Liberdade, liberdade: Um disco fundamental para compreender as relações entre teatro e música durante a ditadura militar brasileira
Natália Batista
Natália Batista é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo com mestrado em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autora do livro Nos palcos da História: Teatro, Política e Liberdade, Liberdade. Suas pesquisas versam sobre as relações entre a história e a cultura, com ênfase no contexto da ditadura militar de 1964 no Brasil. Atualmente faz pós-doutorado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Liberdade, liberdade é uma obra artística ambiciosa que se converteu em múltiplos produtos culturais divulgados em diferentes suportes. Antes de se tornar disco, foi uma peça teatral produzida pelo Grupo Opinião, foi um livro editado pela Civilização Brasileira, além de servir de inspiração para um concurso de sambas sobre a liberdade organizado também pelo Opinião. Diante desse cenário, é impossível desvincular o disco dos produtos culturais que o antecederam. Sua proposta de resistência à ditadura militar foi eficaz exatamente porque ampliou as lutas culturais através da junção dos campos teatral e musical.
A peça – produto gerador desta experiência – estreou no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1965. Escrita por Flávio Rangel, também responsável pela direção, e por Millôr Fernandes, o texto dramatúrgico trazia à cena fragmentos históricos que versavam sobre a liberdade ou períodos em que ela foi cerceada. A peça e, posteriormente, o disco foram montados por meio de frações textuais adaptadas, cenas teatrais, canções, poemas, poesias e anedotas. A produção teatral ficou a cargo do Grupo Opinião, importante polo de aglutinação da esquerda. Na data de sua estreia, constava o mesmo elenco que participaria da gravação do disco: Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Viana Filho e Tereza Rachel. A própria seleção dos integrantes demonstra o desejo de misturar atores e músicos, assim como tinha ocorrido no Show Opinião.
Um disco-documento
O espetáculo tornou-se uma das primeiras manifestações teatrais de clara oposição ao regime militar recém-instalado. Em sua trajetória de quase dois anos, mobilizou debates no campo político e cultural, recebeu da maioria dos críticos um julgamento político, foi ovacionada pelo público por seu engajamento e estética, além de gerar constrangimento no governo.
O disco deixa entrever essas experiências e proporciona ao ouvinte uma leitura particular deste fenômeno cultural. É um importante documento para compreender o teatro de protesto e suas relações com o campo musical. Como foi o último produto lançado, ele já reitera a trajetória de sucesso do espetáculo e introduz o ouvinte nessa atmosfera.
O evento de lançamento do disco Liberdade, liberdade foi no dia 8 de março de 1966, após uma apresentação da peça no Teatro Opinião. Sua gravação havia ocorrido no ano anterior, durante o espetáculo da primeira temporada da peça. Não se trata de um long-play com canções da peça, sendo a sua proposta a adaptação do espetáculo para o formato sonoro. O LP foi produzido pela gravadora Forma e distribuído pela Companhia Brasileira de Discos. A gravadora responsável pelo projeto foi criada em 1964 por Roberto Quartin, no Rio de Janeiro. Era uma gravadora independente que ficou conhecida pelo lançamento de vários discos experimentais, como Os afro-sambas de Baden e Vinicius, de Baden Powell e Vinicius de Moraes; Coisas, de Moacir Santos e Deus e o diabo na Terra do Sol, de Sérgio Ricardo. Foram quase trinta discos até o momento em que Roberto Quartin negociou o seu catálogo com a Universal, no final da década de 1960.
Do espetáculo ao LP
A edição do disco realizou muitos cortes no texto original. No momento da estreia, a peça tinha cerca de uma hora e trinta minutos. O LP chegou às lojas com a duração de 48 minutos, praticamente a metade do conteúdo do texto original. O disco foi dividido entre Lado 1 e Lado 2, seguindo a mesma divisão de atos do espetáculo. Ainda que não seja um disco com as canções do espetáculo, o foco foi direcionado a elas. Algumas das cenas que tinham relação com temática histórica ou que mencionavam aspectos políticos foram excluídas. Esta opção pode ter servido para dar maior dinamismo ao LP ou mesmo evitar problemas com a censura.
