AS CANÇÕES DE ALUCINAÇÃO: ENTRE O MIGRANTE NORDESTINO E AS RESSONÂNCIAS DA CONTRACULTURA
André Caviola
André Caviola é doutorando em História na UFMG. No momento, desenvolve pesquisa sobre o músico e compositor Belchior. Possui mestrado em Artes (UEMG) e licenciatura em História (Uni-BH). É autor da dissertação Projeto Poético: princípios éticos e estéticos no repertório cancioneiro de Antônio Carlos Belchior e de artigos que exploram a obra do artista cearense.
Lançado há exatos 48 anos, o álbum Alucinação ainda é um dos mais celebrados trabalhos de Belchior. Gravado no Estúdio Phonogram de 16 canais, no Rio de Janeiro, veio a público em junho de 1976, com dez canções de autoria do artista. Na época de seu lançamento, foi explorado por diversos meios de comunicação, ganhando destaque por suas temáticas elencadas e pela forma direta de Belchior comunicar-se com o ouvinte.
A capa de Alucinação contém a fotografia estilizada da face de Belchior, que é apresentado em aparente estado de transe. O nome do álbum e o nome do artista estão grafados em vermelho sobre o fundo azul, o que faz ressoar uma série de estados passionais, que também são abordados por sua música.
A fotografia de Belchior que compõe a capa de Alucinação é de autoria de Januário Garcia, fotógrafo brasileiro reconhecido pelo extenso trabalho na área da publicidade, música e documentação. Garcia realizou registros para outros importantes álbuns da música brasileira, como de Gilberto Gil, Tim Maia, Chico Buarque e Leci Brandão. Por sua vez, a contracapa possui um desenho elaborado pelo próprio Belchior, intitulado com o mesmo nome Alucinação.
A mensagem do álbum não serve apenas à rebeldia juvenil – homens e mulheres que ficaram desnorteados, desapontados, apaixonados e violentos – já que, ao valorizar a experiência humana e incentivá-la na busca pelo novo, aponta para o sentimentalismo e a necessidade de construir alternativas possíveis à juventude. Isso tudo entoado por seu grito não apenas pungente, sofrido e real; mas firme, seco e justo, que expressa toda a agressividade que o artista buscava representar.
O encarte de Alucinação apresenta uma montagem gráfica com referências a uma cédula de dólar, com a imagem do artista centralizada. Ao topo, a palavra “Lírica”, abaixo, a seguinte frase: “in gold we truste”, nós acreditamos no ouro, um trocadilho com a expressão “in god we trust”, nós acreditamos em Deus.
Alucinação “vendeu meio milhão de cópias […]. Transformou Belchior num ídolo universitário intermediário […] popular e refinado, compreensível o tempo todo e subcutâneo em suas motivações filosóficas e existenciais”, de acordo com Medeiros (2017, p. 92). Apesar de apresentar produções inéditas, algumas já eram de conhecimento do público, pois compunham o repertório do espetáculo musical estrelado pela cantora Elis Regina, Falso Brilhante, que ficou em cartaz entre os anos de 1975 e 1977 no Teatro Bandeirantes, localizado na cidade de São Paulo.
É também desse trabalho a maioria dos sucessos da carreira de Belchior, com destaque para Apenas Um Rapaz Latino-Americano, Velha Roupa Colorida, Como Nossos Pais, Sujeito de Sorte, Alucinação, A Palo Seco e Fotografia 3×4. Canções essas que foram regravadas pelo próprio artista ao longo dos anos, a partir de diferentes linguagens e que sempre marcaram presença em seu repertório e na memória construída sobre sua fortuna musical.
O PASSADO É UMA ROUPA QUE AINDA NOS SERVE
Passados tantos anos, Alucinação permanece como motivo de interesse e algumas de suas canções foram reapresentadas à atual geração a partir de artistas como Daíra (2017), que gravou um álbum com dez canções de Belchior; Emicida (2019), que inseriu na faixa AmarElo, um sample de Sujeito de Sorte; e de Ana Cañas (2021), que trouxe ao público suas interpretações de Apenas Um Rapaz Latino-Americano, Velha Roupa Colorida, A Palo Seco, Sujeito de Sorte, Antes do Fim, Fotografia 3×4, Como Nossos Pais, dentre outras. Vale ressaltar que décadas atrás, ainda em 2002, a banda Los Hermanos já havia iniciado esse movimento ao gravar a sua versão de A Palo Seco e apresentá-la ao público no antigo programa Luau MTV.
É possível observar, também, grafitados nos muros, estampados em camisetas e estandartes, em adesivos de automóveis, inseridos em objetos de decoração ou em postagens que circulam nos meios virtuais, versos como “A minha alucinação é suportar o dia a dia”, “Viver é melhor que sonhar”, “Amar e mudar as coisas me interessam mais”, “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco”, “O meu delírio é a experiência com coisas reais”, “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, dentre várias outras. Todas essas expressões são extraídas de canções que compõem o respectivo disco.
Diante disso, como explicar a recepção, a circulação e a construção de sentidos sobre esse trabalho e as mensagens expressas nas composições de Belchior? Para responder, poderíamos perguntar como o contexto de seu lançamento foi caracterizado pelo fenômeno da chegada e divulgação de diversos trabalhos que incorporaram os diferentes regionalismos musicais, num momento pós-bossa nova, pós-tropicalista e pós-festivais.
Outra chave de leitura possível, seria a combinação entre a tradição literária, a poética nordestina e a poesia concreta que caracteriza algumas de suas canções, explorando como isso se entrelaça à tradição musical brasileira e apropria-se de diferentes linguagens estéticas e musicais no trabalho apresentado em Alucinação. Ademais, outro trajeto que poderia ser percorrido seria elencar os temas sensíveis ao contexto com os quais a obra de Belchior dialoga; não apenas repete uma determinada realidade, mas, permite descortiná-la a partir de várias perspectivas.
O propósito desse texto, porém, é explorar apenas duas temáticas do trabalho de Belchior, que julgo fundamentais para sua compreensão. Atribuo a elas, inclusive, parte da atemporalidade existente em relação a esse disco. A primeira é a temática do migrante nordestino, enquanto a segunda se dedica a discorrer sobre o processo de tradução operado pelo artista das ideias contraculturais, as expressões e demandas de um novo tipo de juventude que se projetava no período. Apesar dessas discussões perpassarem a sua produção como um todo, vou recorrer a uma breve análise de duas canções que exploram essas temáticas.
EU SOU COMO VOCÊ QUE ME OUVE AGORA
Em Fotografia 3×4, Belchior constrói um retrato identitário de si e de milhares de nordestinos e nordestinas, migrantes e sujeitos da diáspora entre as diferentes geografias do Brasil que caracterizaram o seu processo de urbanização. O enunciador da canção utiliza-se de uma narrativa fria e realista ao descrever esse processo migratório.
De acordo com Josely Teixeira Carlos, “o artista exerce os papéis de autor, locutor e também de enunciador, assim como os papéis de destinatário, colocutor e coenunciador se confundem” (Carlos, 2007, p. 200). Essa multiplicidade de papéis, ainda de acordo com a autora, é possível, pois suas canções “mais do que uma trajetória pessoal, narram as dificuldades e esperanças de um povo que nunca desanima. De um povo nordestino que vai à cidade grande com um coração cheio de esperanças (Ibid., p. 200).
Fotografia 3×4 explora as contradições entre a expectativa e a experiência, como também as dificuldades enfrentadas por essa massa de nordestinos e retirantes. Apresenta uma leitura de mundo que busca se equilibrar entre o deslumbre com as novas vivências e a frieza proporcionada pelas incertezas e durezas presentes no percurso.
Em seu início, pode-se observar a primeira pessoa do singular “eu” a conjugar o verbo lembrar no tempo presente. A partir daí são apresentadas ao ouvinte verdadeiras cenas ou figuras entoativas, que podem ser interpretadas como um processo de figurativização. Segundo Tatit, “pela figurativização captamos a voz que fala no interior da voz que canta” (2012, p. 21). Por esse fenômeno, ainda, o “cancionista projeta-se na obra, vinculando o conteúdo do texto ao momento entoativo de sua execução (Ibid., p. 21).
