O banquete musical de 1973: Análise de Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos
Rafaela Lunardi
Rafaela Lunardi é Doutora e Mestre em História Social pela USP, com pesquisas em História e MPB durante a Ditadura Militar brasileira. Bacharel e Licenciada em História pela UFPR. Autora do livro: Em busca do Falso Brilhante: performance e projeto autoral na trajetória de Elis Regina (Brasil, 1965-1976) (Intermeios, 2015) e co-autora de História do Brasil Contemporâneo: da Era Vargas aos dias atuais (Iesde, 2020). Atualmente é elaboradora e editora de materiais didáticos.
A trilogia de CDs Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos, lançada pelo selo Discobertas em 2015, é um documento precioso para a história da música popular brasileira. Trata-se da gravação (acredita-se na íntegra) do espetáculo musical chamado O Banquete dos Mendigos: Declaração Universal dos Direitos Humanos, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1973. O show fez parte das comemorações dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos propostas pela Nações Unidas no Brasil naquele ano, e foi parcialmente gravado em um LP duplo produzido pela RCA, em 1974. O áudio completo da trilogia de 2015 está disponível neste link.
Para organizar essas informações, vamos catalogar todos esses materiais como documentos históricos de naturezas distintas: o show em si, evento registrado na imprensa, em textos e imagens, e/ou na memória dos que lá estiveram; um LP duplo, que ficou censurado até 1979, com gravações editadas do show; e os CDs do Discobertas, que consistem no registro audiofônico do que foi presenciado por artistas e plateia naquele dia 10 de dezembro.
Justificar a escolha do último documento para a redação destas linhas é algo simples e diz respeito à necessidade de nós, historiadores, experienciarmos o passado. Por não conter muitos cortes e edições, assim como foi necessário à elaboração do álbum de 1974 – para adequar-se ao formato LP -, os CDs do Discobertas nos dão a sensação de vivenciar aquele espetáculo musical, do começo ao fim. Eles possibilitam escutar, hoje, 47 anos depois, em qualquer lugar, o emblemático show O Banquete dos Mendigos: ouvir os murmúrios, algazarras, ovações, reclamações e reações da plateia diante do que acontecia no palco, as músicas executadas, as interações que ocorreram entre artistas e público, a sequência das apresentações, perceber os problemas técnicos do espetáculo. Enfim, ouvi-los permite sentir o “clima” daquele show de música popular brasileira, que reuniu por volta de quatro mil pessoas, em um momento marcado por forte repressão dos militares sobre as atividades que consideravam subversivas.
É esta a história que contam e cantam os CDs Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos e é a eles que nos deteremos a partir de agora.
O show e seu contexto
1973 foi um ano fatídico na história da resistência à Ditadura Militar (1964-1985). Podemos apresentar como marcos deste ano alguns eventos políticos-culturais, como: o assassinato do estudante universitário Alexandre Vanucchi Leme; a retomada, ainda na clandestinidade, do Movimento Estudantil; a apresentação musical de Gilberto Gil na Escola Politécnica (POLI) da USP; e a realização do festival PHONO 73 (COSTA, 2003). Devido às circunstâncias nas quais ocorreu e aos objetivos de seus idealizadores, O Banquete dos Mendigos também se tornou um evento representativo do clima de oposição política da época e da luta pelos Direitos Humanos e pelas liberdades democráticas, evocadas por setores oposicionistas, politizados e engajados da sociedade civil brasileira (LUNARDI, 2016).
O espetáculo contou com a direção geral do cantor e compositor Jards Macalé e direção de produção de Macalé e Xico Chaves. Envolveu um vasto e misto elenco de cantores de MPB, de rock, de Bossa Nova, sambistas, “malditos” e de músicos instrumentais que, ao todo, executaram 43 canções. Compareceram Paulinho da Viola, Pedro dos Santos, Jorge Mautner, Edu Lobo, Gonzaguinha, Johnny Alf, Raul Seixas, grupo SOMA, Edison Machado, grupo MPB-4, Chico Buarque, Luiz Melodia, Milton Nascimento, Dominguinhos, Gal Costa e o próprio Jards Macalé.
De acordo com as palavras de Macalé, o show foi por ele pensado como uma atitude de humor, de denúncia e de necessidade, tendo em vista que havia se desentendido com sua gravadora e estava com dificuldades financeiras. Ao justificar o objetivo econômico do espetáculo, suas palavras expressaram também o clima de tensão e de perseguição política vivenciado pelos artistas e um desejo de denúncia pela falta de liberdade no Brasil daquele período (NAPOLITANO, 2014).
A vinculação do espetáculo musical à comemoração dos 25 anos da Declaração do Direitos Humanos foi por acaso e muita oportuna: ocorreu por meio de uma sugestão da diretoria do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, que, na ocasião, recebia em sua cinemateca uma mostra de filmes das Nações Unidas no Brasil e achou muito pertinente inserir o show a essa atividade. Segundo Macalé, “a expressão ‘Direitos Humanos’ era tida como palavrão pelo regime de governo militar de então”.
Nos encartes dos CDs lançados pelo Discobertas constam, além dessas informações, a ficha técnica do show e os agradecimentos de Macalé, denotando o caráter independente que teve esse espetáculo. Os agradecimentos do artista ao MAM, a juristas e funcionários (assessores e diretores) das Nações Unidas no Brasil e ao assessor jurídico (advogado) (de quem não aparece o nome, provavelmente para não expô-lo), mostram que, apesar do tom e do teor contestatórios, O Banquete não teve relações com entidades ou órgãos ligados diretamente às oposições (LUNARDI, 2016).
No palco, a ousadia
Convidados por Jards Macalé, os artistas que fizeram o show não ensaiaram as músicas que cantaram/ tocaram e não tiveram um script muito minucioso a ser seguido. A leitura dos 18 (de 30) artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos ocorreu no início do espetáculo e foi dirigida aos jovens, público mais assíduo dos eventos musicais que marcaram as lutas antiautoritárias na década de 1960 e na primeira metade dos anos de 1970. Nos discos do Discobertas, no entanto, a leitura consta como a última faixa do Disco 3, encerrando o trabalho de forma a sensibilizar o ouvinte e passar, ainda mais, o tom não só de registro histórico memorável do material, mas também da história de resistência política-cultural que ele contém.
O poeta, jornalista e crítico, Ivan Junqueira, como membro de informações da ONU e, na oportunidade, representante do secretário-geral das Nações Unidas na época, Kurt Waldheim, foi o responsável pela leitura dos artigos. Devido a um problema de som, Ivan Junqueira apresentou dificuldades para começar sua fala introdutória e precisou da intervenção de Jards Macalé para conter a animação da plateia que gritava, assoviava e aplaudia insistentemente em uma demonstração do clima de festa, de euforia e também de catarse, tendo em vista o momento de grande repressão política e social. Um comentário feito por Junqueira antes de iniciar a leitura dos artigos demonstrou como o clima de festa estava associado à luta pela causa dos Direitos Humanos no espetáculo. Disse ele: “Eu prometo a vocês que vou ser muito breve, porque o que vocês estão esperando é música, e vão ter isso logo, logo”.
O tom de protesto deste evento também se explicitou quando Junqueira afirmou que o futuro da Declaração dos Direitos Humanos dependia daquele público jovem que ali estava. Isso assegurava e encorajava, especialmente, a luta do Movimento Estudantil que, naquele ano de 1973, buscava se reorganizar, promovendo atos e manifestações, mesmo na clandestinidade (MÜELLER, 2010). Era muito claro para aquela plateia “jovem, universitária e de classe média” que o momento era de opressão, portanto, exigia resistência. A plateia ovacionou com maior entusiasmo os artigos relativos à liberdade de expressão e de opinião e à vontade do povo expressa em eleições. Nas leituras dos artigos V, IX e XIII, que tratam respectivamente de tortura, de prisões e de exílios, houve pausas mais longas para as muitas ovações.
Como uma festa, o show começou muito animado, com a presença de Paulinho da Viola cantando três de seus animados e líricos sambas: No pagode do Vavá, Roendo as unhas e Dança da solidão. Aclamado com fortes aplausos, assovios e gritos, a plateia solicitou que cantasse outras músicas, o que não aconteceu, devido à programação combinada, segundo o próprio artista. Diferentemente do início eufórico, o final do espetáculo foi conduzido pelo lirismo de Oração à Mãe Menininha, interpretada por Gal Costa de forma suave, sem as estridências vocais típicas da cantora, quase como uma oração de fato, um apelo de tom religioso contra as arbitrariedades e violências cometidas aos Direitos Humanos no Brasil desde o decreto do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 1968.
Dois momentos do show/discos chamam a atenção pelo tom bastante explícito de protesto à Ditadura: a apresentação de Raul Seixas e do grupo MPB-4 com Chico Buarque. As duas ocorreram no meio do espetáculo, portanto, compuseram o seu clímax.
A apresentação de Raul Seixas, como típico de uma performance de rock, foi marcada por grande entusiasmo e gritos na plateia, estridências de guitarras e batidas fortes de bateria. O artista cantou três músicas do seu novo disco Krig-Há, Bandolo! (PHILIPS, 1973) – Al Capone, Cachorro urubu e Ouro de tolo –, e Mosca na sopa, lançada naquele mesmo ano.
A participação de Raul Seixas provocou uma série de reações da plateia, que interagiu ativamente. Raul deu explicações sobre algumas canções, fez improvisações instrumentais e vocais, criou inferências textuais, mudando alguns versos das letras das canções, e intercalou duas músicas em uma só. Essas suas atuações criativas em palco expressaram sua persona de roqueiro, evidenciando o tom crítico e agressivo do artista com relação ao autoritarismo, bem como denunciaram a falta de liberdades no Brasil, a perseguição política e a sua insatisfação com os rumos dos acontecimentos, difundindo a necessidade de luta, de união e de esperança.
Chico Buarque, um dos artistas mais perseguidos pelos militares durante toda a Ditadura, se apresentou com o grupo MPB-4. Juntos, cantaram inicialmente Pesadelo (Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro), uma das canções que se tornou mais representativas dos Anos de Chumbo. A canção afrontava os militares ao tratar da liberdade e da resistência às perseguições políticas.
Em meio à execução de Quando o Carnaval chegar, Chico expressou as perseguições e censuras a que estava submetido, dizendo: “Também queria pedir desculpas, porque além do MPB-4 estar desfalcado do Magro [membro do grupo ausente no show], eu estou bastante desfalcado do meu repertório [muitas ovações]. Então, infelizmente, só vou poder cantar coisa velhinha”. Era uma referência clara à censura à sua obra, a exemplo das canções Apesar de você, de 1972; Cálice, daquele mesmo ano de 1973, proibida com direito a cortes de microfones no evento PHONO 73; assim como Vai trabalhar vagabundo, trilha sonora do filme Vai trabalhar, vagabundo! (Hugo Carvana, 1973).
O ápice da apresentação de Chico Buarque aconteceu, aparentemente, por acaso. Devido a um problema no baixo que levaria alguns poucos minutos para ser ajustado, e em meio a muitos gritos, aplausos e ovações, o artista falou com a plateia, dizendo que, para entretê-la, cantaria um trecho de uma música que ainda estava compondo, Jorge Maravilha. Chico cantou um trecho da música, acompanhado de seu violão, causando risos da plateia ao terminar o primeiro verso: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Dando uma breve, mas boa gargalhada, ao final do trecho cantado, o artista foi ovacionado fortemente pelo público. Chico cantou outro trecho da música, enquanto o problema do baixo ainda não havia sido resolvido: “E como já dizia Jorge Maravilha/ Com toda razão/ Mais vale uma filha na mão/ Do que dois pais voando”, sendo exaustivamente ovacionado, recebendo, talvez, os maiores e mais fortes aplausos, gritos e assovios de todo o show. Mas por que tanta exaltação a Chico Buarque naquela oportunidade, além do fato de ser um dos artistas de maior prestígio e popularidade nos anos 1960/1970?
Naquele clima de repressão em que aconteceu o espetáculo, os versos “você não gosta de mim, mas sua filha gosta” foram imediatamente compreendidos pelo público como uma referência à filha do presidente Ernesto Geisel, que foi empossado em março de 1974. Segundo memórias de artistas, produtores e pessoas ligadas à música, corria-se à boca miúda que a filha de Geisel apreciava muito a obra de Chico Buarque, contrapondo-se ao pai. A boa gargalhada de Chico ao final da execução musical e a reação imediata da plateia aos versos dão indícios de que essa “suspeita” poderia, de fato, ser verdadeira (ainda que Chico negue a relação entre Jorge Maravilha e Geisel). Este momento do show pode ser entendido como de compartilhamento de signos e de ideias antiautoritárias, mobilizando o papel de “rede de recados” que a MPB adquiriu, na década de 1970 (WISNIK, 1979-1980).
Uma outra história
O show O Banquete dos Mendigos foi precariamente gravado ao vivo pelo engenheiro de som, Maurice Hughes, e transformado pela gravadora RCA em um LP duplo, em 1974. O álbum foi censurado e somente liberado em 1979, momento crucial das lutas pela Anistia, que também incorporavam a questão dos Direitos Humanos. A censura deveu-se ao teor crítico, ligado aos Direitos Humanos, e à presença de diversos artistas então perseguidos. O áudio completo do disco está disponível neste link.
Analisar minuciosamente o álbum da RCA – compreendendo seus símbolos, sua estética e comparando-o aos registros dos discos do Discobertas -, bem como aprofundar as questões relativas a sua censura é matéria para um outro texto. Por ora, deixamos você, leitor, com as percepções, sensações, dúvidas, emoções e afins deste memorável e ousado show que foi O Banquete dos Mendigos. Afinal, música serve para ouvir, para dançar, para se divertir, para chorar, para lembrar, mas também para pensar e resistir!
Referências
COSTA, Caio Túlio. Cale-se. A saga de Vannucchi Leme: USP como aldeia gaulesa. O show proibido de Gilberto Gil. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
LUNARDI, Rafaela. Preparando a tinta, enfeitando a praça: o papel da MPB na “abertura” política brasileira (1977-1984). Tese de Doutorado, Departamento de História, FFLCH/ USP, 2016.
MÜLLER, Angélica. A resistência do movimento estudantil e o retorno da UNE à cena política (1969-1979). Tese de Doutorado, Departamento de História, FFLCH/ USP, 2010.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
WISNIK, José Miguel. O minuto e o milênio ou por favor, professor, uma década de cada vez. In: Anos 70. Música Popular. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editorial LTDA, 1979-1980.
Discografia
Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos, 3 CDs, Discobertas, 2015.
O Banquete dos Mendigos, LP duplo, RCA, 1974.
Como citar este texto
LUNARDI, Rafaela. O banquete musical de 1973: Análise de Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 2, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/direitos-humanos-no-banquete-dos-mendigos-2015-varios-artistas/. Acesso em: 20th novembro 2024.