O LP tem alguns problemas de aspecto técnico, mas esta talvez seja a sua maior qualidade. Em alguma medida, a presença do público atrapalha a audição do disco, mas permite compreender também como ele se relacionava com o espetáculo. Por essa razão, o crítico Juvenal Portella, em uma análise no calor dos acontecimentos, reconheceu a importância histórica do material para além de suas limitações estéticas: “Não vamos entrar no conteúdo do trabalho produzido, mas recomendar simplesmente o elepê. (…) ele é um documento de uma fase importante da música popular: quando ela foi aproveitada na faixa de um espetáculo ideológico” (Jornal do Brasil, 16/03/1966). É exatamente deste modo que o disco merece ser observado: como documento histórico de uma época onde os campos teatral e musical se juntaram para fazer oposição ao governo.
Lado 1
A primeira faixa do disco tem início com o Hino da Proclamação da República, de Leopoldo Miguez e Joaquim Osório Duque Estrada. Primeiramente apenas com a voz de Nara Leão, a canção é posteriormente seguida pelo coro. A interpretação tem um sentido contrário à gravação original do Hino, que é alegre e vibrante. Na sequência, Paulo Autran inicia a declamação do poema de Geir Campos, abrindo caminho para a entrada da Marcha da Quarta-feira de Cinzas, cantada por Nara Leão. A música de Vinicius de Moraes dá o tom ao espetáculo, opondo-se ao arranjo musical e timbrístico da canção anterior. Se o Hino da Proclamação da República serve para lembrar a temática do espetáculo e a situação política atual, a marcha dá esperança para uma nova situação política do país.
Para discutir as liberdades humanas foram utilizadas várias canções. Durante todo o disco, a música parece adquirir um tom quase didático, ora de explicação, ora de exemplificação. Esse trecho tem início com a execução da canção Aruanda, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. A melodia é tocada em ritmo caribenho, com intensa participação do coro, que entra nas canções mais expansivas, enquanto Nara Leão canta as canções mais intimistas.
No momento em que é discutida a liberdade econômica, explora-se o samba Acertei no Milhar, de Moreira da Silva, cantado por Nara Leão em tom baixo. Em contrapartida, a canção seguinte, intitulada Eu Não Tenho Onde Morar, de Dorival Caymmi, aborda a falta de moradia e é cantada pelo coro. Para falar sobre a necessidade de que as riquezas nacionais fiquem no país, é utilizada a clássica Com Que Roupa, de Noel Rosa. Ao iniciar a discussão sobre as constituições elaboradas pelas nações, eles se apropriam dos trechos da canção Estatuto da Gafieira, de Billy Blanco. Nos arranjos compostos por Oscar Castro Neves para essa canção é possível perceber as referências de um samba partido-alto, executado por Nara Leão com efusiva entrada do coro no refrão.
Foi inserida no disco uma cena em que se faz uma discussão teórica sobre o que é a liberdade. Pela reação do público, percebe-se que era um dos momentos mais cômicos do espetáculo, recebendo aplausos em cena aberta. Na sequência, é colocado Té o Sol Raiar, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, samba que começa no tom baixo e vai subindo aos poucos até o seu refrão. Essa estratégia vai ser constantemente utilizada no disco, preparando o público para o ápice do refrão com a inserção do coro.
Freedom Songs
A cena seguinte discute a campanha pelos direitos civis através da canção sem autoria If You Miss Me At The Back Of The Bus. Nara Leão explica que se trata de uma freedom song, cantada em território americano pela igualdade entre negros e brancos. Ao final, Vianinha recita trechos da Declaração de Independência dos Estados Unidos ao som dos primeiros acordes de Summertime, de George e Ira Gershwin, interpretada por Nara Leão e acompanhada pelo coro. Ao final, é explorado o tema da independência americana e o processo de segregação racial, concluído com um discurso de Abraão Lincoln.
Para adentrar na temática da escravidão brasileira, é cantada a canção Zumbi, de Denoy de Oliveira, com versos que também podiam remeter à realidade política da época: “Não morre quem lutou, não morre um ideal, arranca a folha, vem a flor, arranca a flor, vem o pinhão…” (FERNANDES; RANGEL, 1965, p. 55). Nesse momento, a presença do coro parece tentar mobilizar um canto que remeta à massa, à multidão. Vianinha explica como se deu a abolição da escravidão e estabelece relações entre o passado e o presente, indicando que a condição do negro quase não foi modificada. Nesse momento, encerra-se o lado 1 do disco, ao som do Hino da Proclamação à República tocado de forma alegre em oposição à versão inicial.
Lado 2
No Lado 2, percebe-se que a ênfase na canção perde força, recaindo mais sobre os textos da peça. A discussão sobre a Espanha franquista inicia com um discurso gravado do general Francisco Franco e segue com canções satíricas dos republicanos contra o governo, como a canção sem autoria Jota dos Três Irmãos, cantada em ritmo latino. Nesse momento, são também inseridas no disco diversas anedotas sobre a atualidade. Por meio do áudio, apreende-se a reação do público e as pausas dadas pelos atores com o intuito de criar o efeito cômico e o tempo da comédia.
É feito um brusco corte para entrar na temática de Tiradentes, iniciada com um trecho do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, e na sequência é declarada a Sentença contra Tiradentes, retirada dos Autos da Devassa. Para se contrapor ao tom fúnebre da cena, foi inserido um samba da Escola Império Serrano, com a música cantada em ritmo de samba enredo. Escutando o disco, tem-se a impressão de que o Teatro Opinião havia se transformado numa escola de samba, tão grande era a empolgação do público.
Nas cenas posteriores, o disco explora o tema do nazismo. São apresentadas as cenas de Terror e Miséria do III Reich, de Brecht, a declamação de Liberté, de Paul Éluard, além de uma cena adaptada do Diário de Anne Frank, na qual Nara Leão interpreta o papel da menina judia.
MPB e direitos humanos
O público aplaude a cena com grande entusiasmo e na sequência é declamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Na parte final é inserida uma espécie de conclusão, onde Paulo Autran demonstra que mesmo com tantas adversidades é preciso acreditar na validade da luta pela liberdade:
Às vezes, no fim de uma batalha, nem se sabe quem venceu; ou o vencedor parece derrotado. Cristo morreu na cruz, mas o cristianismo se transformou na maior força espiritual do mundo. Galileo Galilei cedeu diante da Inquisição, mas a Terra continuou girando ao redor do Sol, e quatro séculos mais tarde, um jovem tenente anunciou da estratosfera que a Terra é azul. […] Quando Hitler dançou sobre o chão da França, tudo parecia perdido. Mas a cada ato de luta corresponde um passo da vitória (Fernandes & Rangel, 1965, p. 151).
A canção final do disco é o Hino à Proclamação da República em tom efusivo. Parece que a intenção era que os ouvintes terminassem a escuta do disco motivados e imbuídos por um ideal de resistência contra o regime militar. O disco é uma espécie de declaração de amor à liberdade e à música popular brasileira. Ao mesmo tempo em que fala de liberdade, mostra a capacidade da canção em fomentar novas possibilidades interpretativas e sensoriais dentro no edifício teatral. Sua audição permite compreender como a arte engajada mobilizou diversos campos, e como o campo fonográfico se reinventou durante esse contexto.
Referências
Autran, Paulo; Leão, Nara. Liberdade, liberdade. Rio de Janeiro: Forma, 1966. 1 vinil.
Batista, Natália. Nos palcos da História: Teatro, Política e Liberdade, Liberdade. São Paulo: Letra e Voz, 2018.
Portella, Juvenal. Compactos e Liberdade, liberdade. 16 mar. 1966.
Rangel, Flávio; Fernandes, Millôr. Liberdade, liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
Como citar este texto
BATISTA, Natália. Liberdade, liberdade: Um disco fundamental para compreender as relações entre teatro e música durante a ditadura militar brasileira. A música de: História pública da música do Brasil, v. 2, n. 2, 2020. Disponível em: https://amusicade.com/liberdade-liberdade-1965-1966/. Acesso em: 26 dez 2024.