“Tanta coisa eu tinha guardado pra lhe dizer”: o Brasil em 1973 pelos sons e versos de Odair José
Ivan Lima
Ivan Lima é historiador e doutorando em História pela Universidade do Porto (Portugal). Bolsista FCT (Fundação para Ciência e Tecnologia), também é pesquisador integrado do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória), colunista do site História da Ditadura e idealizador do projeto O que cresci ouvindo. Pesquisa e escreve principalmente sobre música e história.
É difícil imaginar que um disco com canções sobre a empregada doméstica, a pílula anticoncepcional, revistas de mulheres nuas e o amor em praça pública tenha sido um dos mais vendidos e executados no auge da repressão ditatorial, sob o comando de Emílio Garrastazu Médici, durante a tão musicalmente disputada década de 1970. Mas há vários motivos para tal descrença: o sucesso à época da música de protesto, com traços de ideias tropicalistas, e, mais incisivamente, as ações de controle do Estado sobre as produções que tivessem qualquer signo considerado “contra a moral e os bons costumes”. Odair José (1973) foi lançado um ano após o estrondoso sucesso alcançado pelo cantor goiano em sua despedida da CBS, com a canção Vou tirar você desse lugar (1972), que narra a paixão de um sujeito por uma prostituta e a sua vontade de tirá-la daquela atividade profissional, mesmo sabendo dos tabus sociais que pairariam sobre ela. O disco que leva seu nome foi o segundo trabalho do cantor na Phonogram, uma gravadora que, apesar de ter selos divididos (Polydor e Philips – muitas vezes hierarquizando os artistas), era considerada uma das maiores do mundo. Além da nova casa, o disco trazia uma sonoridade inovadora, excelentes músicos – que mais à frente formariam a banda Azymuth – e a presença do famoso parceiro de Tim Maia, Hyldon.
Crônicas comezinhas e sonoridades sofisticadas
Sucessos à parte, o disco de 1973, assim como boa parte da obra de Odair José, traz canções que retratam cotidianos da vida urbana e de profissionais pouco lembrados no universo cancioneiro nacional. Outra marca interessante das canções de Odair é a forma explícita e didática com que aborda as aflições amorosas, os problemas ordinários e os tabus sociais. No álbum de 1973 nota-se a continuidade das profissões e sujeitos populares como protagonistas das canções e o dia a dia como cerne da obra: uma fusão quase perfeita entre crônicas comezinhas (amores, conflitos e dilemas através de narrativas amorosas) e sonoridades sofisticadas. Melodias e arranjos modernos e bem elaborados somam-se a participações luxuosas de músicos como Hyldon e José Roberto Beltrami, dando ao disco uma fórmula inovadora tanto quanto popular.
Em 1973, a grande imprensa enfatizou as canções de resistência à ditadura (no sentido do enfrentamento declarado) que traziam hermetismos, ideologias proclamadas e que aplaudiam as influências do Soul, em suas primeiras aparições no Brasil. Também manteve certo ceticismo em relação ao samba como música politizada, ignorou grupos de cantores populares que falavam dos cotidianos urbanos e protestavam de outra forma: contra a falta de ação do Estado na redução das desigualdades sociais, contra a interferência nas formas de amar, contra os preconceitos e aparências. Essa é a chave para a compreensão da obra de vários cantores populares, nomeadamente Odair José e seu disco mais popular lançado em 1973.
Deixa essa vergonha de lado
A escolha por abrir o disco com uma canção que tem a trabalhadora doméstica como protagonista foi certeira. A clássica Deixa essa vergonha de lado, que mais tarde lhe renderia o apelido de “terror das empregadas” (expressão usada por Rita Lee e Paulo Coelho em Arrombou a festa, de 1977), enfatiza a vergonha sentida por uma empregada doméstica, como se chamava popularmente à época, a respeito de sua profissão, na hora de se entregar a um amor. Vale lembrar que a categoria profissional das trabalhadoras domésticas era marginalizada e estigmatizada no início dos anos de 1970, marcada pelos baixos salários, ausência de direitos trabalhistas, precárias condições de moradia e por serem obrigadas a passar mais tempo com os filhos dos patrões do que propriamente com os seus, visto que a jornada de trabalho incluía a longa volta para a casa, frequentemente distante do emprego. Essa condição fez com que muitas trabalhadoras sentissem vergonha de revelar sua profissão (CAVALCANTI, 2015). O lançamento da canção de Odair José sobre a temática nos revela um cronista atento aos problemas cotidianos das classes assalariadas e coincide com uma ampla discussão que vai permear os meios trabalhistas no ano de 1973. Foram grandes as pressões sociais sobre o governo para a normatização da profissão desde o início da década. Na Lei Nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, promulgada durante o governo Médici, lê-se:
Art. 1º: Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas, aplica-se o disposto nesta lei.
Após a publicação da lei e porque grande parcela do público de Odair José era composta por trabalhadoras domésticas – que realizavam suas tarefas diárias, como limpar a casa ou lavar os pratos ouvindo rádio –, que o artista se tornou um dos mais tocados e próximos das classes sociais mais baixas. A partir desse momento, o próprio cantor se engajou na campanha pela regulamentação da profissão, participando de passeatas a favor desse segmento trabalhista. Odair José também passou a ser convidado para se apresentar em datas comemorativas, como nos mostra o comunicado do Jornal do Brasil de 05 de outubro de 1973:
Odair José sob censura
Se a repercussão de uma música em que o autor se declara apaixonado por uma prostituta havia sido imensa e bastante criticada pelos segmentos mais conservadores da sociedade, ainda maior foi a crítica sobre outra canção, que expunha a paixão de um homem pela foto de uma mulher que ele nunca sequer viu, sem roupas, estampada numa capa de revista. A canção Revista Proibida, também lançada no disco de 1973, elucida mais um dilema cotidiano relacionado à chegada da primeira revista de mulheres nuas às bancas do Brasil. O lançamento da música também coincidiu com a chegada de algumas publicações estrangeiras, principalmente a revista Playboy, norte-americana, criada em 1953 por Hugh Hefner, sucesso de vendagem naquelas terras.
Outro grande sucesso do disco (recentemente regravada por Zeca Baleiro), foi a canção Eu, você e a praça, com versos que insinuavam a prática amorosa na praça, ao ar livre, algo muito comum nas mais diversas comunidades brasileiras. Anos depois, Em qualquer lugar, com tema bastante semelhante, viria a ser censurada pelo DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas) sob a alegação de que “prega a prática do ato sexual em qualquer lugar”.
Não há como não falar do maior sucesso desse disco, substancialmente um dos maiores sucessos da longa carreira de Odair: Uma vida só (Pare de tomar a pílula) reinou absoluta não só no Brasil como em boa parte da América Latina com o título La Pílula. Ocupou as primeiras colocações de execução na Venezuela, Colômbia e chegou a ser censurada no Chile. A canção, que tem como temática a pílula anticoncepcional (na verdade um manifesto contra ela) foi composta em parceria com Ana Maria e teve grande repercussão por vários motivos. De um lado, o refrão repetitivo e simples permite memória verbal e musical; e de outro, a temática dos métodos contraceptivos ainda era muito contestada tanto em razão dos supostos efeitos colaterais causados por tais medicamentos, quanto por questões de natureza religiosa e moral.
A censura tratou de vetar a música. Versos como seja como for não soaram bem ao governo naquele momento do regime. A temática também se colocou como diametralmente oposta à campanha que o governo federal iniciara, principalmente nos postos de saúde, meses antes do lançamento da canção, denominada “Tome a pílula com muito amor”, patrocinada pela BENFAM (Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil), cujo objetivo era estimular as mulheres a tomarem a pílula anticoncepcional, bem como fazerem uso do DIU. Tratava-se da estratégia do governo militar para conter a natalidade e ampliar a duração do “milagre econômico”.
As temáticas associadas a solidão, desilusão, ciúme e romances urbanos também estão presentes na obra de 1973 através de canções como E ninguém liga pra mim, Eu sinto pena e nada mais e Quem é esse rapaz.
A música como produto social
Odair foi um dos pioneiros na composição de canções que abordavam as “polêmicas” urbanas e o cantor narrava essas questões de maneira crítica, com letras que geralmente envolviam situações românticas, amorosas e muitas vezes trágicas. As temáticas que cantaram micronúcleos sociais acompanhavam o inconformismo de certos setores da população que se sentiam excluídos pelo governo e pela imprensa, mesmo sendo a grande maioria numérica da sociedade. Além disso, os seus discos apresentavam uma sonoridade moderna que mesclava influências da música brasileira desde o samba e o sertanejo até o rock britânico e referências folk dos Estados Unidos.
As duas últimas canções do disco dialogam com o momento político do Brasil e entre si, no universo dos romances do LP. Cadê Você e Que saudade de você chegaram a ocupar o topo das execuções em rádio pelo Brasil e trazem lembranças, saudade e o amor como temáticas centrais. A primeira, inclusive, foi regravada no início dos anos de 1990 pela dupla Leandro e Leonardo, quando voltou a estourar nas rádios brasileiras. E para quem pensa que essas canções encerram o disco… Uma obra como essa só começa, nunca termina. Entender o sucesso desse disco é perceber em grande medida as ideias de Agnes Heller sobre o dia a dia: “A vida cotidiana constitui, assim, “a verdadeira ‘essência’ da substância social” (HELLER, 1985. p. 20). Odair transformou a essência social em versos e canções e isso o aproximou do maior público brasileiro.
Referências
CAVALCANTI, Ivan Luis Lima. ““Ame, assuma e consuma”: canções, censura e crônicas sociais no Brasil de Odair José (1972- 1979)”. Dissertação (Mestrado em História) PPGH/ UFPB, João Pessoa-PB, 2015.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 7ª Edição. Tradução Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
Como citar este texto
LIMA, Ivan. “Tanta coisa eu tinha guardado pra lhe dizer”: o Brasil em 1973 pelos sons e versos de Odair José. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 2, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/odair-jose-1973-odair-jose/. Acesso em: 21st novembro 2024.