos de esquerda do período o preconceito era constante, como debatido por Renan Quinalha em “Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT”.
Agnaldo Timóteo, em uma das apresentações no programa do Chacrinha, na TV Globo
ENTRE ENTENDIDOS
“Entendido” era uma gíria da época para se referir às pessoas gays. Na letra de A Galeria do Amor o termo é utilizado, deixando evidente a conotação do que é cantado. Outra faixa que merece ser citada é Antes e depois do Amor; autoria de Mita, é mais uma daquelas canções sobre um amor rasgado, onde Agnaldo mostra toda sua potência vocal:
Amanheceu, o Sol brilhou
Tudo é canção, estou ao lado seu
Pra que chorar se tudo é lindo
A dor se foi, que vontade de viver
É o amor entrando pela porta
É meu amor e nada mais importa
Eu quero viver
Eu quero viver
Mas de repente escureceu
Lá vem o pranto rolar dos olhos meus
Sai a alegria, entra a tristeza
Volta a saudade, que vontade de morrer
(Antes e depois do amor, 1975, Mita, interpretada por Agnaldo Timóteo)
Nessa composição temos um personagem que mostra o quanto é feliz ao lado da pessoa amada, que tudo é alegria, não existe dor, mas quando a pessoa amada vai embora a tristeza domina. Agnaldo cantando “amor” e “eu quero morrer” deixa a letra mais dilacerante, uma incrível demonstração de sua qualidade como intérprete.
A faixa A solidão me apavora, composição de Eliane e Wagner Montanheiro, continua o tema da perda amorosa:
Meu quarto escuro e sombrio
Fica mais negro e vazio
Quando não estás aqui
As noites longas e frias
Ficam mais longas ainda
Quando não estás aqui
E eu lutando com o sono
Passo as mesmas perguntando
Onde será que eu errei?
Pois, que eu errei é um fato
E agora só no meu quarto
Eu vejo que fracassei
(A solidão me apavora, 1975, Eliane e Wagner Montanheiro)
A faixa Quero ser seu amigo é uma composição de outro grande artista da nossa música, Benito Di Paula:
Se você precisar de um amigo, pode me procurar
Se você precisar de uma ajuda, também posso ajudar
Se você precisar de um conselho, vem vamos conversar
Mas não fale outra vez de amor, que eu não vou suportar
(Quero ser seu amigo, 1975, Benito Di Paula)
O disco encerra com Preciso tanto de você, o desabafo de uma pessoa que perdeu o seu amor e perdeu o rumo de sua vida:
Sofro, eu não achei o meu caminho
Não posso mais ficar sozinho
Preciso tanto de você
Choro, as minhas noites são tão frias
Eu vi morrer a alegria
No instante em que perdi você […]
Não sei sinceramente o que seria
Ao te ver na minha frente a me olhar
Mas eu sei que minha vida eu daria
Pra você ficar
(Preciso tanto de você, 1975, Eliane e Ivan Santos)
A VIDA REALMENTE É DIFERENTE, QUE DIZER, AO VIVO É MUITO PIOR.
Agnaldo Timóteo cantou muito bem os sentimentos amorosos, inclusive daqueles que eram marginalizados. Porém, Agnaldo era uma pessoa contraditória, como bem mostra o texto de Bruno Azevêdo na Elástica. A mesma pessoa que escreveu e cantou as experiências sexuais dissidentes falava que não gostava de ver dois gays se beijando na rua, dizia que não houve ditadura militar no Brasil e que nunca teve problema com os milicos. Para Timóteo houve uma intervenção militar com apoio da sociedade civil e ditadura mesmo é Cuba (assim como pensava seu amigo Nelson Ned).
Agnaldo Timóteo representou muito bem as contradições da sociedade brasileira, era extremamente religioso, para quem a família era uma instituição sagrada, ao mesmo tempo em que cantava abertamente os amores homossexuais. Agnaldo Timóteo começou a carreira política em 1982, foi eleito deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro, em 1985 nas eleições indiretas votou em Paulo Maluf. Quando Lula virou presidente, o cantor se declarou lulista ao passo que em 2011 foi contra a criação da Comissão da Verdade, projeto da então presidente Dilma Rousseff.
Um dos argumentos que se usa para desmerecer artistas populares e românticos como Agnaldo Timóteo é que esses seriam conservadores, um dos pontos que ajudam a entender sua exclusão da historiografia musical do período da ditadura civil-militar é que seriam adesistas e autores de uma produção alienada.
A verdade é que a vida real é complexa, Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano e Nelson Ned, por exemplo, foram sim pessoas extremamente reacionárias mas não para aí, o seu público era reacionário. A mesma classe trabalhadora que sofre com diferentes opressões todo dia acaba endossando e defendendo esse mesmo sistema que as oprime. Para usar um termo marxista, estamos falando da ideologia, a classe dominante não mantém seu poder apenas com a força mas também com o imaginário, nas ideias. A classe trabalhadora tem consciência que é explorada, mas não é difícil quebrar o véu da ideologia de que as coisas são como são porque assim a natureza, ou para se prender a religiosidade , Deus quis.
E mesmo com todas as limitações, artistas como Agnaldo Timóteo em alguma medida questionaram os dogmas da sociedade brasileira. Enquanto a polícia reprimia a comunidade LGBTQI+, Timóteo estava lá cantando sobre a solidão e as dores dessas pessoas que até hoje são marginalizadas.
O Brasil é o país onde mais se consome pornografia trans e é também o que mais mata pessoas trans, de acordo com dados divulgados pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas. O brasileiro é o mesmo que no Carnaval “se veste” de outro gênero mas fala que só existe homem e mulher, trai a esposa mas fala que defende a família tradicional. O capitalismo é feito com base em contradições. Não devemos jogar as contradições para debaixo do tapete, é preciso entendê-las e lutar para acabar com as opressões. Por isso, entre outros motivos, é importante discutir o repertório desses artistas românticos, eles refletem muito bem a realidade complexa do nosso país
Referências
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. 462 p.
AZEVÊDO, Bruno. O último cantor do vozeirão. Elástica, 2021. Disponível em: https://elastica.abril.com.br/especiais/agnaldo-timoteo-morte-entrevista-homossexualidade-homofobia. Acesso em: 02 dez. 2023.
AZEVÊDO, Bruno. O último cantor do vozeirão. 2021. Elaborado por Elástica. Disponível em: https://elastica.abril.com.br/especiais/agnaldo-timoteo-morte-entrevista-homossexualidade-homofobia. Acesso em: 13 fev. 2025.
BOMFIM, Matheus et al. Imorais e Indecentes: Odair José e Agnaldo Timóteo e a Subversão da Moral e dos Bons Costumes Pela Música Cafona. Revista Historiador , n. 14, 2021.
CABRAL, Jacqueline Ribeiro. ARQUIVOS DA REPRESSÃO: representações sociais da diversidade sexual e de gênero na ditadura militar. SEMINÁRIO DE SABERES ARQUIVÍSTICOS, v. 8, p. 79-91, 2017.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. 160 p.
QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade lgbt. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. (Coleção arquivos da repressão no Brasil).
FONTES
TIMÓTEO, Agnaldo. A Galeria do Amor. Rio de Janeiro: Emi-Odeon, 1975
Como citar este texto
SILVA, Matheus Bomfim e. “Na galeria do amor é assim”: os entendidos e o amor dissidente na obra de Agnaldo Timóteo. A música de: História pública da música do Brasil, v. 7, n. 1, 2025. Disponível em: https://amusicade.com/galeria-do-amor-1975-agnaldo-timoteo/ . Acesso em: