“Só o palco pode sentir o sofrimento de um talento”: O disco autoral de Claudya
Daniel Lopes Saraiva
Daniel Lopes Saraiva é doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). É autor do livro Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais (2018) . Suas pesquisas versam sobre as relações ente história e cultura, com foco na produção cultural durante e ditadura civil-militar com destaque para a produção musical do período. É um dos editores do A Música de: História Pública da Música do Brasil.
Claudya nasceu Maria das Graças Rallo, no Rio de Janeiro (RJ), em 10 de maio de 1948, porém, foi criada em Juiz de Fora (MG), onde desde cedo começou a cantar. Em entrevista para o site A Música de, a cantora lembra que queria ser bailarina, mas em função da dificuldade de seguir carreira na dança, achou melhor direcionar esforços para a carreira musical. Na cidade mineira, a artista cantou em programas de rádio e aos 13 anos chegou a ser crooner de banda de baile. Além disso, cantava em outros espaços, como os universitários.
O grande marco de sua carreira foi a estreia no programa O Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues na Record. A música escolhida para a ocasião foi Canção do Amor Demais, de Silvio César. Na plateia do ensaio, a cantora lembra-se da presença de Maysa e Elizeth Cardoso, que a aplaudiram no fim da apresentação. No outro dia, elogios puderam ser lidos em veículos como o jornal Última Hora: “Claudia: uma das vozes mais lindas dos últimos anos”. A emissora a contratou para o programa e Marcos Lázaro, então empresário de diversos artistas, passou a representá-la também. Junto com a ascensão, veio um ruído dos bastidores, pois houve uma tentativa de rivalizar a jovem cantora com a apresentadora Elis Regina. Diante do estranhamento, Claudya saiu do programa e foi para TV Excelsior (MARIA, 2015, p. 95-96).
Em 1967, a cantora teve a chance de gravar seu primeiro long play, Claudia, pela RGE. Depois, lançou outros LPs e chegou a ser contratada pela gravadora Odeon, na qual também gravou três discos e fez sucesso com canções como Com mais de trinta (composição de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle) e Jesus Cristo (composição de Roberto Carlos e Erasmo Carlos).
A artista também se apresentou em festivais da canção na década de 1960, quando eles tiveram um boom — essa força continuou por algum tempo, contudo, nos anos de 1970, foram perdendo espaço. Entre as participações em festivais, a cantora rememora o ano de 1969, quando ganhou o prêmio de melhor intérprete da fase nacional do IV Festival Internacional da Canção (FIC) da Rede Globo, defendendo a música Razão de Paz Para Não Cantar (composição de Eduardo Lages e Alésio de Barros).
A compositora
Antes do disco Pássaro Emigrante (1979), Claudya gravou sete LPs. Aqui, algo a ser observado é que, diferente de outras artistas que se denominavam apenas intérpretes, Claudya compunha algumas de suas canções. No primeiro LP em que a artista gravou suas canções, o Deixa Eu Dizer (1973), pela gravadora Odeon, das 12 faixas, ela consta em três como compositora, sendo duas em parceria com Raul Telles e uma com Cristiê (Nome artístico inventado por Claudya para seu irmão Luiz Carlos). Entre outros compositores do disco, estão os já consagrados Ivan Lins, Caetano Veloso, Dorival Caymmi e Tom Jobim.
Claudya só iria lançar outro LP quatro anos depois, dessa vez pela RCA Victor, intitulado Reza, Tambor e Raça (1977). Nessa obra, a artista foi compositora de várias canções, entretanto, só assinou uma com seu nome, Claudia, assinando as demais como M. Graça, Dendê Salvador e Xangô da Bahia. A cantora usou esses pseudônimos porque, em suas palavras, não era bem visto uma mulher gravando um disco só com suas composições. Sobre ser compositora, em entrevista realizada no ano de 2016, ela destacou que o meio musical era predominantemente masculino e era muito difícil se impor — talvez por isso, inclusive, nas gravadoras, por vezes, ela era considerada uma intérprete, não uma compositora: “ser uma mulher competente naquele tempo era muito difícil e vou te dizer mais: as pessoas falavam muito mal da mulher competente, da mulher talentosa naquele tempo”.
O selo Epic
A oportunidade de gravar o primeiro LP totalmente autoral só aconteceu em 1979, quando Claudya foi contratada pelo selo Epic, um braço fonográfico da gravadora CBS. A CBS tinha em seu cast, no fim da década de 1970, o maior vendedor de discos do Brasil, Roberto Carlos, e, além dele, contava com outros nomes oriundos da Jovem Guarda. Mas em seu elenco não havia grandes nomes ligados à MPB. Foi pensando nisso que Jairo Pires, então diretor da gravadora, trouxe para o Brasil o selo Epic, que já era de grande prestígio nos Estados Unidos. Na época, Jairo convidou o cantor Fagner para ser produtor — o artista cearense já era contratado da CBS e tinha feito grande sucesso com seu LP. Sob a direção de Fagner, em parceria com Fausto Nilo, diversos artistas tiveram seu lançamento no mercado fonográfico pelo selo Epic, muitos deles oriundos do Nordeste, como Elba Ramalho, Terezinha de Jesus e Zé Ramalho. Outros, já com as carreiras em curso, também foram contratados pelo selo, como Ednardo e Geraldo Azevedo, por exemplo. No caso de Claudya, ela foi contratada, provavelmente com o mesmo intuito que Jairo Pires teve ao colocar Fagner como diretor artístico, o de ter um cast de MPB no selo. E como acontecia com os artistas nordestinos tutelados por Fagner, Claudya teve grande autonomia tanto na gravação quanto na escolha de repertório e músicos. Cabe lembrar também que os discos da gravadora tinham um acabamento gráfico arrojado, com capa e encarte sempre bem elaborados.
O disco
Claudya havia conhecido o músico Chico Medori em um programa do Silvio Santos, no qual ele tocou bateria em sua apresentação. Ele foi também o baterista do disco Reza, Tambor e Raça (1977). Quando gravaram Pássaro Emigrante, eles já viviam um relacionamento amoroso — a maioria das canções do álbum é parceria de Claudya e Chico Medori, baterista, como citado, e seu então companheiro. A artista lembra que ele fazia acordes e harmonizações muito boas. Claudya pedia para que Chico fizesse os acordes enquanto ela, com temáticas já pensadas, fazia letra e melodia. Assim, letra e música saíam prontas. Para a gravação do disco, Claudya convidou os músicos que a acompanhavam em shows e que não eram de estúdio, com exceção de Chico Medori, que já participava de gravações. Esse dado, inclusive, evidencia a liberdade de gravação que o selo Epic oferecia. O casal assinou 11 das 12 faixas, sendo a outra canção assinada apenas por Chico Medori.
Podemos dizer que o disco seguiu duas linhas. De um lado, a tradição da MPB surgida na década de 1960, cantando temáticas populares como as raízes africanas ou o cotidiano do trabalhador e do sertanejo. Ainda nessa perspectiva, os compositores destacavam a música como uma possibilidade de mudança social e o ato de cantar como uma forma de resistência. E, por outro lado, o disco seguiu uma linha confessional sobre o romance, as vivências e as dificuldades da vida artística.
A arte e os artistas
No primeiro grupo de músicas temos canções como Morena de Uganda: “Ê Morena/ Desperta esse canto de encanto/ Na festa de Umbanda/ Ê morena/ Seus olhos revelam mistérios/ De um canto de Uganda”. E em outro trecho: “Foi a reza que encantou/ Foi a cabocla Jurema/ Que tirou da minha vida/ Toda solidão”. Como se pode observar na letra dessa música, a cantora evoca elementos da umbanda, religião de matriz africana. O País citado, Uganda, também remete a essa ligação com o continente africano, pois essa relação Brasil-África teve grande valorização na década de 1960 e seguiu sendo incorporada no universo da MPB.
Outra canção é Boiadeiro: “É de manhã/ Um sol quente, ardente, que faz/ Ilumina meu sangue de dor/ O meu sobreviver/ Dilacerando os corpos à faca e punhal/ Ameniza a fome fatal/ De meu corpo a implorar”. Não foram poucas as canções vinculadas à MPB que cantaram o cotidiano do trabalhador rural, das agruras da vida no campo. Marcos Napolitano (2007, p. 111) lembra que havia, entre os anos de 1964 e 1965, uma orientação estético-ideológica caracterizada pela “subida ao morro” e pela “ida ao sertão”. Sambas e outros gêneros tradicionais, principalmente do sertão nordestino, foram revalorizados na época. Claudya não tinha viés ideológico em suas composições, mas certamente a estética do que ela compunha estava ligada ao que tinha visto e ouvido, e à convivência com compositores que seguiam esse viés desde a metade da década de 1960, tanto que a cantora chegou a ser substituta de Nara Leão no espetáculo Liberdade, Liberdade (1966), um dos mais engajados do período.
A canção título do disco Pássaro Emigrante é, para a cantora, uma homenagem aos tantos músicos que tinham que sair do Brasil para seguir a carreira no exterior. Nesse ponto, a artista usa sua canção como forma de crítica à desvalorização da profissão no país: “Meu canto morreu/ Minha voz calou/ Meu idioma não é meu tema/ Nem expressão de amor/ Onde está o canto meu/ Meu poeta se escondeu/ E o pássaro emigrante/ Voou pra terra distante/ E uma canção entoou/ E outras aves vieram/ E na verdade, do canto/ Com ele passarinhou”. Ou seja, a canção era uma forma de protesto pela falta de oportunidades e desvalorização dos músicos e artistas em território nacional.
Outra canção que fala sobre o retorno à terra natal é Uá-Uá, que se refere a um lugar na Bahia. Claudya explica que a música é sobre um artista que ainda voltaria para sua terra. Salve a Rainha, por sua vez, fala sobre o sofrimento do povo no dia a dia, sobre vida e morte, sobre o cantar como forma de libertação, tal qual podemos ver no último verso da canção: “O povo marcha na sua procissão/ E sua reza não é oração/ É o canto de alerta, uma canção liberta/ É passo livre para uma decisão”.
Essas últimas três canções têm como mote central a importância de cantar e as dificuldades enfrentadas pelos artistas. Claudya conta que a música título do álbum surgiu depois que, em uma viagem, ela viu a dificuldade enfrentada por vários músicos. Uá-Uá traz a esperança do artista no retorno para a terra natal. E Salve Rainha lembra que uma canção liberta. Se por um lado, clama por uma melhor condição aos artistas/músicos, e fala do retorno à terra natal, por outro, também lembra a importância da canção como mudança.
Medo, rédeas e talento
Se há no disco essas canções com temáticas mais gerais ou que falam acerca de problemas sociais enfrentados por setores da população, há também as questões que naquele momento pareciam estar muito atreladas à vida pessoal de Claudya. Em Medo, a voz da cantora narra as dificuldades, os receios e as hesitações de uma paixão. Já a canção Rédeas soa como um desabafo da artista: “Ando arredia nessas rédeas do cantar/ Laços enlaçam, meu soluço meu gritar/ Reina o silêncio dentro de mim/ Nem um espanto vem me espantar/ Dorme plenamente a coragem de lutar/ Nenhum açoite vem me açoitar/ Nenhum encanto vem me encantar/ Nem na manhã, eu consigo acordar”. Em entrevista para o site A Música de, a cantora narra vários percalços enfrentados durante a carreira e, portanto, essa música traz na letra um momento de desânimo em sua trajetória artística.
A única música que Claudya não assinou foi Tá-Lento. A canção, assinada só por Chico Medori, foi um presente do baterista para a companheira e foi inspirada na história dela. Na letra, ele ressalta a alegria por ouvir Claudya cantar: “Que eu sou vivo por te ouvir”. O compositor lembra ainda: “Que as marcas de um talento/ Não podem se apagar”. E finaliza recordando que só o palco poderia sentir o sofrimento de um talento. A letra parece dar força para artista ressaltando que as marcas de um talento não poderiam ser apagadas. Ao aproximarmos a letra da trajetória de Claudya naquele momento, é possível relacioná-las e imaginar que as dificuldades enfrentadas pela artista, mas que a confiança em seu talento fazia com que ela não desistisse da vida artística.
Convite à música de Claudya
Esse disco é um trabalho corajoso, pois mostrava uma intérprete jovem que, ali, apresentava o seu trabalho como compositora, diferentemente da obra anterior, na qual usou pseudônimos para evitar críticas. Dessa vez ela assinou as faixas e não apenas isso, pois desenvolveu também um projeto conceitual para o disco, que tinha como ideia central a questão do pouco espaço para o músico no país. Além disso, como já ressaltado, por um lado, a cantora trouxe canções com elementos que eram comumente ligados à música popular da época e, por outro, canções que estavam totalmente atreladas ao momento da artista, seja amoroso, seja na carreira, devido aos tantos percalços encontrados e as necessidades de recomeço.
Em algumas das faixas, a cantora se despiu de possíveis barreiras e, de forma implícita, colocou nelas todas as dificuldades que enfrentava para seguir na carreira artística como competitividade, mercado fonográfico e machismo. Um projeto assim não seria aprovado em outra gravadora, que canalizaria o talento da artista enquanto intérprete para cantar músicas de outros compositores. O selo Epic, contudo, dava liberdade de produção para seus artistas e, talvez por isso, o projeto não tenha enfrentado tantas barreiras.
A gravadora CBS foi a última grande empresa do ramo fonográfico pela qual a artista passou, pois depois da década de 1980, Claudya gravou apenas por selos menores. Sua redescoberta no cenário musical aconteceu quando o rapper Marcelo D2 colocou samples da canção Deixa eu Dizer (composição de Ronaldo Monteiro de Souza e Ivan Lins) junto com sua música Desabafo (2008).
Voltando ao disco de 1979, a direção de arte foi de Géu e a ilustração da capa, de Carlos de Lacerda, mostra um desenho de Claudya, à época loira, cantando. Contrastando com a imagem, podemos ver três pássaros que parecem sair de seus cabelos e formam, junto com a figura da cantora, uma imagem única. Mostra uma arte em consonância com o fio condutor que a artista quis dar para o disco. Pássaro Emigrante não foi um álbum que teve destaque no período em que foi lançado e nem está nas plataformas digitais, mas é um disco para ser redescoberto.
Referências
MARIA, Júlio. Elis Regina: Nada será como antes. São Paulo: Editora Master Books, 2015.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
SARAIVA, Daniel. “Vento Nordeste: A Explosão dos músicos Nordestinos nas décadas de 1970 e 1980”. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina. 2019.
Entrevistas
Entrevista de Claudya concedida a Daniel Saraiva. São Paulo, 13 de outubro de 2016.
Entrevista de Claudya concedida a Daniel Saraiva e Ricardo Santhiago para o site A Música de. São Paulo, 2019. Publicada em 2020.
Como citar este texto
SARAIVA, Daniel Lopes. “Só o palco pode sentir o sofrimento de um talento”: O disco autoral de Claudya. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 2, 2020. Disponível em: https://amusicade.com/passaro-emigrante-1979-claudya/. Acesso em: 20 nov 2024.