A tematização de Fotografia 3×4 também é construída de forma homogênea, em que as experiências resultantes daquele que realiza diferentes percursos entre as regiões da cidade são exploradas. Os mecanismos de reiteração podem ser observados na alternância entre dois acordes básicos, no compasso binário que prevalece na canção e, também, na representação de elementos associados ao Norte e ao Sul, que se intercalam e constroem um efeito de oposição entre si:
desce do norte / cidade grande; pedia os meus documentos / estranhando o nome do lugar de onde eu vinha; o que pesa no norte / cai no sul grande cidade; a mulher que eu amei / não pode me seguir; quem vem do norte / vai viver na rua; noite fria / amar mais o meu dia; pela dor / descobri o poder da alegria; eu sou como você / que me ouve agora.
Esses opostos ocorrem a partir do processo de reiteração entre letra e melodia, que contribuem para a retenção na memória a partir da experiência da escuta e a consequente construção de sua melodia. Gislene Maria B. F. da Silva (2016, p. 116) ao analisar essa mesma canção afirma que “quando propõe ‘eu sou como você, que me ouve agora’, a empatia entre o eu da fala e o eu da recepção revela a fotografia”. A imagem formada pela canção reflete toda uma geração de jovens migrantes nordestinos e nordestinas que, ao buscarem oportunidade de sobrevivência no Sul, depararam-se com a rejeição e a estigmatização, a partir da identidade sulista.
Nessa canção, Belchior demonstra consciência de seu lugar. Mas, afinal, qual seria? Em reportagem concedida no ano de 1976, o artista afirmou: “O meu disco é o de um nordestino na cidade grande. Agora, um Nordeste verdadeiro, e não um Nordeste mítico, dos livros, que o eixo cultural Rio-São Paulo inventou para consumo próprio.” (Belchior apud Souza, 1976, p. 60).
Essa fala de Belchior expressa as tensões do processo de construção de duas áreas do país que foram inventadas como antíteses uma da outra. Porém, apesar de se posicionar de forma contrária a essa versão “mítica”, recorre ao mesmo recurso de estereotipização que caracterizou a construção imagética, sonora, social, cultural e simbólica do Nordeste, reinventando uma verdade para essa região (Albuquerque, 2011).
Como brevemente se apresentou, Belchior contribuiu para a construção de um espelho para uma variedade de nordestinos, migrantes, retirantes que deixaram as regiões Norte e Nordeste em busca de oportunidades em grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, processo que, em diferentes intensidades, proporções e direções ainda está presente em nosso contexto.
MEU DELÍRIO É A EXPERIÊNCIA COM COISAS REAIS
Na canção Alucinação, o artista incorpora “imagens de ‘modernidade’, ‘liberdade’, ‘justiça social’ e as ideologias socialmente emancipatórias como um todo [que] impregnaram as canções de MPB sobretudo na fase mais autoritária do regime militar, situada entre 1969 e 1975” (Napolitano, 2002, p. 3). Porém, ao contrário de uma assimilação acrítica, o artista aponta para a irrealização de certas tendências e correntes de pensamento em voga no período.
Tal constatação nos permite elaborar uma dupla interpretação: a experiência da realidade e, ao mesmo tempo, a fuga dessa mesma condição. É possível perceber, por essa canção, algumas incertezas e desconfortos que afligem o artista e como a preocupação com as experiências vividas se sobrepõem em seu processo de significação.
Observa-se, também, certo receio diante de alternativas totalizantes, como as ideologias emancipatórias e contraculturais que estiveram em voga nos anos de 1960, responsáveis por construir sonhos de liberdade. Pode-se dizer ainda que Alucinação se caracteriza pelas reincidências melódicas (Tatit, 2012, 2003), a partir da construção de um tema homogêneo, que consiste na atribuição de sentidos ao que o artista está chamando de alucinação. Durante os anos 1960, esse estado de confusão era associado ao consumo de substâncias psicoativas que adquiriram status de experiência libertária.
No entanto, a alucinação de Belchior caminha na direção contrária à fuga da realidade, sustentando-se nas experiências com coisas reais. A canção é iniciada com a primeira pessoa do singular, eu, a negar seu interesse em determinadas teorias e fantasias. Em seu refrão uma série de sujeitos e acontecimentos associados a ambientes urbanos, de uma grande metrópole, são enumerados. Adiante, sua negação retorna e a canção é finalizada com a célebre frase: amar e mudar as coisas me interessa mais. Ao mesmo tempo em que Belchior nega certas tendências ou correntes de pensamento, oferece uma alternativa ao seu lugar.
No ano de 1976, num Brasil ainda sob violações, censura e repressão, mas diante da expectativa do processo de redemocratização, Belchior compõe um panorama. Esse quadro elaborado pelo artista alterna entre a vontade de transformação com raízes nos movimentos contraculturais – e seus derivados – e suas próprias limitações em apresentar perspectivas práticas diante do plano social.
A contracultura, apesar de questionar uma cultura hegemônica vigente, foi incorporada também pela dinâmica do mercado. Nesse cenário, se artistas, símbolos e a moda foram explorados comercialmente pela indústria cultural, as lutas sociais avançaram no campo das liberdades e dos direitos civis, embora uma grande parcela do tecido social tenha passado de forma indiferente frente a essas transformações.
De maneira geral, Belchior procura estabelecer balizas entre as ideologias liberalizantes e emancipatórias – enquanto possibilidades de contribuir para a resolução dos conflitos sociais – e as próprias contradições e desigualdades existentes. O artista, ao mesmo tempo que se apropria da mensagem do amor e da ação enquanto agentes transformadores, que eram comuns a essas ideologias, direciona os seus esforços para as experiências reais e as dificuldades de lidar de forma prática com essas questões.
Ao retomar o esforço que orientou essa escrita, elaborar uma leitura do disco Alucinação a partir dos eixos propostos, é fácil constatar que esse assunto não se esgota. Pelo contrário, o que se apresentou aqui foram apenas alguns caminhos possíveis. Como trabalho mais celebrado do artista, Alucinação ainda é objeto de muita atenção por parte da crítica, dos fãs e dos interessados de maneira geral por sua obra, sobre a qual muito já se produziu e muito ainda há de se produzir, contribuindo para o debate sobre a produção musical do artista, seus sentidos e significados. Afinal, nunca somos os mesmos depois de ouvir Belchior.
Referências
CARLOS, Josely Teixeira de. Muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior. 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística – área de concentração Análise do Discurso) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará, 2007.
CAVIOLA, André Luiz Rocha Mattos. Projeto poético: princípios éticos e estéticos no repertório cancioneiro de Antônio Carlos Belchior. 2022. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.
MEDEIROS, Jotabê. Belchior: Apenas um rapaz latino-americano. São Paulo: Todavia, 2017.
NAPOLITANO, Marcos. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural. Actas de IV Congreso Latinoamericano de la Associación Internacional para el Estúdio de la Música Popular, Cidade do México, 2002.
Disponível em : http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/fevereiro2012/historia_artigos/2napolitano70_artigo.pdf. Acesso em: 22 jul. 2024.
SILVA, Gislene Maria Barral Felipe da. Era uma vez um homem e o seu tempo: aspectos éticos e estéticos na lírica de Belchior. Estudos De Literatura Brasileira Contemporânea, (27), 103–135. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9094. Acesso em: 22 jul. 2024.
TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2 ed. – 1. Reimpr. – São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2012.
TATIT, Luiz. Elementos para análise da canção popular. Cadernos de Semiótica Aplicada, Vol. 1, nº 2, dezembro de 2003.
Jornais e Periódicos:
SOUZA, Tárik. Belchior: o sucesso da contradição. Jornal do Brasil, edição 00122 (1), 08 de agosto de 1976, p. 60.
Como citar este texto
CAVIOLA, André. As Canções de Alucinação: Entre o Migrante Nordestino e as Ressonâncias da Contracultura. A música de: História pública da música do Brasil, v. 6, n. 2, 2024. Disponível em: https://amusicade.com/alucinacao-1976-belchior/ . Acesso em: