O Brasil de Maria Bethânia: trajetória, romantismo e brasilidade em Abraçar e Agradecer
Marlon de Souza Silva
Marlon de Souza Silva é doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolvendo pesquisa sobre o romantismo revolucionário na obra de Maria Bethânia. É mestre e graduado em História pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), curador do Memorial Clara Nunes e professor do Centro de Ensino Superior de Conselheiro Lafaiete (CES-CL).
Em 2016, por ocasião da comemoração de seus 50 anos de carreira completados no ano anterior, Maria Bethânia lançou o disco duplo Abraçar e Agradecer, o 57º de sua obra, sendo o 22º ao vivo. O disco é o registro de um show concebido e realizado pela intérprete, com direção de Bia Lessa e arranjos de Jorge Helder, João Carlos Coutinho, Paulo Dafilin, banda e Wagner Tiso. No repertório e roteiro, também concebidos por Bethânia, percebe-se a marca registrada da cantora: um espetáculo dividido em dois atos, construído a partir da mescla de canções e textos literários. Encontram-se presentes peças que remetem à sua trajetória, como as canções românticas e os sambas de roda; textos de Clarice Lispector, Fernando Pessoa e Wally Salomão; canções inéditas compostas para o disco, como Viver na fazenda, composição de Paulo César Pinheiro e Dori Caymmi; músicas do disco de estúdio Meus quintais, de 2014; versão de músicas estrangeira, além da gravação de Non, je ne regrette rien, composta por Michel Vaucaire e Charles Dumont, sucesso na voz de Edith Piaf.
Maria Bethânia imprimiu sua marca na música popular brasileira ao mesclar canções com textos literários. Essa mistura iniciou-se de forma incipiente em 1967, por ocasião do espetáculo Comigo me desavim, oriundo da parceria com Isabel Câmara e Fauzi Arap, consolidando-se em Rosa dos Ventos – o show encantado, de 1971, também com direção de Fauzi. A partir desses espetáculos, Bethânia revolucionou a forma de se fazer espetáculos musicais de cantoras que, até então, se apresentavam nas rádios e em boates. Isso não significa que outros espetáculos realizados nos anos 1960 não utilizavam da mistura de texto e canção. O próprio Opinião, que a lançou em 1965, possuía essa característica; porém, tratava-se de um espetáculo de teatro que se utilizava das canções. Bethânia realizou o caminho inverso: levou para os shows individuais de cantoras, elementos do teatro. Nesse sentido, seus shows são entendidos como espetáculos teatrais. Heloísa Starling (2015) argumenta que essa bricolagem entre literatura cantada e escrita é o fator de maior impacto e sem similar na vida cultural brasileira, o que situa a cantora em uma tradição que remonta a Domingos Caldas Barbosa e Silva Alvarenga, fundadores da tradição em que se formou a moderna canção popular urbana brasileira. Para a autora, essa bricolagem expõe um modo de ver e pensar o Brasil. Através de seus espetáculos, Maria Bethânia pensa o Brasil. Desde 1971 essa forma de pensar o país se fez presente na trajetória artística da intérprete. Isso demonstra a importância dos registros gravados dos espetáculos realizados por ela, nos quais Abraçar e Agradecer se insere.
Dentre esses registros, este, apesar de ser um disco comemorativo, não se configura como uma repetição de uma maneira de realizar espetáculos. Mesmo referindo-se a momentos da carreira de Bethânia, traz algumas novidades e nos permite pensar questões sobre a sociedade brasileira atual. O roteiro do espetáculo divide-se em dois atos, sendo que no primeiro, encontram-se textos, canções do disco Meus quintais de 2014 e as referências à trajetória artística da intérprete. Destaca-se, nesse sentido, a referência aos discos Maricotinha, de 2001; A tua presença, de 1971; Âmbar, de 1996; além dos espetáculos Imitação da vida, de 1997; e, encerrando a primeira parte do roteiro, Rosa dos ventos – o show encantado, de 1971. Por outro lado, na segunda parte do disco se fazem presentes canções do disco Meus quintais, além de textos, músicas gravadas anteriormente por ela e outras inéditas em sua voz, seja em disco, seja em shows.
Obra e vida
O repertório permite levantar e discutir alguns aspectos do disco. O primeiro se refere ao romantismo presente nas canções. Nesse aspecto, Bethânia traz em Abraçar e Agradecer elementos fundamentais na construção de sua carreira, que são o romantismo e a força de interpretação que essas canções permitem. A trajetória da cantora iniciou-se em um espetáculo de forte cunho contestatório, Opinião, ao substituir Nara Leão, em 1965, mas principalmente, pelo sucesso da interpretação de Bethânia da canção Carcará, composta por João do Vale e José Cândido. No encarte do disco Abraçar e Agradecer, Nelson Motta aborda o impacto causado pela força interpretativa de Bethânia:
Um impacto surpreendente para um público acostumado com as interpretações bossanovistas e discretas de Nara, ouvindo pela primeira vez, e bem de perto, aquela voz tão poderosa e tão dramática, e, ao mesmo tempo, tão doce e encantadora, que não se parecia com nenhuma outra – e que parecia mais grave, mais forte e mais doce do que todas as outras (MOTTA, 2016).
A partir desse impacto, Bethânia passou a ser rotulada de “cantora de protesto”. Fugindo desse rótulo, voltou para sua terra natal, retornando ao Rio de Janeiro para a realização de shows em boates, baseados em um repertório romântico. Desta forma, o romantismo serviu como uma válvula de escape para o impacto provocado por Carcará nos momentos iniciais de sua carreira. Ao longo de sua obra, as canções com conteúdo romântico configuram-se como sua marca registrada, principalmente a partir do disco Álibi de 1978, em que Bethânia atinge o sucesso comercial, impondo-a o rótulo de “cantora do amor”.
Como já argumentei (Silva, 2010), esse romantismo está ligado à dramaticidade que as canções possuem. E esta, com o palco e com a interpretação. Esse tipo de canção permite a Bethânia não apenas cantar, mas interpretar. Por isso, seus shows configuram-se como espetáculos em que ela atua como uma cantora-atriz. Por outro lado, o amor funciona também como uma forma de protesto, principalmente em um período conturbado política e economicamente, como aquele em que se encontrava o país no ano de lançamento do disco Abraçar e Agradecer – e que ainda se encontra. Como a própria cantora afirmou certa vez: “Cantar o amor é a coisa mais forte que conheço” (HONOR, 1999).
É inegável que, por ser um disco comemorativo, o amor se configuraria como o principal tema do roteiro, como o foi durante os mais de 50 anos de palco da cantora. Nesse sentido, ele se configura como uma síntese de sua vida e obra. As referências a momentos anteriores de sua carreira demonstram certo caráter biográfico, principalmente nos textos citados, mesmo que, diferentemente de espetáculos anteriores, aqui se apresentem pontualmente no roteiro. O caráter biográfico pode ser percebido desde o início, ao realizar o agradecimento, até o final, quando Bethânia interpreta a canção do repertório de Edith Piaf, Non, je ne regrette rien, denotando uma satisfação pelas escolhas que permitiram a construção de sua trajetória artística até o presente momento.
Brasilidade mestiça
Outro aspecto importante refere-se à presença de modas de viola, que remetem ao Brasil sertanejo. Acima, afirmou-se que Bethânia fugiu do estereótipo de cantora de protesto decorrente da interpretação de Carcará, no Opinião. Estereótipo decorrente também da imagem sertaneja construída pelos produtores do espetáculo. Apesar dessa fuga, o sertão sempre se fez presente no repertório da cantora. Como a mesma afirmou anteriormente, “livre no meu ofício, eu gosto de cantar o Brasil caboclo, tão longe de tudo aqui e eu canto esse Brasil como quem faz uma prece para que ele resista, apesar da mão do progresso vazio que insiste em dizimá-lo” (BETHÂNIA, 2010). Agradecer e Abraçar também traz uma preocupação da cantora em relação à valorização das modas de viola, que representam esse Brasil caboclo, para usar a expressão da cantora. No disco, Bethânia interpretou Eu, a viola e Deus, de Rolando Boldrin; Criação, de Chico Lobo; e, Casa de Caboclo, de Paulo Dafilin e Roque Ferreira.
A relação de Bethânia com o Brasil foi definida por Heloísa Starling (2015) através do conceito de “brasilidade mestiça” que se constrói em uma região de fronteira entre culturas, grupos, histórias ou formas de memória. Para a autora,
o mestiço obriga a quem quiser sentir e pensar o Brasil a compreender o jogo da exclusão: é preciso reconhecer os silêncios que atravessam a sociedade brasileira e escondem a fonte que gera o nó da violência encravada no fundo de nossa história escravocrata; que alimenta a discriminação e o preconceito; e que sustenta a crença de que os homens se repartem por sua história, sua biologia e sua condição social (STARLING, 2015, p. 23).
Na obra de Bethânia, como bem apontou Starling, há indícios dessa brasilidade mestiça, “que quebra silêncios, nomeia a segregação e enxerga a invisibilidade de uma população marginal e subalterna” (STARLING, 2015, p. 23). Bethânia, de certa forma, dá voz a esses personagens anônimos, como o sertanejo, a população negra, os indígenas, entre outros. Por isso, em Abraçar e Agradecer há a presença das modas de viola, bem como da religiosidade afro-brasileira, dos cantos indígenas e dos sambas de roda.
Os orixás do candomblé e os caboclos da umbanda se fazem presentes na trajetória artística da cantora desde o final dos anos 1960 e, a partir dos anos 1970, estes se tornaram uma constante. Como já afirmei (Silva, 2010), em sua obra, Maria Bethânia demonstra sua trajetória religiosa, sendo possível perceber o caminho percorrido pela cantora no candomblé e sua relação com o sagrado, seja com os orixás, seja com os santos católicos. Sintomaticamente, no disco Abraçar e Agradecer, por ter como característica um teor biográfico, a religiosidade da cantora aparece na interpretação da canção Abraçar e Agradecer – que, numa inversão de palavras, dá nome ao disco – e, na canção Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi. Tal canção refere-se à mais famosa ialorixá da Bahia, Mãe Menininha do Gantois, através de quem Bethânia teve seus primeiros contatos com o candomblé e a quem ela agradece no início do show.
Nesse disco, Bethânia afirma o povo brasileiro como herdeiro das populações indígenas. Na segunda parte do roteiro, encontra-se um canto Tupi, intitulado Maracandé, na voz de Márcia Siqueira, que significa “grande festa”. Após o canto, Bethânia interpreta Xavante, de Chico César, e Povos do Brasil, de Leandro Fregonesi. Nesta, Bethânia afirma: “São povos do Brasil / Donos desse chão / Herança cultural do nosso sangue / Eu sou tupiniquim, sou caiapó, sou curumim / Tumbalalá, Caxinauá, Ianomami”, além de citar diversas etnias indígenas, demonstrando a diversidade cultural desses povos. Ela filia a nacionalidade brasileira também às populações indígenas.
Essa filiação é sintomática em um momento de descaso perante as populações indígenas por parte do Estado, principalmente no que se refere às demarcações das terras indígenas. Como bem destacou Núbia Ribeiro (2015, p. 115), apesar dos avanços da Constituição de 1988 que estabelece que as terras indígenas como bens da União, reconhecendo aos índios a posse permanente e o usufruto das riquezas nelas existentes, há a violação aos direitos à terra e à vida dos índios. A autora cita como exemplos o massacre dos Yanomami, em 1993; o assassinato do indígena Galdino em Brasília, em 1997; e, o massacre dos Guarani-Kaiowá, iniciado em 2011, etnia que ainda se encontra sobre ameaça.
No disco Agradecer e Abraçar, Bethânia pensa sobre o Brasil. Em entrevista por ocasião do show, foi questionada sobre a atualidade do texto de Carcará, respondendo: “Porque é. É só olhar o Brasil. Continuamos com miséria, seca, fome, sem educação, sem saúde, miseráveis, excluídos” (MAIA, 2015). Por isso, ela encerra o segundo ato com trecho da canção, mesmo não a cantando. Durante sua carreira, Bethânia fugiu do estereótipo provocado pela canção, mas no contexto atual do país, talvez seja necessário retomar a cantora de protesto de 1965. Mesmo sentindo pena do Brasil, como afirmou na entrevista, Bethânia encerra o disco com os sambas de roda, característico de sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação. Para ela:
Gosto do Brasil de dentro, a Amazônia, a firmeza do sertanejo, nobre. Gosto da sabedoria do homem do mar, da alegria do povo, musicalidade, sensualidade, compreensão de que precisa distrair, brincar, que a vida é dura para todo mundo, mas precisa brincar (MAIA, 2015).
O disco Agradecer e Abraçar não apenas nos permite conhecer a obra de Maria Bethânia, mas também se configura como uma janela para pensar questões sobre a sociedade brasileira, principalmente, em tempos sombrios como estes que vivemos.
Referências
HONOR, Rosângela. “Sexo é um luxo”. Revista Isto É Gente, 13/12/1999.
MAIA, Luiza. “‘O Brasil está doutorado em ignorância’, dispara Maria Bethânia, às vésperas de show duplo em Pernambuco”. Diário de Pernambuco, 30/09/2015.
MOTTA, Nelson. “Bethânia 70”. In: BETHÂNIA, Maria. Abraçar e agradecer. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2016, 2CD.
SILVA, Marlon de Souza. “No que eu canto trago tudo o que vivi”: a tradição e o popular em Maria Bethânia (1965-1978). 2010. 155 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas, Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2010.
RIBEIRO, Núbia Braga. “Políticas públicas e os povos indígenas no Brasil contemporâneo”. In: RESENDE, Maria Leônia Chaves de (org). Mundos nativos: cultura e história dos povos indígenas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
STARLING, Heloísa Maria Murgel. “Maria Bethânia: intérprete do Brasil”. In: BETHÂNIA, Maria. Caderno de Poesias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.