GALOS DE BRIGA: ENTRE A CRÍTICA, A CRÔNICA E O SUBLIME
Lienne Lyra
Lienne Lyra é mestranda em Letras – Literatura Brasileira pela UERJ. Possui bacharelado em Música – MPB/Arranjo pela UniRio (2021). Além da pesquisa em canção, Lienne é compositora e cantora. Lançou seu primeiro álbum, Porta-chuva, em 2018. Também tem um EP lançado (Canto de sereia, 2020) e um single (Barco de fita, 2022). Está na fase de finalização de seu segundo álbum, Guanabara São Francisco.
Galos de briga é um daqueles discos que nos desconcertam de ponta a ponta. Como de costume na vasta obra de João Bosco e Aldir Blanc, tem músicas para rir, para chorar, para se emocionar de todas as maneiras. Lançado em 1976, o LP de João Bosco é apenas o terceiro de uma série de 13 discos que praticamente só têm canções assinadas pela dupla. Entre faixas como O ronco da cuíca e Incompatibilidade de gênios, o LP Galos de briga confirmou o sucesso do disco anterior, Caça à raposa, que alçou João Bosco à fama um ano antes.
Em ambos os discos, e como é recorrente na obra de Blanc e Bosco, temos a predominância de sambas e boleros. Eles embalam letras sobre o dia a dia do suburbano carioca, crônicas de amores e desamores, belezas sórdidas do cotidiano e perfurantes críticas sociais. Esses temas encontram continuidade com o universo de Caça à raposa e se adensam em Galos de briga. Tárik de Souza afirma, no prefácio ao livro O som do vinil: Galos de briga, que o LP de 76 “é o disco da afirmação definitiva da dupla como uma das mais importantes da MPB […]. O polimento da dupla deu-se disco a disco até chegar aos faiscantes Galos de briga” (Bosco et al., pp. 15-16).
Por “polimento”, o autor se refere à sofisticação alcançada pelo disco de 1976 em termos de letras e melodias, além de harmonias, levadas rítmicas, arranjos, performances vocais e outros elementos. Entre eles, destaca-se a riqueza temática que perpassa o álbum, que aprofunda o universo de Caça à raposa e chega a “faiscar”. Nas 12 faixas do LP, identifiquei três grandes eixos temáticos, aos quais dei os nomes “A raiva, a fome e a briga”, “O casal suburbano” e “O sublime da sarjeta”. O esquema abaixo demonstra os eixos e suas subdivisões, sempre ressaltando que os temas se interpenetram e que esta é apenas uma de múltiplas possibilidades de leitura.
A RAIVA, A FOME E A BRIGA
O primeiro eixo tem viés de crítica social e apresenta duas abordagens distintas: a primeira, “Coisa dos home”, fala abertamente da realidade precária do trabalhador brasileiro no samba O ronco da cuíca e na marcha-rancho O rancho da goiabada. Já na segunda abordagem, “Brasil-Espanha”, a crítica à ditadura militar se esgueira por dentro de uma alegoria hispânica e se deixa entrever em metáforas capazes de driblar a censura do regime, nos boleros O cavaleiro e os moinhos e Galos de briga, a faixa-título.
Sobre o sub-eixo “Coisa dos home”, podemos destacar sua forte identificação com a temática do LP Caça à raposa, de 1975. Quanto à verve de crítica social, encontrei nas faixas 12 e 6 de Galos de briga, O rancho da goiabada e O ronco da cuíca, certa vocação em comum com O mestre-sala dos mares e De frente pro crime, faixas 1 e 2 de Caça à raposa. Podemos argumentar, por exemplo, que a crítica à fome e à precariedade da vida do trabalhador feita em O ronco da cuíca aprofunda a mensagem contrária à ditadura contida em O mestre-sala dos mares. Isto porque a fome é um resultado perverso e generalizado de tudo aquilo contra o qual lutamos — cristalizado naquele momento nos horrores e desigualdades da ditadura.
Enquanto mestre-sala escamoteia a crítica ao regime ditatorial nas imagens do santo ensanguentado, do censurado almirante negro e da farofa e das baleias; os versos “roncou, roncou / roncou de raiva a cuíca / roncou de fome” são contundentes na repetição do verbo roncar. A aliteração em /r/ alude ao barulho da barriga vazia; a cuíca entra na metade da música e não para de improvisar os pulos de um estômago com fome.
Já em O rancho da goiabada, além da clara afinidade com O ronco da cuíca devido à temática da fome e da precariedade da vida do trabalhador, é possível a aproximação com De frente pro crime. O governo e a sociedade como um todo não fazem questão alguma de saber se o trabalhador vive ou morre, desprezando o corpo e a existência dos boias-frias, dos flagelados, dos paus-de-arara e do corpo estendido no chão. Ambas as canções denunciam, assim, a necropolítica (Mbembe, 2018) da ditadura e os horrores do capitalismo, sintetizados na imagem dos faraós embalsamados.
Já no sub-eixo “Brasil-Espanha”, somos levados para a Península Ibérica em duas canções que escaparam à censura, mesmo trazendo forte crítica ao regime militar camuflada no exotismo de uma Espanha moura. Em O cavaleiro e os moinhos há uma citação, já no título do bolero, da mais famosa passagem de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Os compositores misturam universos bélicos, sobrepondo um Brasil suburbano e periférico ao cenário dourado da cavalaria espanhola. Podemos ver no trecho destacado como os elementos baderneiro e malandramente se contrapõem à figura do cavaleiro, para depois fundirem-se em uma só figura armada até os dentes, pronta para enfrentar os moinhos do regime militar.
Já na faixa Galos de briga temos um poema rubro musicado por João Bosco, que trata da coragem dos oprimidos e da vergonha dos opressores. Algumas obras de pintores espanhóis são evocadas pelas imagens da canção: na capa e na bandarilha do toureiro podemos enxergar no vermelho A morte do toureiro, de Picasso (1933). Na visão dos horrores da guerra, evocamos Guernica (1937). De Goya, podemos entrever o Três de maio de 1808 em Madrid (1814) na imagem dos fuzilamentos e das manchas de sangue no muro.
A morte do toureiro, de Pablo Picasso (1933)
Três de Maio de 1808, de Francisco de Goya (1814)
Guernica, de Pablo Picasso (1937)
O CASAL SUBURBANO
No segundo eixo temático identificado, “O casal suburbano”, transparece a veia cronista de Aldir Blanc em seis faixas, metade do álbum. Os personagens do subúrbio carioca se relacionam, brigam, se expressam, ocupam a casa e o espaço urbano nas letras de Blanc — retratando as inusitadas situações que o subúrbio do Rio de Janeiro testemunha.
Este eixo temático também se desdobra em dois: “A suburbana porreta” e “O galã suburbano”. O primeiro traz personagens femininas intrigantes, abarcando as canções Incompatibilidade de gênios, Gol anulado, Rumbando e Feminismo no Estácio — com uma mulher que manda na casa e faz de tudo para humilhar o marido, uma que secretamente torce para o time adversário ao dele; uma dançarina do showbiz e uma mulher malandra que faz o marido de otário.
Em todas as canções deste sub-eixo, a voz que narra os acontecimentos não é a da mulher que é retratada. Este homem subjugado, enganado, feito de capacho (de Incompatibilidade de gênios, Gol anulado e Feminismo no Estácio, respectivamente) é quem dá sua versão dos fatos e apresenta quem é esta mulher. Ainda assim, podemos entrever a personalidade e as motivações dela pelas frestas da verve cronista das letras de Aldir Blanc.
Em Incompatibilidade de gênios, podemos nos perguntar o que leva esta mulher a desejar que o marido cegue, fazê-lo jejuar, encorajar seus agiotas, tachá-lo de burro — mas ainda coar o café em suas calças para segurá-lo. Em Gol anulado, ainda que o ponto crítico da canção seja a surra de cinto que a mulher leva, podemos entrever a astúcia que teve para segurar o marido durante três anos. Para não sofrer o estigma da época e manter o casamento, fingiu ser vascaína todo esse tempo, até que não se conteve e explodiu em entusiasmo gritando “Mengo” no segundo gol do Zico.
Em Rumbando, temos uma artista, uma dançarina habituada ao palco, que provavelmente não tem um homem em sua vida para regular seus comportamentos. Ela nasceu para bailar, ela não treme no palco e as pessoas que tem para agradecer são as suas fãs. Já em Feminismo no Estácio, vemos uma mulher desprendida, que se coloca como contraponto da malandragem, fazendo o homem de otário: ela vai para onde bem quer, se comporta aos seus moldes, causa dor de cotovelo e não se deixa intimidar nem agredir.
Na segunda face deste eixo está “O galã suburbano”, que põe em destaque as armas de sedução de um homem cafajeste. Os boleros Latin lover e Miss suéter retratam dois personagens que rememoram, cada um, um caso com uma mulher. Eles investiram em suas ferramentas de conquista, fosse a voz rouca que pergunta onde dói, fosse o elogio certeiro que encabula e envaidece a moça bonita.
O SUBLIME DA SARJETA
No último eixo, que não se desdobra, temos “o sublime da sarjeta”, com as canções Vida noturna e Transversal do tempo. Associei a crueza das letras de Blanc e a lentidão nostálgica dos boleros de Bosco ao conceito de sublime, da Estética: esta qualidade, distinta da beleza, que provoca no indivíduo a sensação do intocável, o medo, o mistério.
Segundo o filósofo Friedrich Schiller, o sublime pode estar na natureza diante de uma enorme tempestade, um mar revolto, uma tempestade de trovões ou o sem-fim de um abismo — diante dos quais reconhecemos nossa impotência e finitude. Ainda para Schiller, nas artes o sublime emana da representação vivaz do sofrimento, que nos desperta o afeto compassivo. Juntamente, é necessária a representação da resistência contra o sofrimento, que chama à consciência a liberdade interna do ânimo (Schiller, 2023, p. 78).
Para o filósofo, essa característica do sublime é melhor encontrada nas tragédias, que permitem a representação do sofrimento alheio sem que façamos parte da causa de sua dor. Ele também menciona o indeterminado, aquilo que é intocável: segundo ele, tudo que é misterioso contribui para o terrível e é, portanto, capaz do sublime. Por isso, acreditamos ser possível encontrar rastros do sublime nas canções Vida noturna e Transversal do tempo, os rastros de um sublime possível no caos do subúrbio carioca, na sujeira da vida urbana, na sarjeta.
Em Vida noturna, temos a onipresença da chuva, que molha o cigarro do boêmio até os ossos — aliando a força da natureza a uma imagem sórdida — e deixa a noite e o caminhar do personagem ainda mais misteriosos. A interpelação à vida noturna e a visão da borboleta vadia na flor da hipocrisia criam imagens contraditórias e representam o sofrimento ao qual se quer resistir — criando as condições necessárias ao sentimento do sublime.
Efeito análogo aparece em Transversal do tempo, com várias imagens que remetem ao atordoamento e ao sofrimento. A ideia de estar ferido dentro de uma ambulância rodando a cidade aterroriza. A imagem dos pivetes da cidade e seus delitos causa medo. Ao mesmo tempo, contemplamos o belo na gaita virtuosa de Toots Thielemans. E a cidade anuncia a morte na angústia permanente do sinal amarelo, na dúvida, na espera.
Esse efeito se repete na obra de João Bosco e Aldir Blanc em diversas canções, como O bêbado e a equilibrista, Nação e tantas outras. Provavelmente é resultado do intenso processo de criação, que os dois descrevem no documentário Parceria é isso aí (Pontes, 2021) como uma verdadeira fusão. É também interessante perceber as interseções e sobreposições dos eixos temáticos que apresentamos. Espero que essa possibilidade de escuta abra caminhos para ouvir novamente Galos de briga quantas vezes for necessário para contemplar a sublime obra de João Bosco e Aldir Blanc.
Referências
BOSCO, João. Galos de briga. RCA, 1979.
BOSCO, João; GAVIN, Charles; ESCOBAR, Carlos; HORA, Rildo; SOUZA, Tárik. Galos de briga 1976: João Bosco: O som do vinil: entrevistas a Charles Gavin / Entrevistas de João Bosco, Rildo Hora e Guinga a Charles Gavin. — Rio de Janeiro: Ímã Livros de Criação, 2015.
SCHILLER, Friedrich. Do sublime ao trágico. Tradução: Pedro Süssekind, Vladimir Vieira. Autêntica, 2023.
GOYA, Francisco de. Três de Maio de 1808 em Madrid. Espanha: 1814.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições. 2018.
PICASSO, Pablo. A morte do toureiro. Espanha: 1933.
PICASSO, Pablo. Guernica. Espanha: 1937.
PONTES, Pedro. João Bosco e Aldir Blanc — Parceria é isso aí!. Rio de Janeiro: MAB, 2021.
Como citar este texto
LYRA, Lienne. Galos de Briga: entre a crítica, a crônica e o sublime. A música de: História pública da música do Brasil, v. 6, n. 2, 2024. Disponível em:https://amusicade.com/galos-de-briga-1976-joao-bosco/ . Acesso em: